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Prisão Classe

Estamos algemadas à Prisão Classe quando simplesmente nos recusamos a encarar e reconhecer nossos privilégios de classe, mesmo quando eles estão em nossa cara, gritando e bufando.

Estamos algemadas à Prisão Classe quando simplesmente nos recusamos a encarar e reconhecer nossos privilégios de classe, mesmo quando eles estão em nossa cara, gritando e bufando.

Quando pergunto se as pessoas são ricas, elas ou dão respostas abstratas (“sou rico em oportunidades”) ou negam (“olha, eu até ganho bem, mas não me considero rica porque não consigo comprar tudo o que eu quero.”). Ninguém acha que é rica, ou que é privilegiada, pois isso acarretaria obrigações sociais que queremos evitar, uma autoimagem da qual fugimos. O privilegiado é sempre um Outro.

Mais ainda, nenhum privilégio de classe é apenas um privilégio de classe. Pois a distinções de classe permeiam tudo nessa nossa sociedade tão desigual. As mulheres ganham menos que os homens. As pessoas negras ganham menos que as pessoas brancas. Todos os privilégios são, fundamentalmente, privilégios de classe, desfrutados com maior ou menor intensidade dependendo de nossa classe social.

Por isso, é tão engraçado quando algum negacionista do racismo, já sem argumentos, diz: “Bem, mas isso não é uma questão racial, é uma questão econômica!” O que equivale a dizer: “Isso não é uma questão culinária, é uma questão gastronômica!” O racismo e a misoginia também são questões econômicas. Também são questões de classe.

(Essa é a versão final completa da Prisão Classe. Como parte do Curso das Prisões e para futura publicação pela Editora Rocco, estou revisando e reescrevendo todos os textos da série As Prisões. A Prisão Classe é a terceira, depois das Prisões Verdade e ReligiãoAs inscrições para o curso estão abertas.)

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Quem pertence à classe alta?

No Brasil, classe média é quem tem renda mensal per capita menor entre R$667 e R$3.755. Só 6% de pessoas brasileiras ganham mais de R$3.755: essas pessoas, queiram ou não, esperneiem ou não, fazem parte da classe alta, da elite econômica do Brasil, o topo do topo da pirâmide. (A classe média engloba 47% da população; a classe baixa, com renda menor de R$667, outros 47%, e a classe alta, 6%.) E está na hora de começarmos a refletir sobre esses privilégios.*

Em 2013, um relatório econômico da Secretária de Assuntos Estratégicos definiu classe média como tendo renda per capita acima de R$2.400 e gerou muita polêmica, ranger de dentes e rasgar de vestes. Já prevendo essa reação, o próprio relatório afirma:**

“No Brasil, fazem parte dos 5% mais ricos todos aqueles em famílias com renda per capita acima de R$2.400 ao mês e muitos membros desse grupo se consideram parte da classe média. Seria impossível conceber qualquer divisão da população em três classes de renda (baixa, média e alta) em que os 5% mais ricos estivessem fora da classe alta. Para todos aqueles com essa opinião, qualquer definição coerente para a classe média sempre os excluiria e, por essa razão, seria percebida como empobrecida.”

Muitas de nós, quando descobrimos que não somos consideradas “classe média”, ficamos revoltadas. Surpreendentemente, em vez de ficarmos revoltadas com nossos muitos privilégios, com a enorme quantidade de pessoas que vivem sem eles, com a gigantesca desigualdade em nosso país…. ficamos revoltadas com o fato de sermos classe alta! Mas esse rótulo é apenas uma convenção e, no fim das contas, é irrelevante.

Talvez até achemos um absurdo que a classe média só vá até a renda mensal per capita de R$3.755 e que nós, que ganhamos R$4 mil (“que não dá pra nada!!”), também deveríamos ser classe média. Só que a nomenclatura é uma convenção arbitrária, como qualquer outra. Poderíamos chamar de “classe epaminondas” ou de “classe blé” e não faria diferença alguma. Qualquer que seja o nome convencionado, uma pessoa com renda mensal de R$3.755 mil ganha mais do que 94% da população brasileira. Essa é a definição de privilégio.

Por fim, só para irmos um pouco mais longe, quem ganha mais de R$9 mil mensais per capita faz parte do 1% de pessoas mais ricas… da humanidade. A questão não é o quanto trabalhamos por nosso dinheiro, quantas obrigações financeiras temos, quanto dinheiro nos sobra depois de pagá-las, quantas coisas queremos consumir e não podemos. A questão é que, se ganhamos mais de R$9 mil mensais, ganhamos melhor do que 99% das pessoas humanas que existem!***

É inacreditável o quanto esperneamos, a quantidade de justificativas que arrumamos, os pelos em ovo que encontramos…. tudo para não olharmos no espelho e vermos ali pessoas privilegiadas. Pessoas que estão no topo da pirâmide econômica e social de nosso país. Pessoas que precisam antes abrir mão de privilégios do que continuar correndo atrás de adquirir novos.

O problema do Brasil não é existirem pessoas privilegiadas. Elas sempre existiram e sempre existirão. O nosso problema é que nós, as pessoas privilegiadas, vivemos cercadas de miseráveis que fazem nossas unhas e lavam nosso chão por uma miséria… e ainda assim somos completamente incapazes de reconhecer nossos imensos privilégios.

[*Os números vêm do Instituto Locomotiva, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), citados nessa matéria do G1, de 17 de abril de 2021: Classe média ‘encolhe’ na pandemia e já tem mesmo ‘tamanho’ da classe baixa. Outros dados, de outras instituições, com outros recortes, usando outras metodologias, terão resultados diferentes – nada que modifique o argumento central que estou desenvolvendo.]

[**O relatório se chamou Vozes da Nova Classe Média, Caderno 03 e foi lançado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) em abril de 2013.]

[***A fonte é o site da ONG de altruísmo efetivo Giving what we can, onde eles explicam a metodologia.]

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O privilegiado é sempre um outro

Nossa tendência de pessoas humanas é sempre normalizar e normatizar nossa situação: perceber nossa vida como “a vida normal e normativa”, e as vidas das pessoas mais pobres como “vidas pobres” e as vidas das pessoas ricas como “vidas ricas”. Sempre existirão pessoas com mais e com menos privilégios que nós. A questão é outra: para quem estamos olhando? Uma pessoa brasileira com renda mensal de R$4 mil pode escolher olhar para o 1% de pessoas brasileiras ainda mais privilegiadas que ela e aspirar possuir ainda mais privilégios. Ou ela pode escolher se solidarizar com as 99% de pessoas brasileiras que têm muito, muito menos e tomar ação política para mudar essa realidade. Estamos presas na Prisão Classe não simplesmente por sermos pessoas privilegiadas, mas por sermos pessoas privilegiadas que não enxergam e não reconhecem nossos imensos privilégios.

No Brasil, quase nenhuma pessoa se admite “rica” ou “privilegiada”. Ambas as palavras, para todos os fins e efeitos, se tornaram praticamente xingamentos. Há muitos anos, eu fui uma criança rica, crescendo entre outras crianças ricas, em uma das escolas mais caras do país. Um dia, em uma lancha de quarenta pés em Búzios, eu disse alguma coisa que já nem lembro o que era, mas que incluía o reconhecimento explícito de que nós ali éramos pessoas ricas: “porque nós, os ricos, etc”, algo assim. Bateu um silêncio constrangedor. Algumas pessoas olharam para o mar ao longe, outras passaram as pontas dos dedos por seus jacarés nas camisas pólo. Finalmente, um dos meninos tomou para si o ônus da resposta:

 — Imagina, Alex! Eu e minha família não somos ricos!

Eu, criança bocuda, ainda sem entender direito o tamanho do tabu onde tinha esbarrado, insisti:

 — Mas João Paulo! Acabamos de sair de sua casa de praia cinematográfica, com um deck envidraçado se estendendo até o meio do mar, e estamos agora na lancha que seu pai acabou de trocar ano passado, indo para um restaurante-ilha onde o almoço vai custar vários salários-mínimos. Óbvio que você é rico!

Como dizer que o rei não está nu quando ele está ali, balançando as bolas bem na sua cara?:

 — Bem, Alex, veja, não somos ricos, meu pai trabalhou muito, mas é assalariado, um mero presidente de empresa multinacional, pode ser demitido a qualquer momento pelos acionistas! Ok, tudo bem, conseguimos economizar muito, temos um certo conforto, é verdade, mas não somos ricos.

Por fim, o abacaxi é fatalmente passado adiante:

 — Rico, rico mesmo, é o Carlos Eduardo, que tem um iate de sessenta pés e a família é dona de sua própria ilha. Ele sim é rico, Alex. Não eu, pô!

Mais tarde, durante aquele mesmo almoço, o sofrido Carlos Eduardo também negou peremptoriamente sua condição de rico.

 — Imagina! Minha família agora até está em uma situação confortável, fruto de muito trabalho apesar dos impostos escorchantes, mas rico mesmo, rico de verdade, é o Luis Felipe, do nono ano. Ele sim é rico!

Infelizmente, não lembro mais o que o Luis Felipe possuía para marcá-lo como rico. Talvez Belize.

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O privilégio é um olhar

Todas as pessoas privilegiadas compartilham de diferentes graus da mesma ignorância constitutiva. A Prisão Classe é tudo aquilo que não enxergamos justamente por causa de nossa classe social. Meus amigos de infância em Búzios não eram pessoas especialmente sem-noção: eles não se achavam ricos pelo mesmo motivo que todas as pessoas privilegiadas não se acham privilegiadas. Porque quando crescemos rodeadas por algo – nesse caso, o privilégio – aquilo vira a regra contra a qual o mundo é comparado. Nossa vida é sempre a normal, a normativa: as outras vidas é que são menos ou mais alguma coisa.

