O Gênese é quase darwinista em sua ênfase na fecundidade: claramente, a maior vitória possível é deixar o máximo de descendentes, povoar o mundo, encher a terra. Abaixo, algumas notas de leitura.
O mandamento original “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (1, 28) é repetido outras duas vezes: “sejam fecundos e multipliquem-se sobre a terra” (8, 17) e “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra” (9, 1-3). No dilúvio, salvam-se um casal de cada espécie especificamente para repovoar o mundo. Quando Deus dispersa os homens, depois do episódio da Torre de Babel, isso é uma punição, mas também é parte do cumprimento do mandamento de se “espalhar pela terra”. Até mesmo a chatice das listas genealógicas é uma reafirmação dessa importância.
Em Gen 15, 5, em mais um momento deliciosamente antropomórfico, o próprio Deus “conduz” Abraão para fora (de onde? de sua tenda?) para lhe mostrar as estrelas: “Ele o conduziu para fora e disse: “Ergue os olhos para o céu e conta as estrelas, se as podes contar”, e acrescentou: “Assim será a tua posteridade.”” (Alter, 56-7)
As três grandes matriarcas, Sara, Rebeca, Raquel, são estéreis e a superação dessa esterilidade é vista como a grande vitória de suas vidas. Existe uma ironia no fato de que Deus dá sua benção à Abraão e seu povo, mas que essa benção não faz sentido algum sem a fecundidade das mulheres desse povo. As personagens mais fortes, mais positivas, mais adultas, são sempre as mulheres. Os homens ou são infantis ou infantilizados em algum grau. (Bloom 232)
Ao mesmo tempo em que a fecundidade é exaltada, a primogenitura (face mais concreta, mais política, dessa fecundidade) é subvertida: Isaac revela-se mais importante que Ismael; Jacó rouba a primogenitura de Esaú; Jacó escolhe abençoar primeiro seu neto mais novo e depois o mais velho. (Alter 58)
Quando Jacó engana seu sogro Labão e se apropria de grande parte de seu rebanho (Gen 30, 25-43) manipulando a criação de bodes e cabras, o que ele está fazendo, dentro do grande tema do Gênese, é se mostrando um mestre em fecundidade. Não é à toa que é o pai das Doze tribos de Israel.
(Referências: Guia literário da Bíblia, de Robert Alter e Frank Kermode e O Livro de J, de Harold Bloom.)
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Esse texto faz parte dos guias de leitura para a primeira aula, Antigo Testamento, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura da primeira aula estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Fecundidade e primogenitura no Gênese é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 24 de junho de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/fecundidade-e-primogenitura-no-genese // Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. Esse, e todos os meus textos, só foram escritos graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou muito, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato