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aula 02: gregos grande conversa ilíada

Qual Ilíada ler?

Uma comparação entre diversas traduções da Ilíada. (Guia de leitura para o curso Introdução à Grande Conversa)

Uma boa tradução pode ser a diferença entre uma leitura empolgante e uma experiência tediosa.

Antes de tudo, é fundamental ressaltar que a Ilíada é um poema. Então, abaixo, vou falar somente de traduções integrais e em poesia. Qualquer edição que seja fininha e em prosa é uma adaptação. Nada contra adaptações: para quem têm dificuldade com o estilo, elas podem ser uma boa porta de entrada.

Em português, a tradução pioneira é a de Odorico Mendes, poética e inovadora, de 1874 e ainda em catálogo, em bela edição, bilíngue e anotada, da Ateliê Editorial. Hoje, ela é uma obra de arte por si mas eu diria que interessa mais a quem quer saber como um intelectual brasileiro do século XIX, brilhante e palavroso, traduziria a Ilíada do que para quem quer ler a Ilíada em si. (Texto completo aqui.)

A tradução talvez mais fácil de encontrar é a de Carlos Alberto Nunes, da década de 1960, disponível por várias editoras (Nova Fronteira, Hedra, etc), mas que eu considero antiquada e difícil de ler.

Existem duas novas traduções brasileiras bastante boas, do Christian Werner (2019), pela editora Ubu, em uma edição particularmente belíssima, e do Trajano Vieira (2020), pela Editora 34, contando com todo o profissionalismo e aparato crítico de todas as edições da editora e mais o maravilhoso ensaio de Simone Weil sobre a Ilíada.

O Trajano é bastante ativo na internet, mantém um site onde divulga vídeos (assino sua newsletter) e assinou várias traduções excelentes de peças gregas (adoro seu Filoctetes) além de ter trabalhado com o poeta Haroldo de Campos em sua épica transcriação da Ilíada.

A grande qualidade de todas essas traduções (Werner, Trajano e mais ainda Campos) é também seu maior problema: elas fazem um enorme esforço para reproduzir a poética da linguagem, o que às vezes afeta a fluência da leitura. Ou seja, são lindas, belíssimas, mas podem ser difíceis para a leitora comum.

Para uma Ilíada com o máximo de poesia, recomendo a enlouquecida e maravilhosa transcriação de Haroldo de Campos (2003), em catálogo pela Benvirá.

Para quem deseja uma belíssima linguagem poética com um português fludo que não trava a leitura, recomendo a tradução de Frederiço Lourenço, lançada em Portugal em 2005, e publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 2013, em uma edição caprichada, com introdução, mapas, glossário e notas.

Para leitoras de inglês, recomendo a tradução de Stanley Lombardo (1997), extremamente fluente e ágil, moldada ao vivo e em performance, como foi feita para ser consumida. O tom do livro já é dado pela capa, abaixo: uma foto de desembarque da Normandia. (A editora Hackett tem um extenso catálogo de clássicos traduzidos ao inglês: as edições não têm notas ou aparato crítico, mas considero as melhores traduções contemporâneas. Tenho várias, amo todas.)

Aliás, recomendo todas as traduções de Lourenço (adoro sua Bíblia grega) e de Lombardo (EneidaOvídiokoans zen).

No final desse texto, ofereço uma comparação do começo da Ilíada em oito diferentes traduções, para vocês escolherem a preferida.

(Uma matéria da New Yorker sobre traduções da Ilíada para o inglês e outra do Estadão, sobre português.)

Traduções da Ilíada, comparadas

O comecinho da Ilíada, em 9 traduções:

Em português:

Odorico Mendes (1874)

Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles

A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,

Verdes no Orco lançou mil fortes almas,

Corpos de heróis a cães e abutres pasto:

Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem

O de homens chefe e o Mirmidon divino.

Nume há que os malquistasse? O que o Supremo

Teve em Latona. Infenso um letal morbo

No campo ateia; o povo perecia,

Só porque o rei desacatara a Crises.

Com ricos dons remir viera a filha

Aos alados baixéis, nas mãos o cetro

E a do certeiro Apolo ínfula sacra.

Ora e aos irmãos potentes mais se humilha:

“Atridas, vós Aqueus de fina greva,

Raso o muro Priâmeo, assim regresso

Vos dêem feliz do Olimpo os moradores!