Nós, as pessoas privilegiadas, escolhemos olhar para as pessoas ricas e famosas, consumindo revistas de fofocas e programas de glamour, ao mesmo tempo em que escolhemos nunca olhar para as pessoas pobres e sofridas, evitando cruzar com elas nas ruas e nunca entrando nas comunidades onde moram. Então, se evitamos as incômodas pessoas menos privilegiadas; se normatizamos nossas próprias vidas repletas de privilégios; e se olhamos com atenção somente para as pessoas com ainda mais privilégios que nós… o resultado final será nos tornarmos pessoas privilegiadas que simplesmente não conseguem enxergar seus próprios privilégios: “Privilegiada? Eu? Claro que não. Só tenho uma jacuzzi! Privilegiado é o Luciano Huck, que tem cinco. Sério, eu vi no Vídeo Show!” Por outro lado, pessoas privilegiadas que frequentam comunidades carentes quase sempre se tornam mais e mais conscientes da imensidão de seus privilégios.

O peixe não enxerga a água justamente por viver toda a sua vida rodeado por ela, e só percebe sua falta quando está se debatendo no convés do barco. Nós também só percebemos a extensão de nossos privilégios – que sempre estiveram a nossa volta, por todos os lados, nunca questionados, nunca problematizados – quando somos confrontadas com sua ausência. Mas não é preciso esperar que desigualdade do Brasil nos exploda na cara: podemos mudar a direção da nossa mirada hoje. O percurso que estou propondo no Livro das Prisões é justamente desnaturalizar tudo aquilo que nos parecia mais natural.

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Aparte metodológico: será o Luciano Huck pobre?

Uma objeção comum à essa linha argumentativa: na verdade, apontam algumas pessoas, seríamos todas pobres, inclusive o Luciano Huck. Apesar das cinco jacuzzis que inventei agora e do salário certamente altíssimo, ele não passaria de um assalariado como qualquer outro: “Ricos são os donos dos meios de produção, Alex!”, dizem essas críticas, “Rico é quem assina o contracheque do Huck.” Qualquer assalariado, por maior que seja o seu salário, está muito mais próximo de um sem-teto do que do Bill Gates ou Elon Musk. Logo, eu deveria estar tentando mostrar às minhas leitoras que elas são mais pobres do que imaginam, não mais ricas.

No fim das contas, entretanto, dá na mesma: ambas as abordagens são verdadeiras e têm como efeito fazer com que as pessoas enxerguem as hierarquias socioeconômicas da sociedade e reflitam sobre o lugar que ocupam. O público-leitor desse livro é provavelmente formado em larga medida por pessoas que ganham salários maiores que a maioria esmagadora das brasileiras (por isso, pertencem à classe alta e não à média) e que também, ao mesmo tempo, por serem assalariadas, estão muito distantes de serem ricas como as verdadeiras donas dos meios de produção. Para a Prisão Classe, escolhi enfatizar a primeira oração, mas respeito quem escolhe a segunda, e concordo com ambas.*

[*Em caso de dúvida, e precisando de inspiração, sugiro ler ou reler o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, um livrinho belíssimo e perfeito, que sempre me faz chorar.]

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Breve história dos meus privilégios

Só podemos admitir nossos privilégios quando damos um passo atrás, desnaturalizamos nossas vidas, saímos do centro do universo que ocupamos em nossa imaginação egocêntrica e passamos a nos enxergar em relação às outras pessoas que estão girando conosco pelo espaço na superfície dessa bola de pedra e água.

Eu (nascido em 1974) cursei o ensino fundamental no Colégio Santo Agostinho (um dos melhores da cidade), o médio na Escola Americana do Rio de Janeiro (na época, a mais cara do Brasil) e, depois, História no IFCS/UFRJ (turma de 1999) porque meu pai cresceu em Botafogo, fez o ensino médio no Colégio Andrews (tradicionalíssimo) e se formou bacharel em Economia (turma de 1970) pela mesma UFRJ.

Meu pai (1946-2018) estudou na UFRJ porque meu avô estudou Engenharia no Instituto Eletrotécnico de Itajubá, atual Universidade Federal de Itajubá (turma de 1938) e trabalhou durante muitos anos para a CHESF (Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco), inclusive nas obras do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso.

Meu avô (1909-1989) foi engenheiro civil porque meu bisavô (1876-1965) saiu do Mato Grosso (onde seu pai, veterano do Paraguai, estava servindo desde a guerra) pra estudar no Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde teve a honra de ser comandante-aluno de 1897 , formou-se engenheiro militar, participou do episódio dos 18 do Forte de Copacabana e reformou-se tenente-coronel.

Em 1888, com 12 anos de idade, meu bisavô estudava na capital do Império, em um dos melhores colégios públicos do país, com bolsa integral, soldo e emprego garantido após a formatura. Se, ao invés disso, nesse mesmo ano, ele tivesse sido libertado (leia-se posto pra fora de casa) com a roupa do corpo, analfabeto e despreparado, sem conhecer pai e mãe, desprovido de qualquer poupança ou bens, teriam seus filhos e netos e bisnetos estudado nas melhores escolas e universidades do país e feito parte da elite brasileira?

Sem esse capital socioeconômico e cultural acumulado pelo meu bisavô em 1888 (para não irmos mais longe), onde teria ido parar a cadeia de acontecimentos que desembocou na minha vida? Estaria eu, nesse momento, sadio e medindo 1,80m, proprietário de apartamento em Copacabana e publicando livros? Dentre minhas realizações, quantas são exclusivamente por mérito meu e quantas são consequência direta da vida privilegiada que eu e meus antepassados levamos? Que tipo de dívida eu, pessoalmente, tenho com as pessoas que não tiveram tanta sorte?

Afinal, se eu e meus antepassados somos privilegiados, então é porque existem pessoas que não são. E por que não são? É porque não estudaram tanto ou trabalharam tão duro quanto eu ou meu pai? Por que o faxineiro do banco trabalha o dia inteiro, assim como meu pai, o gerente do banco, mas leva pra casa só uma fração do salário? Será que o filho do faxineiro, que estudou em escola pública e trabalha desde os doze anos, vai ter a mesma chance que eu de entrar em uma universidade federal? Que privilégios meu pai teve que o faxineiro não teve? Que privilégios eu tive que o filho do faxineiro não teve? Qual é a origem histórica dessa assimetria socioeconômica tão gigantesca? Faz sentido falar em meritocracia em uma sociedade tão desigual?

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Ação de graças pelos privilégios recebidos

O Brasil e os Estados Unidos são duas sociedades muito parecidas em sua desigualdade, racismo, outrofobia. Uma diferença, entretanto, é que as pessoas ricas norte-americanas praticam muito mais filantropia do que as brasileiras. Outra diferença é que o feriado mais importante dos Estados Unidos, quase desconhecido no Brasil, é o dia de ação de graças, quando (teoricamente) as pessoas refletem sobre as muitas graças recebidas. Talvez exista uma relação. Enfim, aqui vão as minhas.

Sou grato por ter nascido homem. (Em uma sociedade machista, onde mulheres ganham uma fração do salário dos homens pelo mesmo trabalho, são vítimas de violência de gênero, possuem menos direitos perante a lei e representam apenas uma pequena parcela da elite corporativa.)

Sou grato por ter nascido cis. (Em uma sociedade transfóbica, onde as pessoas trans são invisibilizadas e silenciadas, encontram enormes obstáculos para realizar tratamentos e procedimentos médicos de acordo com suas necessidades, e sofrem violência e intimidação até para seus nomes de escolha na carteira de identidade.)

Sou grato por ter nascido branco. (Em uma sociedade racista, onde as pessoas negras são consistentemente assassinadas em números alarmantes, formam maioria da população carcerária mas a minoria da população universitária, encontram dificuldades para conseguir empregos e alugar apartamentos, e têm até mesmo seu cabelo chamado de “ruim”.)

Sou grato por ter nascido heterossexual. (Em uma sociedade homofóbica, onde as pessoas homossexuais têm menos direitos perante a lei, como casar ou servir nas forças armadas, são consistentemente assassinadas em números também alarmantes, sofrem todo tipo de preconceito, rejeição e bullying desde a infância, inclusive e principalmente das próprias famílias que deveriam amá-los, muitas partindo para o suicídio como última alternativa.)

Sou grato por ter nascido com o corpo sem deficiências. (Em uma sociedade capacitista, onde as pessoas com deficiências são consistentemente ignoradas e invisibilizadas e mesmo as poucas leis que tentam lhes facilitar a vida acabam ignoradas, e são impossibilitadas fazer coisas que deveriam ser simples, como entrar em prédios públicos e subir em ônibus, usar um computador ou votar.)

Sou grato por ter nascido em um país democrático, próspero e estável. (Em um mundo convulsionado, repleto de guerras civis e genocídios, onde a maioria dos habitantes vive em imensa pobreza, sem acesso a inovações tecnológicas, serviços públicos, universidades e hospitais, eleições regulares e nem mesmo às proteções mais básicas do Estado de direito.)

Sou grato por ter nascido na classe alta urbana. (Em um país desigual, onde as pessoas dessa classe alta — especialmente quando são homens brancos cis e héteros — têm acesso desproporcional a todas as benesses e regalias que esse Estado pode oferecer, e as outras cidadãs muitas vezes vivem vidas instáveis que lembram bastante a das cidadãs dos países convulsionados e pobres.)

Sou grato por meu pai e minha mãe descenderem de uma longa linha de pessoas privilegiadas como eu, bem-alimentadas e sem doenças congênitas ou genéticas. (Em um país onde a fome e a desnutrição são disseminadas e já foram mais, onde doenças infantis medievais e perfeitamente evitáveis ainda causam mortes e mutilações, onde a desnutrição na infância limita o desenvolvimento físico e intelectual para toda a vida.)

Sou grato por ter nascido de um pai e de uma mãe que quiseram e planejaram juntos me ter. (Em um país onde muitas pessoas não têm acesso nem à educação sexual nem a controle de natalidade, onde a maior instituição religiosa luta para mantê-las na ignorância, onde a opção do aborto é proibida às mulheres que não têm dinheiro para pagar uma clínica clandestina.)

Sou grato por meu pai ter ficado. (Em uma sociedade onde um número tristemente grande de homens não participa em nada da criação dos filhos e filhas que geraram.)

Sou grato por ter crescido em um seguro e tranquilo bairro classe alta. (Em uma sociedade onde muitos bairros são fatais para quem mora neles, seja por terem sido abandonados pelo Estado e tomados por bandidos que se comportam como senhores feudais, seja por serem invadidos pelo Estado com a mesma truculência com a qual invadiriam um país inimigo, tratando todas as pessoas-cidadãs como bandidas e matando a torto e a direito.)

Sou grato por ter estudado nas melhores escolas particulares da minha cidade. (Em uma sociedade onde as escolas públicas, abandonadas pela elite cujas crianças não estudam mais nelas, formam um número assustador de analfabetas funcionais.)

Sou grato por não ter tido que trabalhar durante a minha infância e adolescência. (Em uma sociedade onde muitas crianças, além de estudar em escolas que não lhes formam, ainda precisam ajudar suas famílias com o seu próprio trabalho desde muito cedo, algumas vezes até mesmo voltando-se ao crime.)

Sou grato por ter crescido em um tranquilo ambiente familiar sem violência doméstica. (Em uma sociedade onde a violência doméstica, contra crianças e particularmente contra a mulher, é uma doença endêmica, gerando traumas psicológicos e físicos e até a morte, e naturalizando a violência doméstica para as futuras gerações.)

Sou grato por ter estudado em algumas das melhores universidades públicas do país e do mundo. (Em uma sociedade desigual e injusta, onde praticamente só as crianças da elite conseguem entrar nas melhores universidades gratuitas, pois tiveram dinheiro para frequentar escolas particulares, não precisar trabalhar e dispor do ócio de apenas estudar.)

Sou grato por ter tido a oportunidade de estudar fora do meu país. (Onde pela primeira vez pude contemplar minha sociedade com distância crítica e percebi que nossa outrofobia, nosso racismo, nossa desigualdade, nossa injustiça, nossa homofobia, nosso machismo, não eram a única maneira de organizar uma sociedade, que havia outros jeitos, outros caminhos.)

Mais do que tudo, sou profundamente grato por ter tido acesso a mestras e professoras, amigas e militantes, escritoras e estudiosas que me abriram os olhos quanto aos imensos privilégios que sempre desfrutei e ainda desfruto; que estimularam minha generosidade e minha empatia, minha militância e minha consciência; que me mostraram esses outros jeitos e outros caminhos.

Senão, eu poderia estar como a maioria das pessoas com quem cresci: sentadas no topo de uma formidável montanha de privilégios, sem nunca perceber sua condição de privilegiadas, reclamando de quem tenta chamar a atenção para seus privilégios, e obsessivamente tentando acumular mais e mais privilégios.

A maior graça pela qual sou grato é a de tentar conscientemente não ser mais assim.

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A ilusão da meritocracia

Nenhuma dessas graças que recebi foi mérito meu. Não posso me orgulhar de nenhuma delas. A meritocracia é uma mentira. Não existe, nunca existiu, não poderia existir. Se eu não tivesse recebido qualquer uma dessas graças, minha vida teria sido outra. Quem sabe, nem começasse. Quem sabe, acabasse muito mais cedo. Teria eu conseguido publicar livros ou fazer pós-graduação? Não ser estuprado, encarcerado, linchado? Quem sabe? Essas graças, cada uma delas, sem exceção, são privilégios.

Muitas vezes, quando digo que o Brasil não é um país meritocrático, alguém menciona alguma mítica pessoa-negra-favelada-trabalhadora cujo sucesso pessoal significaria obviamente que o racismo está resolvido e que as cotas raciais não são necessárias. Sim, uma pessoa favelada brilhante, competente e talentosa, se vencer todas as armadilhas da vida, pode teoricamente conseguir cursar uma universidade federal, abrir uma empresa, ficar rica – mas só se não errar nunca, se nunca cair em tentação, se nunca for morta de bala perdida ou torturada pela polícia, e tiver muita, muita sorte. É possível. Já o manto de privilégios que cobre as pessoas privilegiadas é tão espesso que não existem erros tão grandes, nem preguiça nem inépcia tão profundas, que lhes faça percorrer o caminho inverso. Sempre se dará um jeito. Podem ser assistentes administrativas do escritório do padrinho, balconistas da padaria da tia, sócia das amigas de infância que montaram empresa: “fica tranquilo, compadre, ele não é nenhum gênio, mas família é família, não?”

Outro enorme privilégio que nós, pessoas privilegiadas, raramente enxergamos, é o fato de quase todas as nossas pessoas amigas e familiares também serem privilegiadas, o que nos abre portas e nos concede oportunidades totalmente fora do alcance das pessoas marginalizadas. Pois um dos grandes empecilhos para o progresso pessoal e profissional de uma pessoa que nasceu em uma favela é o simples fato de que quase todas as pessoas do seu círculo familiar e de amizades provavelmente também nasceram em favelas e estão subempregadas. Uma médica negra oriunda de favela, por exemplo, além de não poder contar com a ajuda de sua família em termos de dinheiro ou de contatos (nenhum pai rico vai lhe montar um consultório, etc), quase sempre será ela a pessoa mais rica de sua família estendida e, se for uma pessoa decente, precisará imobilizar parte significativa de seu tempo e recursos ajudando parentes e amigas. Por tudo isso, e de um modo bem real, um médico negro, oriundo de uma favela, que ganhe R$10 mil por mês é significativamente mais pobre do que um branco classe alta que ganhe R$2 mil.*

Em um país injusto e desigual como o nosso, não é preciso ter lancha de quarenta pés ou ilha particular pra ser uma pessoa privilegiada. Se você está aqui, lendo esse texto, e não lavando chão em troca de um salário mínimo, provavelmente é uma pessoa privilegiada também.

[*Um estudo do IPEA revelou que, para as pessoas pobres, por mais escolarizadas que sejam, existe um teto socioeconômico do qual não conseguem passar, justamente por estarem fora das redes de contato e apadrinhamento das classes privilegiadas. Os dados estão no Comunicado do IPEA número 29, A Desigualdade no Desemprego no Brasil Metropolitano, lançado em setembro de 2009.]

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Renda ou patrimônio

Estou falando aqui de renda, pois é um dado não só mais fácil de conseguir no nível macro, como também no micro, ou seja, a maioria das pessoas sabe a própria renda. Mas a verdade é que renda, por si só, é um péssimo critério para medir privilégio, pois é um instantâneo do momento presente que às vezes não consegue captar as sutilezas da acumulação de capital. Patrimônio é um indicador mais importante de desigualdade, pois, ao ser transmitido de uma geração a outra, acaba reproduzindo injustiças históricas ao longo do tempo. Em 1988, por exemplo, a renda das pessoas negras norte-americanas de classe média era 75% de suas equivalentes brancas. Parece muito, e dá uma impressão de proximidade, de avanço, de “olha, estamos quase lá”, etc. Infelizmente, quando consideramos o patrimônio, a história é radicalmente diferente: o patrimônio das pessoas negras era 15% do das brancas.*

[*Os dados estão no primeiro capítulo de The Racial Contract, de Charles Mills, o melhor livro sobre racismo que já li.]

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O que é privilégio

Você, pessoa lendo esse livro, talvez não tenha tido os mesmos privilégios que eu, mas provavelmente também é uma pessoa privilegiada. Para começar, em um mundo desigual e injusto como o nosso, você já é uma pessoa privilegiada só por estar viva (outras menos privilegiadas morreram de doenças infantis facilmente evitáveis), ociosa (outras menos privilegiadas trabalham e estudam, ou trabalham vários empregos, e ainda cuidam das crianças e da casa, e não têm oportunidade alguma de ler textinhos na internet) e capaz de entender textos complexos como esse que está lendo agora (outras menos privilegiadas, a maioria das pessoas brasileiras, são analfabetas funcionais).

Uma possível definição de privilégio: uma faceta do nosso dia a dia que nos parece naturalizada e normativa, sobre a qual nunca pensamos porque sempre contamos com ela, mas que faz uma falta aguda e pronunciada às pessoas que não dispõem dessa vantagem. Por exemplo, uma mulher heterossexual não conta com várias “vantagens” masculinas que, para nós homens, são tão naturais que nunca nem pensamos nelas, como falar sem ser interrompida em uma reunião de negócios ou ter a temperatura do ambiente de trabalho sempre regulada para o seu conforto pessoal. Por outro lado, do ponto de vista de pessoas homossexuais, essa mesma mulher dispõe de vários privilégios com os quais elas apenas sonham, como tomar decisões médicas em nome da pessoa com quem está casada ou até mesmo simplesmente passear de mãos dadas com ela pelas ruas, sem medo de ridicularização ou violência.