Peço a minha Criseida, eis seu resgate;

Reverentes à prole do Tonante,

Ao Longe-vibrador, soltai-me a filha.”

(comprar)

* * *

Carlos Alberto Nunes (1941)

Canta-me a cólera –ó deusa– funesta de Aquileu Pelida

causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta

e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos

e esclarecidos ficando eles próprios aos cães atirados

e como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio

desde o princípio em que os dois em discórdia ficaram cindidos:

o de Atreu filho senhor de guerreiros e Aquileu divino.

Qual dentre os deuses eternos foi causa de que eles brigassem?

O que de Zeus e de Leto nasceu que com o rei agastado

peste lançou destruidora no exército. O povo morria

por ter o Atrida Agamémnon a Crises primeiro ultrajado

o sacerdote. Este viera até às céleres naus dos Aquivos

súplice a filha reaver. Infinito resgate trazia

tendo nas mãos as insígnias de Apolo frecheiro infalível

no ceptro de ouro enroladas. Implora aos Aquivos presentes

sem excepção mas mormente aos Atridas que povos conduzem:

“Filhos de Atreu e vós outros Aquivos de grevas bem feitas

dêem-vos os deuses do Olimpo poderdes destruir as muralhas

da alta cidade de Príamo e após retornardes a casa.

A minha filha cedei-me aceitando resgate condigno

e a Febo Apolo nascido de Zeus reverentes mostrai-vos.”

(comprar)

* * *

Haroldo de Campos (2002)

A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,

o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas

trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades

de valentes, de heróis, espólio para os cães,

pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;

desde que por primeiro a discórdia apartou

o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles.

Que Deus, posto entre ambos, provocou a rixa?

O filho de Latona e Zeus. Irou-o o rei.

A peste então lavrou no exército: ruína

cai sobre o povo! A Crises ultrajara o Atreide,

ao sacerdote, o qual viera até as naus

velozes dos Aqueus remir com dons a filha,

nas mãos portando os nastros do certeiro Apolo

presos ao cetro de ouro e a todos implorava,

mormente aos dois Atreides, comandantes de homens:

“Atreides e outros mais Aqueus de belas cnêmides,

que a vós os deuses deem, habitantes do Olimpo,

derruída a priâmea urbe, um bom retorno à casa;

mas a filha querida resgatai-me, e os dons

guardai, temendo Apolo, deus flechicerteiro”.

(comprar)

* * *

Frederico Lourenço (2005)

Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida

(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus

e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,

ficando seus corpos como presa para cães e aves

de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),

desde o momento em que primeiro se desentenderam

o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.

Entre eles qual dos deuses provocou o conflito?

Apolo, filho de Leto e de Zeus. Enfurecera-se o deus

contra o rei e por isso espalhara entre o exército

uma doença terrível de que morriam as hostes,

porque o Atrida desconsiderara Crises, seu sacerdote.

Ora este tinha vindo até as naus velozes dos Aqueus

para resgatar a filha, trazendo incontáveis riquezas.

Segurando nas mãos as fitas de Apolo que acerta ao longe

e um cetro dourado, suplicou a todos os Aqueus,

mas em especial aos dois Atridas, condutores de homens:

“Ó Atridas e vós, demais Aqueus de belas cnêmides!

Que vos concedam os deuses, que o Olimpo detêm,

saquear a cidade de Príamo e regressar bem a vossas casas!

Mas libertai a minha filha amada e recebei o resgate,

por respeito para com o filho de Zeus, Apolo que acerta ao longe.”

(comprar)

* * *

Christian Werner (2019)

A cólera canta, deusa, a do Pelida Aquiles,

nefasta, que aos aqueus impôs milhares de aflições,

remessou ao Hades muitas almas vigorosas

de heróis e fez deles mesmos presas de cães

e banquete de aves – completava-se o desígnio de Zeus –,

sim, desde que, primeiro, brigaram e romperam

o Atrida, senhor de varões, e o divino Aquiles.

Qual deus lançou-os na briga e os fez pelejar?

O filho de Leto e de Zeus: com raiva do rei,

atiçou danosa peste no exército, e a tropa perecia

porque a Crises, o sacerdote, desonrou

o Atrida. Veio às naus velozes dos aqueus

recuperar a filha trazendo resgate sem-fim,

com a grinalda de Apolo lança-de-longe nas mãos,

no alto do cetro dourado, e suplicou a todos os aqueus

sobretudo aos dois Atridas, ordenadores de tropas:

“Atridas e demais aqueus de belas grevas,

a vós concedam os deuses que têm casas olímpias

assolar a cidade de Príamo e chegar bem em casa.

Libertai minha cara menina e aceitai este resgate,

venerando o filho de Zeus, Apolo lança-de-longe”

(comprar)

* * *

Trajano Vieira (2020)

A fúria, deusa, canta, do Pelida Aquiles,

fúria funesta responsável por inúmeras

dores aos dânaos, arrojando magnas ânimas

de heróis ao Hades, pasto de matilha e aves.

O plano do Cronida se cumpria, desde

o momento em que a lide afasta o Atrida, líder

do exército, de Aquiles. Mas que nume impôs

a desavença aos dois? O filho de Latona

e Zeus, que extravasando bile contra o rei

alastra peste amarga no tropel, e a turba

morre. O Atrida maltratara o sacerdote

Crises, que viera às naus velozes dos aqueus

rogar de volta a filha, oferecendo dádivas

em profusão; à mão, insígnias do flecheiro

Apolo, em torno do áureo cetro. Pede a todos,

à dupla atrida sobretudo, à frente de ases:

“Atridas e demais aqueus de belas grevas,

os deuses desde o sólio olímpio vos concedam

derruir a pólis priâmea e a volta ao lar! Os dons

que trago recebei por minha filha cara,

reverenciando o ilustre Apolo Sagitário.”

(comprar)

* * *

Em inglês:

Alexander Pope (1720)

The wrath of Peleus’ son, the direful spring

Of all the Grecian woes, O Goddess, sing!

That wrath which hurled to Pluto’s gloomy reign

The souls of mighty chiefs untimely slain,

Whose limbs, unburied on the naked shore,

Devouring dogs and hungry vultures tore:

Since great Achilles and Atrides strove,

Such was the sovereign doom, and such the will of Jove!

⁠Declare, O Muse! in what ill-fated hour

Sprung the fierce strife, from what offended Power?

Latona’s son a dire contagion spread,

And heaped the camp with mountains of the dead;

The king of men his reverend priest defied,

And, for the king’s offence, the people died.

⁠For Chryses sought with costly gifts to gain

His captive daughter from the victor’s chain.

Suppliant the venerable father stands;

Apollo’s awful ensigns grace his hands:

By these he begs: and, lowly bending down,

Extends the sceptre and the laurel crown.

He sued to all, but chief implored for grace

The brother-kings of Atreus’ royal race:

⁠”Ye kings and warriors! may your vows be crowned,

And Troy’s proud walls lie level with the ground;

May Jove restore you, when your toils are o’er,

Safe to the pleasures of your native shore.

But oh! relieve a wretched parent’s pain,

And give Chryseïs to these arms again;

If mercy fail, yet let my presents move,

And dread avenging Phœbus, son of Jove.

(comprar)

* * *

Stanley Lombardo (1997)

RAGE:

Sing, Goddess, Achilles’ rage,

Black and murderous, that cost the Greeks

Incalculable pain, pitched countless souls

Of heroes into Hades’ dark,

And left their bodies to rot as feasts

For dogs and birds, as Zeus’ will was done.

Begin with the clash between Agamemnon—

The Greek warlord—and godlike Achilles.

Which of the immortals set these two

At each other’s throats?

Apollo,

Zeus’ son and Leto’s, offended

By the warlord. Agamemnon had dishonored

Chryses, Apollo’s priest, so the god

Struck the Greek camp with plague,

And the soldiers were dying of it.

Chryses

Had come to the Greek beachhead camp

Hauling a fortune for his daughter’s ransom.

Displaying Apollo’s sacral ribbons

On a golden staff, he made a formal plea

To the entire Greek army, but especially

The commanders, Atreus’ two sons:

“Sons of Atreus and Greek heroes all:

May the gods on Olympus grant you plunder

Of Priam’s city and a safe return home.

But give me my daughter back and accept

This ransom out of respect for Zeus’ son,

Lord Apollo, who deals death from afar.”