O lugar onde o privilégio se revela mais claramente é no espaço público. No Brasil de hoje, quem pode caminhar pelas ruas feliz e despreocupado? Só mesmo homens brancos heterossexuais não portadores de deficiência.

Mulheres andam pelo espaço público como gazelas circulando entre leopardos, sempre na defensiva, com chave entre os dedos, andando rápido, sem poder sorrir ou fazer contato visual, ou se arriscam a ser alvo de atenções indesejadas. (Já disse uma amiga: “Adoraria poder andar tranquila como você anda, Alex, mas se ando pela rua devagar e passeando, sorrindo e fazendo contato visual, em poucos minutos algum homem pensa que estou flertando com ele e começa a me seguir”.)

Pessoas negras precisam tomar cuidado especial em como se vestem e como se movem, e a polícia não cansa de pedir que se identifiquem. (Uma vez, eu e um amigo negro perdemos um ônibus, que parou logo adiante, e eu sugeri corrermos para pegá-lo, e meu amigo suspirou: “Alex, um homem negro, de short e camiseta, não pode correr no meio da rua em Ipanema.”)

Pessoas homossexuais precisam falar, se mover, agir de modo diferente do que lhes seria natural, ou também arriscam a vida. (Conheço mais de um casal homossexual cuja relação acabou, ou foi seriamente abalada, por discutirem se seria seguro ou não se abraçar, se beijar, ou somente dar as mãos, nessa ou naquela vizinhança.)

Os exemplos poderiam se multiplicar ao infinito, incluindo pessoas trans, idosas, cadeirantes, etc etc. Como alguém pode se sentir cidadã plena de sua cidade e dona do seu destino se não consegue caminhar nem alguns poucos quarteirões em seu próprio bairro sem ser assediada? Sem que a polícia lhe obrigue repetidas vezes a provar que pode estar ali? Sem ter que tomar decisões estratégicas a respeito de dar ou não as mãos com a pessoa que ama?

Outra possível definição de privilégio: quanto mais livremente você dispõe do espaço público, mais privilegiado você é. Privilégio é andar pelo espaço público como se ele tivesse sido feito para você, para seu conforto.

Mais do que tudo, privilégio é ter escolhas. Ser privilegiado é poder escolher se hoje você quer andar rápido ou devagar, sorrindo ou não, fazendo contato visual ou não, correndo atrás do ônibus ou não, de mãos dadas com a pessoa que ama ou não. Ninguém pode fazer tudo o que quer. Mas, quanto mais privilegiados somos, mais escolhas temos a nossa disposição.

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O privilégio é um contínuo multidimensional

Em uma hierarquia, sempre sabemos quem está por cima. Um soldado está sempre abaixo de um general. Nunca há dúvidas. Quando há dois capitães, o mais antigo está sempre acima do mais novo. Ponto. O sistema foi pensado para que nunca exista espaço para dúvida.

Não existe “hierarquia de privilégios” justamente porque o privilégio é muito mais complexo do que as simples duas dimensões de uma mera hierarquia: o privilégio é um contínuo multidimensional.

Em 2014, depois de sofrer repetidas cantadas de um porteiro inconveniente, uma estudante de classe alta de Copacabana, bairro nobre do Rio de Janeiro, finalmente partiu para o contra-ataque. “Sou moradora do Posto 6!”, retrucou ela, entre vários outros marcadores de classe: enfatizou que ele era porteiro, ameaçou falar com o síndico, disse que iria perder o emprego, etc. A interação foi filmada por uma repórter de O Globo: o homem, pobre, parece estar usando seu privilégio masculino para compensar sua subalternidade social; já a moça, em resposta, ativa seus privilégios de classe para se defender da ofensa sofrida pelo crime de ser mulher no espaço público. A escritora Juliana Cunha resumiu assim o episódio: ele disse “tenho pinto” e ela respondeu “moro na Francisco Sá”.

Se não faz sentido debater quem está errado (pois obviamente é o assediador), o episódio pode gerar outras conversas: o que acontece quando privilégios entram em confronto? Em nossa sociedade patriarcal e capitalista, vale mais ser homem ou ser classe alta? Quem é o mais privilegiado nesse cenário? Dá pra saber? Faz sentido tentar ranquear privilégios?*

O contínuo multidimensional de privilégios de uma sociedade complexa como a nossa é tão complexo quanto ela. Cada uma de nós existe em um ponto diferente, fluido e mutável, desse mesmo contínuo de privilégios. Ninguém tem direito de se instituir em tribunal dos privilégios alheios, determinando quem é privilegiada ou não, mas sempre podemos refletir sobre os nossos próprios: afinal, onde nós achamos que estamos nesse contínuo de privilégios?

[*Juliana conta essa história no texto “Um pinto contra Francisco Sá”, que saiu no blog do Instituto Moreira Salles no dia 5 de junho de 2014.]

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Visualizar privilégios*

Nossa sociedade não se organizou sozinha, nem caiu pronta do céu: foi organizada por muitos homens (ênfase em homens), ao longo de muitos séculos, e obedece, em larga medida, aos interesses de quem a organizou — interesses muitas vezes conflitantes e contraditórios, pois a sociedade é fruto não de uma conspiração a portas fechadas, mas de um longo processo social e político. No caso do Brasil, nossa sociedade foi engendrada por uma elite machista, classista, hierarquizada, racista, paternalista, hipócrita e autoritária, e continuamos funcionando de acordo com esse paradigma outrofóbico até hoje, mesmo que sob o verniz da democracia e do Estado de Direito. Então, se todas as pessoas brasileiras magicamente deixarem de ser outrofóbicas mas as estruturas e instituições permanecerem inalteradas, essa nossa hipotética sociedade sem machistas e sem racistas continuará intrinsecamente machista e racista, e marcada pela mais profunda outrofobia, pela mais crônica desigualdade racial e de gênero. O baralho que herdamos já está viciado para beneficiar sempre um tipo específico de jogador. Não basta que os jogadores beneficiados simplesmente não trapaceiem — pois, mesmo assim, vão continuar magicamente ganhando todas as partidas. É necessário trocar de baralho.

Quando percebemos e afirmamos nossa condição de pessoas privilegiadas, não estamos nos gabando. Pelo contrário, reconhecemos nossos privilégios porque só assim podemos abrir mão de alguns deles em prol de quem têm menos ou compensar as pessoas desprivilegiadas por tudo que recebemos em excesso. Sermos pessoas privilegiadas não faz de nós as vilãs, as monstras, as inimigas. Não significa que somos culpadas pelos crimes da nossa sociedade outrofóbica. Mas significa que, como beneficiárias desses crimes, temos a responsabilidade de nos tornar parte da solução e não do problema.

Nunca teremos tido outras vidas que não as nossas. Um homem jamais saberá como é a sensação de ter um encontro romântico, às vezes até com um conhecido, às vezes dentro da própria casa, e temer ser estuprado. Uma pessoa heterossexual jamais saberá como é a sensação de descobrir em si mesma os primeiros desejos sexuais e perceber que são por pessoas do mesmo sexo. Uma pessoa branca jamais saberá como é a sensação de ser constantemente parada pela polícia e tratada como criminosa só por causa da cor da sua pele. Não podemos estalar os dedos e nos transformar no que não somos.

Mas não precisamos ser mulheres para lutar contra o machismo, nem pessoas negras para lutar contra o racismo. Não é necessário sofrer algo na pele para ter empatia por quem sofre. É possível transcendermos nossa outrofobia, nossa criação, nosso passado, nossa classe social, nosso gênero, nossos preconceitos. Podemos ser maiores que nossas caixinhas.

Se não somos culpadas por nossos privilégios, se eles são resultados de ações tomadas muito antes de nascermos, então, nada poderia ser mais autocentrado do que a infinita masturbação mental de passar horas e horas girando em torno de nossos próprios Eus, remoendo nossas falas e atos, nos martirizando de culpa por privilégios que não criamos. Mas, se culpa é paralisante, falar de responsabilidade é energizante. O que podemos efetivamente fazer?

O primeiro passo é aprendermos a ouvir.

Não é que sejamos ignorantes porque não conhecíamos nossos privilégios: é que nossos privilégios, por definição, são tudo aquilo que ignoramos e que nossa própria experiência de vida nos ensinou a naturalizar e a normalizar. Privilégio masculino é tudo aquilo que um homem não vê justamente por ser homem, mas que está visivelmente ausente e dolorosamente palpável na vida das pessoas que não são. Privilégio heterossexual é tudo aquilo que uma pessoa hétero não vê justamente por ser hétero, mas que está visivelmente ausente e dolorosamente palpável na vida das pessoas que não são. E assim por diante.

Se o privilégio é invisível por definição, a única maneira de percebê-lo é se abrindo para as experiências e relatos das pessoas que o enxergam, das pessoas que sentem a dor da sua ausência. Por isso, quando uma outra pessoa estiver relatando preconceitos que nunca sofremos e nunca sofreremos, a única reação aceitável é ouvir e acolher. Quando uma mulher relata a um homem como é opressor levar cantadas de rua, não cabe a ele minimizar algo que ela sente que a oprime, uma experiência que ele nunca viveu nem viverá: “Ah, que besteira, eu me sentiria lisonjeado!” Quando um homem negro relata a uma pessoa branca como é opressor sempre ser interpelado pela polícia, não cabe a ela minimizar algo que ele sente que o oprime, uma experiência que ela nunca viveu nem viverá: “Ah, que besteira, você vê racismo em tudo!”. (Em ambos os casos, a opressão não é necessariamente receber uma cantada ou ser parado em uma blitz, mas a experiência de passar por isso continuamente ao longo de toda uma vida.) Se queremos visualizar nossos privilégios, devemos começar nos abrindo às experiências das pessoas que não os têm: ouvindo e abraçando, aceitando e acolhendo, sem interpelar nem minimizar.  

[*“Visualizar o privilégio” é a 13ª prática do meu livro Atenção. Essa subseção parafraseia alguns trechos.]

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Merecemos nossos privilégios?

Quando falamos “eu mereço”, o quê merecemos?

Sempre que usamos a frase “eu mereço” é porque estamos prestes a fazer besteira. Pior: normalmente, uma besteira relacionada ao consumo. Não dizemos “eu mereço comer uma deliciosa e saudável saladinha orgânica”, e sim “eu mereço tomar um milkshake desta mega corporação que paga mal seus funcionários e faz propagandas que remetem à felicidade e padrões de sucesso”. Não pensamos “eu mereço ir caminhar pela praia numa manhã fresca”, e sim “eu mereço passar o dia inteiro maratonando seriados babacas e cheios de violência.” Nossas vidas são programadas para que essa frase seja seguida de consumo. Todo dia merecemos enfiar o pé na jaca porque o trabalho foi duro (se não fosse duro, não seria trabalho) ou porque estamos engolindo sapos, ou porque finalmente chegaram as férias. Uma vida que nos esgota menos também nos faz precisar compensar menos. De forma bem prática, vivendo com menos dinheiro e menos demandas, deixamos de “merecer” o consumo, pois ele se torna menos necessário.*

Uma vez, andando de mãos dadas com minha então-namorada e hoje grande amiga Carol, em meio a um dia absolutamente perfeito, ela suspirou, feliz:

— Você acredita que, até pouco tempo atrás, eu achava que não merecia um dia tão lindo e tão incrível, uma felicidade tão gostosa como essa?

E eu, apesar do medo de estragar nosso dia perfeito, comentei:

— Mas não merece mesmo.

O que seria isso de “merecer”? Merecer como? Merecer por quê? Como alguém faria para merecer essa felicidade? Mais importante, o que faria alguém des-merecer? Achar que não merecemos ser felizes é péssimo, mas achar que merecemos é quase tão ruim quanto, porque ainda estamos presas na mesma falsa dicotomia. Afinal, se eu mereço esse dia tão perfeito é porque existe gente que não merece. Quem são essas pessoas? O que elas fizeram? Ou, pior, se tem gente que merece um dia perfeito também tem gente que merece um dia trágico: meu amigo surfista Fábio mereceu o dia em que capotou com o carro e perdeu o braço? (Ele hoje surfa com uma prótese de pé de pato.) As pessoas pobres mereceram ser pobres? As pessoas com câncer mereceram seu câncer? Todas temos dias bons e ruins: eu não mereço nem o dia perfeito com a minha namorada nem o dia trágico em que perdi o braço. Merecimento não entra na questão. O universo me dá uma mão de cartas e me questionar se mereci ou não essas cartas não me ajuda em nada a fazer o melhor jogo possível com elas. Pelo contrário, na pior das hipóteses, se acho que não mereço, fico insegura, com baixa auto-estima, paralisada; na melhor das hipóteses, se acho que mereço, fico arrogante, complacente, paralisada.

A introspecção é sempre paralisante: além de egocêntrica e narcisista, ela não me coloca nem um passo mais perto de aprender a lidar melhor com as circunstâncias da minha vida, sejam elas positivas ou negativas. Para mim, a ideia de “merecimento” parece competitiva e capitalista, hierárquica e fatalista. Prefiro abandonar o conceito. Eu não mereço nada.

[*Esse será um dos temas da Prisão Trabalho, mais adiante.]

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A dimensão moral da sorte*

Não falo em “mão de cartas” à toa. Poucas atitudes podem ser mais políticas e revolucionárias do que reconhecer a dimensão moral da sorte.

Fiz boa parte da minha pesquisa de mestrado e doutorado em Cuba. Estive no país inúmeras vezes, trabalhei, fiz pesquisa, publiquei livro, palestrei. Amo Cuba. Quando estive em Cuba em 2016, lançando a edição cubana da Autobiografia de Juan Francisco Manzano nas feiras do livro de Havana e de Matanzas, surgiu a oportunidade de finalmente morar lá, dando aulas de português no ano letivo de 2016-2017. Mas eu não quis. Em Cuba, tenho amigas e leitoras, colegas de trabalho e parceiras de pesquisa, já visitei suas casas, já lhes trouxe papel higiênico do Brasil, conheço na pele as dificuldades. Graças ao criminoso bloqueio estadunidense que permite que a ditadura tenha a desculpa perfeita para se eternizar no poder, a vida em Cuba é dura, é difícil. Eu, hoje, sendo a pessoa que sou, teria uma vida pior em Havana do que no Rio de Janeiro.

Mas se você me perguntar onde eu preferiria nascer de novo, se em Cuba ou no Brasil, eu responderia sem hesitar Cuba. Porque, nascendo no Brasil, minhas chances de não ter esgoto tratado, passar fome, dormir na rua, não ter acesso a livros, morrer de tiro, são muito grandes – podemos debater o quão grande, mas é grande. Em Cuba, é quase zero para todas elas. No Brasil, só tem uma vida digna quem deu muita, muita sorte.

Reconhecer o impacto existencial dessa sorte, entretanto, é disparar um tiro de morte em um dos mitos mais poderosos da contemporaneidade: a meritocracia. As nossas pessoas ricas, ao mesmo tempo em que as pessoas ricas fazem de tudo para não admitir que são ricas, também adoram enfatizar seu mérito por suas próprias conquistas. Aliás, não são dois movimentos simultâneos, mas o mesmo movimento: não tem como criar a narrativa de sua própria ascensão vitoriosa se ela começa com um empréstimo do seu próprio pai ou se você trabalha na empresa de sua família.

Poucos exemplos são melhores do que essa matéria da Veja: “Luciana Salton: Sobrenome não garante emprego”, cujo lide é “A diretora executiva da vinícola que leva o sobrenome de sua família fala de sua atuação e do grande impacto da quarentena no mercado de vinhos”.** O grotesco é tão escancarado que quase parece ironia intencional da repórter. Já o ex-presidente Donald Trump deu o pontapé inicial em sua duvidosa carreira de empreendedor com um empréstimo de um milhão de dólares de seu pai e outro, de nove milhões, dando sua futura herança como garantia.

Nesse sentido, cutucar pessoas ricas e bem-sucedidas e lhes lembrar da importância da sorte em suas vidas, como o escravizado que seguia os vitoriosos generais romanos, é considerado quase um insulto, pois equivale a minar sua própria tão bem construída autonarrativa: “memento mori”, diziam os escravizados aos generais, ou seja, “lembre-se que vai morrer”. “Memento fortuna”, diria eu: “Lembre-se que foi sorte”.

As pessoas ricas não reconhecem sua sorte pelo mesmo motivo que não reconhecem sua riqueza: porque fazer isso levantaria questões desagradáveis que não querem responder. Afinal, se tudo foi sorte, o quanto devem, pessoalmente, às pessoas que tiveram menos sorte?

Via de regra, quanto mais acreditamos em nosso mérito, ou seja, em nosso controle sobre as circunstâncias de nossa vida, mais aceitamos que as pessoas merecem as vidas que têm e, portanto, mais nos conformamos ao status quo. Por outro lado, se reconhecemos que nossas vidas são largamente determinadas por eventos fora de nosso controle, então é mais provável de sentirmos compaixão e de enxergarmos com generosidade aquelas pessoas que não tiveram a mesma sorte que nós. Em outras palavras, se reconhecemos o papel preponderante da sorte no destino das pessoas, então, aliviar o sofrimento causado pela má sorte transforma-se, por si só, em um projeto moral.

Desconstruímos o discurso meritocrático quando reconhecemos o quanto do nosso mérito foi pura sorte, uma sorte que já começa antes mesmo de nascermos. Nos Países Baixos, a geração de crianças nascida de mães subnutridas durante a ocupação nazista é até hoje mais baixa e menos saudável do que as gerações anteriores e posteriores. Existem pessoas idosas ainda hoje sofrendo os efeitos da fome que suas mães passaram durante a gravidez em 1944. Nós não somos responsáveis pelas circunstâncias que envolveram nossa concepção, a gravidez de nossas mães e nossos primeiros anos. Nada disso não é nem nosso mérito nem nosso demérito. Ainda assim, essas circunstâncias determinam, em grande medida e de várias maneiras diferentes, o sucesso que teremos na vida.***

Discute-se muito se somos mais influenciadas por nossa genética ou por nosso meio ambiente, mas, na prática, ambos simplesmente acontecem conosco por pura sorte ou azar. vários estudos demonstram que os cuidados que recebemos em nossas primeiras horas, dias, meses, anos de vida são fundamentais para determinar nosso temperamento e como vamos reagir aos imprevistos da vida, se seremos otimistas ou pessimistas, autoconfiantes ou inseguros, etc. Então, digamos que eu considero que mereço meu sucesso porque, afinal, sou uma pessoa que enfrentou todos os desafios da vida com otimismo e autoconfiança. Bem, o quanto desse otimismo e autoconfiança foi mérito meu e o quanto foi simplesmente eu ter tido a sorte de nascer de pais que fizeram tudo certinho para estimular essas características durante os meus primeiros anos de vida?

Em outras palavras, é fácil ver que a herdeira da Salton, trabalhando na empresa da própria família, ou Trump, que começou nos negócios com o empréstimo do pai, não se fizeram “por conta própria” mas sim contaram com a substancial ajuda de uma herança. Mas, mesmo para nós que não herdamos grandes fortunas, também é importante nos darmos conta que tudo o que somos, nosso temperamento, nosso otimismo ou nossa insegurança, também foram igualmente herdados.