(comprar)

* * *

Caroline Alexander (2016)

Wrath – sing, goddess, of the ruinous wrath of Peleus’ son Achilles,

that inflicted woes without number upon the Achaeans,

hurled forth to Hades many strong souls of warriors

and rendered their bodies prey for the dogs,

for all birds, and the will of Zeus was accomplished;

sing from when they two first stood in conflict –

Atreus’ son, lord of men, and godlike Achilles.

Which of the gods, then, set these two together in conflict, to fight?

Apollo, son of Leto and Zeus; who in his rage at the king

raised a virulent plague through the army; the men were dying

because the son of Atreus dishonoured the priest Chryses.

For he came to the Achaeans’ swift ships

bearing countless gifts of ransom to set free his daughter,

holding in his hands on a golden staff the wreaths of Apollo

who strikes from afar, and beseeched all the Achaeans—

but mostly the two sons of Atreus, marshallers of men:

“Sons of Atreus and you other strong-greaved Achaeans,

may the gods who have homes on Olympus grant you

to plunder Priam’s city, and reach your home safely;

release to me my beloved daughter, take instead the ransom,

revering Zeus’s son who strikes from afar – Apollo.”

(comprar)

* * *

Esse texto faz parte dos guias de leitura para a segunda aula, Gregos, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.

* * *

Qual Ilíada ler? é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 21 de julho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/qual-iliada-ler // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato

7 respostas em “Qual Ilíada ler?”

Bravo! Muito esclarecedor o texto. Estou lendo a Ilíada pela tradução do Carlos Alberto Nunes. Se não estivesse lendo pelo Kindle (que tem dicionário, Wikipedia e tradutor a um clique), essa seria uma tarefa hercúlea (ou aquiliana rsrsrs). O melhor foi que você além de fazer uma descrição de cada edição, demonstrou com um canto a singularidade de cada uma, não apenas em português. Isso é de grande ajuda aos navegantes!

Como pode a versão em inglês de 1720 ser a mais fácil de entender? Tô chocado. :) Muito obrigado pelo artigo!
Minha impressão é que essa foi a única tradução feita para o leitor ler. As outras me parecem feitas pensando no julgamento se a tradução foi precisa e fiel ao original. Ora, o autor do original hoje jamais usaria essas palavras e estrutura e referências impossíveis de entender. Que eu saiba é uma poesia muito popular, tanto que durou milênios.
O mais fiel ao original seria traduzir da forma que Homero (?) escreveria hoje se estivesse aqui. E ele escreveria para as pessoas lerem. E gostarem!
Fiquei muito interessado nas adaptações, pois isso que na minha opinião seria a tradução perfeita deve ser o que no meio se considera uma adaptação. Mas entendo que tenham ficado de fora do escopo desse texto.
Muito obrigado mais uma vez, parabéns pela comparação e análise.

Sou leitor “novato” e me senti um analfabeto completo ao experimentar as versões de Odorico Mendes e Carlos Alberto Nunes. Este seu artigo contribuiu para que eu não comprasse ao que seria pelo menos por hora um belo peso de porta ou enfeite pra estante. Obrigado por compartilhar.

Artigo simplesmente maravilhoso!!! Parabéns Alex, pela clareza e adequadissima apresentação a respeito de cada uma das traduções. Confesso que cheguei ao site esperando apenas um comentário sobre cada tradutor, e no máximo uma indicação de qual seria o ideal. Mas confesso que o nível de detalhes me impressionou e me ajudou demais! Obrigado!

P.S.: A ideia de colocar um pequeno trecho de cada tradução facilitou imensuravelmente a minha vida! Valewww ;)

Esse texto e as comparações oferecidas, pintam um panorama de valor incalculável sobre as dificuldades e os caminhos do ato de traduzir. E da diferença entre as mesmas. Algumas inacreditáveis.
Estou entre Christian Werner e Caroline Alexander. Vale o estudo, com certeza.
Como um apreciador das línguas e obcecado por traduções e translitarações, sou muito grato por ter encontrado um trabalho assim.
Obrigado!

Sou leitor da Ilíada de Haroldo de Campos. Não temo a ousadia do tradutor.

Depois de comparar os textos, mantenho a minha preferência pela perfeita transcrição de Haroldo.

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