Não estou dizendo aqui que não podemos mudar. Se não pudéssemos, esse próprio Livro das Prisões perderia a razão de ser. Nosso livre-arbítrio para nos autoconstruirmos será o tema de uma das últimas e mais importantes Prisões, a Prisão Liberdade. Pois nossa herança, ao nascer, é um dado: nossas ações, ao longo da vida, é que podem ou multiplicá-la ou extingui-la.

Poucas desculpas, para qualquer coisa, sejam positivas ou negativas, podem ser mais patéticas do que “fui criada assim”. Por óbvio, todas nós fomos criadas de um determinado jeito. E, mais obviamente ainda, todas nós podemos, em larga medida e dentro de certas limitações, tentar nos recriar para sermos pessoas diferentes. Nossa criação não é uma âncora que nos condena a nunca navegar para longe daquele pequeno círculo que nossos pais e as circunstâncias da vida moldaram para nós. Pelo contrário, e trocando de meio de transporte no meio da metáfora, nossa criação é uma pista de pouso e decolagem. Cada uma de nós recebe uma pista diferente, algumas bem mais acidentadas que outras – uma boa definição de privilégio é a qualidade de nossa pista. Ao longo da vida, podemos tentar asfaltá-la, ou, pelo contrário, deixar esburacar. Tem gente que fica taxiando na pista a vida inteira e nunca nem tenta decolar. Tem gente que decola aos trancos e barrancos, e se espatifa. Tem gente que voa. Mas se eu não acreditasse que todas nós podemos ao menos decolar, não faria sentido escrever um livro sobre as Prisões. Reconhecer a dimensão moral da sorte é enxergar que nem todo mundo teve uma pista de decolagem tão plana e bem asfaltada como a nossa. Se estamos voando, o que devemos a quem ainda está tentando decolar?

Reconhecer a dimensão moral da sorte é uma atitude revolucionária, que desnuda privilégios e desconstrói a ordem estabelecida. Não por negar nossa autonomia ou liberdade individual, não por negar nossa responsabilidade por nossos atos ou pelas conseqüências que colhemos deles, mas simplesmente por reconhecer que, assim como ninguém “merece” ser sem teto, ninguém também merece ser bilionário. Somos todos, em larga medida, o produto de circunstâncias fora de nosso controle.

Somos maquininhas de inventar justificativas para os nossos comportamentos.  Quando fazemos tudo certo, o mundo precisa reconhecer isso e nos premiar — ou é muita injustiça! Quando agimos errado, é porque foi um lapso, uma fraqueza, uma exceção, e o mundo precisa reconhecer isso e nos entender — ou é muita injustiça! De um modo ou de outro, julgamos as outras pessoas por suas ações e queremos ser julgadas por nossas intenções.

Mas o que acontece quando invertemos isso? No budismo, um bodisatva é a figura mítica que se iluminou, mas que se recusa a entrar no nirvana até que todos os seres sencientes se iluminem também. Nós também, em nossas vidas, podemos nos recusar a aceitar a desigualdade, a injustiça, o azar. Especialmente da Outra pessoa.****

[*Essa subseção parafraseia trechos do artigo “The radical moral implications of luck in human life“, de David Roberts, publicado na Vox, em 17 de fevereiro de 2020.]

[**Publicada no site da Revista Veja no dia 22 de setembro de 2020.]

[***Para mais informações e links para os artigos científicos, confiram a matéria “The Famine Ended 70 Years Ago, but Dutch Genes Still Bear Scars“, publicada no New York Times de 31 de janeiro de 2018.]

[****Falo mais sobre a importância política da figura do bodisatva na introdução do meu livro Atenção.]

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Conclusões

Toda identidade é, por definição, exclusionária: somos algo (aquarianas, brasileiras, classe alta, etc) porque não somos infinitas outras coisas (leoninas ou arianas, uruguaias ou chinesas, classe média ou classe baixa). E tudo bem. O problema nunca é termos nossa idade ou sermos quem somos. O problema é tudo aquilo que não enxergamos, que não percebemos, que não reconhecemos porque a posição que ocupamos nos impede, nos bloqueia a vista e nos embota a percepção.

Nossa identidade de classe pode ser uma prisão porque ela é, antes de tudo, insidiosa: muitas vezes, não sabemos, ou nos recusamos a reconhecer, nossa classe social, e, mesmo assim, ou apesar disso, ela determina nossas amizades, nossas roupas, nossas leituras, nossos sotaques, nossos trabalho.

Não foi à toa que, no Manifesto Comunista, o grito de guerra era para que os “trabalhadores de todos os países” se unissem. Pois, para Marx e Engels, um trabalhador inglês e um trabalhador belga tinham mais em comum, desde interesses até traumas, do que um trabalhador espanhol e seu patrão espanhol. Mais ainda, ambos escreveram nesses termos pois sabiam estar nadando contra a corrente: a partir da ascendência do nacionalismo em começos do século XIX, a tendência ideológica das pessoas européias era sempre se identificarem, e se unirem, em nacionalidades e não em classes.

E, se a nossa identidade de classe é insidiosa por ser tão esfumaçada, nossa identidade nacional é violenta por ser tão escancarada, por nos ser enfiada goela abaixo tão sem cerimônia, por sermos obrigadas até mesmo a jurar que morreremos por ela. As pessoas muitas vezes não sabem, ou não querem saber, sua classe social, mas todas sabem sua nacionalidade.

Na Prisão Classe, vimos como nossa identidade de classe nos aprisiona; na Prisão Patriotismo, veremos que nossas muitas identidades tribais, seja nacional, regional, estadual, também. Mas faz sentido isso? Além da nossa criação, existe uma essência brasileira, baiana, carioca? Somos seres gregários que só sabem existir em grupos, mas como existir coletivamente sem xenofobia contra outros coletivos? O politicamente correto, ao garantir a cada grupo a chance de se autonomear, incentiva o patriotismo dos pequenos, dos derrotados, dos invisibilizados, e ajuda a esvaziar a violência dos grandes patriotismos hegemônicos.

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Excurso I

O uso da língua é uma questão de classe

Algumas das pessoas mais consientes e politizadas que conheço, que jamais discriminariam alguem por sua raça, cor, credo, genero, orientação sexual, etc, são as que tem mais orgulho de alardear seu imenso preconceito linguístico: dizem que “brocham na hora com um erro de portugues”, jamais levariam para apresentar a mãe um namorado que falasse “Cráudia”.

Mais o que está por trás de tanta ojeriza? O que realmente não toleram as pessoas que não toleram “erros de português”?

O que não toleram é o Outro: a pessoa diferente, a que veio de longe, a que fala com sotaque desconhecido e, em especial, a que é mais pobre. Não tem como falar de língua sem falar de classe: hoje, dizer que não toleramos “erros de português” é uma das maneiras mais socialmente aceitáveis de dizer que “odiamos pobre!”

[*Esse texto parafraseia o excelente e indispensável Preconceito linguístico. O que é, como fazer (1999) de Marcos Bagno.]

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Não existe isso de erros de português

Não existe isso de erro de portugues.. Ou melhor, até existe, mas são cometidos por pessoas falantes de outras línguas tentando aprender português. Quem é falante nativa de português por definição domina o português. Se ela fala de um jeito X (mesmo se esse jeito X parecer errado e até incompreensível para outras pessoas) é por que esse jeito era falado pelas pessoas à sua volta enquanto crescia e hoje é mutuamente compreensível entre ela e as outras falantes com quem se comunicam e interagem. O que se pode cometer, são desvios em relação à ortografia, à gramática, etc, de outras variantes da língua.

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Nem todas as variantes são criadas iguais

Cresci em uma praia de surfistas e minha língua-mãe (uma delas!) é o surfistês carioca. Até hoje, uma palavra que faz parte do meu vocabulário e das pessoas que cresceram comigo é “haole”. Demorei muito pra descobri que essa palavra era incompreensível às vezes até para pessoas de bairros próximos — mais por outro lado, que era compreensível para surfistas em todo mundo. (Pra mim, criança, era só uma palavra como todas as outras!) Todo jargão ou gíria é por definição exclusionário e a palavra haole mais ainda: na prática, ser haole é justamente não conhecer a palavra haole. Surfistas são muito territoriais e tendem a sempre surfar na mesma praia. Haole então é a surfista de outra praia, a pessoa que não surfa aqui, de fora, estrangeira.

Se uma pessoa da favela, por exemplo, seria haole na praia, por não dominar aquela variante específica do portugues, uma pessoa surfista seria igualmente haole, ou melhor, “bacana”, “pleiba”, “maurício”, etc, no morro, onde ela também não domina os código lingüístico. Não é nem pior nem melhor dominar ou ignorar essa ou aquela variante do português. Somos todas “analfabetas funcionais” em infinitas variantes da nossa própria lingua. A diferença é o capital sociocultural de quem fala: enquanto que o código do surf é associado com pessoas loiras e bronzeadas, a variante das moradoras de favela é “gíria de marginal”.

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Não existe isso de norma culta

Se digo que não existe erro de português, somente desvios em relação a diferentes variantes da língua, uma pessoa poderia responder:

 — Ok. Então é importante cometermos o mínimo possível de desvios em relação a variante chamada de ‘norma culta’ não?

Mas qual norma culta? Sempre que me perguntam, se pode isso ou aquilo (“10% das pessoas trouxe” ou “10% das pessoas trouxeram”, “brocha” ou “broxa”), e eu dou a mesma resposta: só o fato da dúvida ter surgido já indica uma fortissima probabilidade de ambas as formas serem aceitáveis. Por exemplo, se me perguntam como usar “onde” e “aonde”, eu posso até dar a explicação tradicional mas também vou dizer que na prática no Brasil de hoje, as duas palavras são usadas intercambiavelmente. Algumas vezes a pessoa fica indignada, e responde:

— Não de acordo com a norma culta, né, Alex? Eu quero saber o certo!

Esse é o problema: quem determina esse “certo” da “normal culta”? Alguns gramáticos preescrevem uma regra bem específica para onde/aonde e determinam que na norma culta do português é assim e pronto. Mas em seus textos, músicas e poemas, vários dos nossos grandes nomes, como Machado de Assis e Chico Buarque e Manuel Bandeira, quebraram essa tal regra repetidas vezes. E aí? Se Machado e Chico e Bandeira “dizem que pode”, ou seja, usam; se falantes razoavelmente cultas, como eu e minha interlocutora em dúvida, não sabemos qual usar ou dizemos que tanto faz; e se alguns gramáticos prescritivistas que se arrogam donos da lingua dizem categoricamente que não…. o quê fazer?

Não conseguimos descobrir qual é o certo, mas descobrimos talves uma coisa muito mais importante: que não existe consenso sobre essa tal norma culta. (Eu, pessoalmente, vou estar sempre do lado de Machado, Chico, Bandeira contra qualquer ditadorzinho da gramática.) Então, quando encontrarmos o próximo “guardião da norma culta” querendo nos impor suas regras sobre o nosso uso de nossa língua, cabe perguntar: guardião de qual norma culta? com que direito?

Não existe a “língua portuguesa” de um lado e as suas variantes do outro: uma lingua é o conjunto das suas variantes. Todas as falantes nativas de portugues dominam o português. Nenhuma falante nativa de português é pior que outra se não domina, além de sua própria língua, também as intrincadas regras ortográficas e gramaticais das diferentes variantes da norma culta. A “norma culta escrita” é somente uma dessas entre muitas.*

[*Essa discussão específica, com todas as citações de Machado, Chico e Bandeira “errando” o aonde, está no terceiro capítulo de Preconceito linguístico. O que é, como fazer (1999) de Marcos Bagno.]

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A língua é uma questão de classe

Falar de língua é falar de classe, e de poder, de subalternidade. Quando as pessoas comessam a discutir a língua, estão sempre discutindo tudo, menos a língua. O uso da língua é uma das mais eficientes ferramentas de opressão, de silenciamento, de submissao. Pelo uso da língua, marcamos e identificamos a nossa imensa desigualdade social: pelo uso da língua, sabemos quem são as pessoas privilejiadas e quem são as subalternas, as outras, as feias, as que moram longe, as caipiras.

Aqui, no sudeste, região mais rica do Brasil, muitas pessoas fazem pouco do sotaque nordestino como por exemplo falar “oitcho” ao invés de “oito”. Aparentemente, é engraçado, ridículo, errado, atrasado, etc etc, pronunciar um “tch” aonde só deveria a ver um “t”. Entretanto, essas mesmas pessoas, ao falarem a palavra “titia”, pronunciam “tchitchia” — o mesmíssimo fonema de “oitcho”. (Os cariocas apenas forçam mais esse chiado, mais os paulistas pronunciam o mesmo fonema. Para pronunciar essa palavra sem o “tch”, seria preciso pronunciar o “t” com a língua entre os dentes.) Claramente, o problema não é pronunciar “tch” ao invés de “t”: o problema é a pessoa ser nordestina.*

Eu nunca vi hábito lingüístico de pessoas ou regiões ricas ser estigmatizado como erro. Ninguém vira o olho pra reclama de como as pessoas do Morumbi falam, ou para faze pouco do sotaque do Leblon. Não é por que essas pessoas falam certo: é por que são essas pessoas que decidem o que é o certo. Às vezes alguma pessoa amiga incorpora Caco Antibes e me desafia:

 — Mas Alex, você tem que concordar que pobre fala portugues todo errado!

E eu respondo:

 — Concordo! Mas é uma tautologia. Não é que a pessoa mais pobre fala errado a sua própria língua nativa, o que por definição seria impossível, mas simplesmente que a variante do português falada pela pessoa mais pobre é considerada errada justo porque é falada por pessoas mais pobres!

[*O exemplo está desenvolvido no primeiro capítulo de Preconceito linguístico. O que é, como fazer (1999) de Marcos Bagno.]

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A língua é orgânica, a ortografia é política

Assim como uma resseita de bolo não é um bolo e um mapa mundi não é o mundo, a ortografia não é a lingua. Talvez mais importante, não só os bolos, e o mundo, e as línguas, podem existir sem as receitas, os mapas e os manuais de redassão, como também eles existiam antes de existirem receitas, mapas e manuais de redação. As gramáticas, dicionários, etc, existem para descrever como é a língua que nós, as pessoas falantes, já usamos, e nunca para nos dizer-nos como deveríamos usar nossa própria língua. Uma gramática prescritiva faz tão pouco sentido quanto uma “cartografia prescritiva”: imaginem um mapa que, ao invés de descrever o Brasil como ele é, acressenta algumas baías à costa do Rio Grande do Sul, por que, a final, não tem ancoradouro nenhum entre Laguna e Rio Grande, assim fica impossível velejar! Mais do que isso, uma língua é uma construção milenar e coletiva.Falar em erro de portugues faz tão pouco sentido quanto falar em “erro de continente” ou em uma flor errada. O continente, a flor, a língua não tem como estar errados. Eles apenas são.

Porém, se a língua é um fenômeno cultural e orgânico, a ortografia, gramática, etc, são decisões politicas, que pode ser mudadas de acordo com os ventos políticos de uma época — tanto que já tivemos diversas reformas ortográficas e, hoje, em Portugal, ainda se está debatendo ferosmente nos jornais o acordo ortográfico que aqui aceitamos sem polêmica.

Igualmente, o “bom português”, as regras de estilo, “os erros que doem no ouvido” são questões sociais, quase sempre invariavelmente ligadas a classe social de quem fala e de quem escuta e julga. Afinal, nem todos os “erros” são iguais: quase sempre, os “erros que doem no ouvido” de alguém são aqueles cometidos por pessoas tidas como inferiores, nunca os que ela e as pessoas de sua classe social cometem. Em outras palavras, porque “Cráudia” dói o ouvido, mas flexionar o verbo “haver” não?

Não tem como uma falante nativa estar errada em relação à sua própria língua, ou seja, cometer um erro de português, mas tem como ela estar errada em relação a ortografia e ao “bom português” da variante da língua falada pelas pessoas privilegiadas. Afinal, tanto essa ortografia quanto esse tal “bom português” são convenções sociopolíticas arbitrárias criadas e utilizadas pelas pessoas privilegiadas, em grande parte, para indentificar e excluir as pessoas desprivilegiadas.

Por isso, o ensino da língua portugueza nas escolas, em especial para pessoas desprivilegiadas, têm como objetivo não corrigir o português falado por elas (que, denovo, por definição, nunca está errado) e muito menos para que se adaptem as regras arbitrárias convencionadas pela sociedade que lhes oprime e silencia, mas para que possa se apropriar desse “dialeto do prestígio” e utilizá-lo para melhor lutar por seus direitos, participar da política e dialogar com o poder.*

O maior de todos os haoles é sempre a pessoa mais pobre. A Prisão Classe se chama Classe justamente porque a desigualdade social é parte integrante de todos as outras: o mundo é misógino com todas as mulheres, mas as pobres sofrem mais, e assim sucessivamente.

[*Quem fala sobre “dialeto do prestígio”, entre outras, é Magda Soares, em Linguagem e Escola – Uma Perspectiva Social, de 1986.]

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Pessoas que corrigem pessoas

Utilizar a lingua para julgar, rotular, discriminar já seria ruim o sufissiente. Não satisfeitas, algumas de nós fazem pior: corrige publicamente ao mesmo tempo humilhando alguém e também pavoneando seus próprios conhecimentos. As rudes praticantes dessa arte negam: “foi na boa”, “pra ajudar”, “gosto de ser corrigida quando erro”, etc…. Mas, incrivelmente, corregir alguém “na boa” e “pra ajudar” é simples: basta puchar a pessoa para o canto da sala, ou mandar uma mensagem privada, e faze a correção em termos cuidadosos, para que ela não se sinta (ou se sinta menos) inferiorizada ou envergonhada. Quem perde a amiga pra não perder a correção, tem prioridades bastante distorcida.

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Quem merece nosso respeito?

Ao ler esse texto, muitas das minhas amigas conscientes e politizadas negaram veementemente que o seu preconsseito linguístico fosse “elitista”. Pelo contrário, respeitam (e lamentam) os “erros” de portugues das pessoas menos privilejiadas. Seu problema, dizem, é outro. Abaixo, um email representativo que recebi:

“Desculpas, mas, sinceramente, tenho preconceito contra aqueles que tiveram acesso a melhores escolas que eu, ou iguais em nível, mas mesmo assim escrevem errado. E eu não consigo encontrar nessas pessoas que eu conheço interesses legítimos que justifiquem tamanho descaso com o estudo de uma coisa que julgo básica — nossa língua. E eu sei que já estou sendo preconceituosa em meu comentário.”

Digamos que possa existir preconceito linguístico desvinculado a preconceito de classe (eu duvido) — mas… e daí? Porque respeitamos mais uma pessoa que investiu horas aprendendo as regras bizantinas da hifenização do que uma que, tendo essas horas para dedicar, preferiu investí-las em dominar outras atividades, sendo uma ouvinte melhor, praticando caligrafia, fazendo origami, surfando, ou literalmente qualquer outra coisa? Porque nos é tão intolerável que outras pessoas tenham outros valores e outras prioridades?

Respondi à minha leitora com uma variação do seu email original, reescrito por uma suposta engenheira capaz de fazer complicados cálculos de cabeça:

“Desculpa, mas sinceramente, tenho preconceito contra aqueles que tiveram acesso a melhores escolas que eu, ou iguais em nível, mas mesmo assim fazem conta errado. E eu não consigo encontrar nessas pessoas que eu conheço interesses legítimos que justifiquem tamanho descaso com o estudo de uma coisa que julgo básica — nossa aritmética! E eu sei que já estou sendo preconceituosa em meu comentário.”

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Porque tanta ojeriza?

Digamos que uma pessoa investiu treze anos de ensino e muito sacrifício para aprender um conjunto de regras intrincadas e arbitrárias, tudo para que nunca passe pela vergonha de ser confundida com “uma ignorante que não sabe falar português”. Se alguém perto dela cometer algum desses erros e não for imediatamente humiliada como “uma ignorante que não sabe falar portugues”, é como se todo aquele esforço tivesse sido em vão. Sempre que uma pessoa que segue as regras (quaisquer regras) ataca violentamente uma pessoa que não fez nada contra ela e que não lhe incomoda em nada, mais que simplesmente não segue aquelas mesmas regras, esse mecanismo está em funcionamento. Poucos comportamentos são mais humanos e mais compreensíveis, e mais nocivos e mais mesquinhos. Mas nossos comportamentos nocivos e mesquinhos devem ser comprendidos não para serem aceitos e perdoados — “somos assim mesmo, fazer o que?” — e sim transformados.*

[*A teoria sobre porque existe tanta ojeriza aos desvios da norma culta está maravilhosamente desenvolvida em Verbal hygiene, the politics of language (1995), de Deborah Cameron. Até ler esse livro, eu nunca tinha realmente entendido o que motivava os ditadores da gramática. E, na verdade, o raciocínio é amplo: ninguém tolera que outra pessoa quebre uma regra que ela se reprimiu para manter.]

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Os filhos da manicure, um estudo de caso

Conversando sobre a Prisão Classe com minhas leitoras, recebi a seguinte mensagem:

“Alex, o texto abaixo foi publicado em um grupo que participo. Meu questionamento é se essa pessoa poderia ter indiferentemente qualquer ocupação que quisesse:

‘Pedi indicação de manicures recebi várias e agradeço a que marquei chego na hora meu filho caiu então desmarque mais como não foi nada grave consegui fazer com outra que morava perto ai começo meu tormento ela levo os dois filhos eles colocaram a ração da cadela na água quebraram restos de pisos no chão que eu tinha ficado a manhã inteira faxinando quebraram brinquedos dos meus filhos mijaram no chão do meu banheiro jogaram água no chão da minha cozinha subiram no meu sofá arranharam a parede com carrinho e pra termina o menor derrubo meu microondas no chão e quebro o prato então meninas não levem filho pra casa de ninguém quando não podem controlar sei que não é todas que leva filho na residência e peço desculpas foi só um desabafo’”

Eu entendi tudo no texto citado, apesar da falta de pontuação, mas não entendi a pergunta da leitora. Qual era a dúvida, exatamente?

 — Meu questionamento é se essa pessoa estaria apta a desempenhar uma função profissional qualquer. Se ela poderia ser recepcionista, telefonista ou gerente em um hotel.

Na verdade, eu tinha até entendido, mas achei tão improvável que pensei que talvez tivesse lido errado. O relato da moça que contratou a manicure me pareceu perfeitamente lógico, concatenado, compreensível. Não está confuso nem desconexo. Não precisei reler, não tive nenhuma dúvida. Comunica exatamente a experiência que ela quis comunicar.

A autora apenas não usa sinais de pontuação, que são elementos convencionados 100% gráficos que não têm nenhum impacto na língua falada, e, muito menos, na inteligência, cultura, etc, da pessoa que está emitindo a comunicação. Pontuação nada mais é do que representar graficamente as pausas que instintivamente colocamos na fala. Então, um texto que seja lógico e articulado, e somente não tenha pontuação, não indica de modo algum uma pessoa que seja incapaz de manter um emprego, mas somente uma pessoa que não tem o hábito da escrita. Em sua fala, ela deve ser tão articulada quanto qualquer falante nativa. Pontuação é uma invenção recente: Eurípides e Platão, Virgílio e Lucrécio, todos os autores da Bíblia, escreveram sem pontuação, exatamente como essa moça.

Pelo comentário inicial da minha leitora, parece que sua perplexidade é: como alguém que fala assim (por exemplo, desabalada) conseguiria ser uma recepcionista e se comunicar com hóspedes? A resposta, naturalmente, é que ela não fala assim, e nem seu relato não está desabalado: o texto apenas não indica graficamente as pausas. Ele nos parece uma correria desabalada e sem fôlego porque foi assim que nós nos treinamos para lê-lo: é uma convenção do nosso tipo de leitura, viciado em pontuação, quase dependente dela.

Quando os textos não tinham pontuação e as pessoas os liam em voz alta umas para as outras, elas não saíam lendo desabaladamente e sem pausas: elas inseriam as pausas elas mesmas, a medida que iam avançando. Se lermos com generosidade, sem julgamento, nos despindo das convenções que nos enfiaram pela goela abaixo, o lugar de cada pausa se revela de maneira quase autoevidente.

Além da falta de pontuação, o texto da moça tem pouquíssimos problemas, todos menores, e nenhum que dificulta a compreensão de seu conteúdo:

  • Confundir mas/mais; uma distinção que, assim como a pontuação, só acontece na linguagem escrita e não na falada, ao menos em boa parte do Brasil;
  •  Omitir a letra final de algumas palavras quando elas não são pronunciadas; mostrando que, mais uma vez, quando a linguagem falada e escrita divergem, ela segue a falada, mas sempre de modo consistente e compreensível;
  • Escreveu um “é” onde deveria ter sido “são”, algo facilmente compreensível pelo contexto.

Se o texto tivesse sido lido em voz alta, o único “erro de português” que perceberíamos teria sido esse último. Aos nossos ouvidos, seria um texto quase perfeito: elitista são nossos olhos. Já trabalhei como editor, já fui professor de redação, confiem nesse profissional da palavra: um texto que só precisa de pontuação para ficar perfeito é um texto ótimo; os textos realmente ruins, truncados, confusos, precisam ser reescritos do começo ao fim. Para demonstrar, aqui vai o texto original, minimamente reescrito: somente acrescentei a pontuação e as letras entre colchetes.

“Pedi indicação de manicures, recebi várias e agradeço.

A que marquei chego[u] na hora.

Meu filho caiu, então desmarque[i].

Ma[i]s como não foi nada grave, consegui fazer com outra, que morava perto.

A[í] começo[u] meu tormento: ela levo[u] os dois filhos, eles colocaram a ração da cadela na água, quebraram restos de pisos no chão que eu tinha ficado a manhã inteira faxinando, quebraram brinquedos dos meus filhos, mijaram no chão do meu banheiro, jogaram água no chão da minha cozinha, subiram no meu sofá, arranharam a parede com carrinho e, pra termina[r], o menor derrubo[u] meu micro[-]ondas no chão e quebro[u] o prato.

Então, meninas, não levem filho pra casa de ninguém quando não podem controlar.

Sei que não é [são] todas que leva[m] filho na residência e peço desculpas, foi só um desabafo.”

Por fim, não existe língua, nem variante da língua, nem desvio da variante da língua, sem contexto. O texto foi escrito de maneira informal, em um grupo privado, explicitamente como um desabafo: nada indica que a autora de fato ignore as regras de pontuação da norma culta do português ou que não seria capaz de aprendê-las se fosse necessário para conseguir uma ocupação que desejasse. Especialmente empregos como recepcionista, telefonista ou gerente em um hotel, que não exigem muita escrita.

Uma amiga concordou com tudo, menos que a autora do desabafo pudesse conhecer as regras de pontuação, mas que tivesse escolhido não usá-las. Por que alguém escolheria não usar regras que conhece? Simples: porque o custo de usar essas regras varia muito de pessoa em pessoa.

Eu, por exemplo, depois de fazer anos de fonoaudióloga e muitos cursos de impostação de voz, consigo falar sem gaguejar, com dicção perfeita, articulando cada fonema. Só que isso, para mim, tem um custo enorme, exige muito esforço. Gravar o audiolivro do meu Atenção. foi o maior e mais gratificante desafio da minha vida. Enfim, falar bem é algo que só faço quando estou em sala de aula, sendo pago para ensinar, e às vezes, confesso, nem isso. Outro dia, em um churrasco, o tio de um amigo meu, um locutor profissional de dicção perfeita, começou a me sacanear. Como eu podia dar aula gago daquele jeito? Respondi que, em primeiro lugar, não tem nada de errado em uma pessoa gaga dar aula e, em segundo, que eu não gaguejava dando aula. Ele desafiou: ué, se consegue falar sem gaguejar, fala agora! E eu desconversei, pois minha única resposta honesta teria sido: “você não vale o esforço…”*

Voltando à moça do relato, não acho improvável que ela saiba sim as regras da pontuação, mas talvez sem a fluência e facilidade das pessoas que escrevem com frequência. (A falta de outros desvios da norma culta em seu texto indica uma pessoa razoavelmente bem-educada.) Então, para ela, escrever um texto com pontuação talvez exigisse um nível de esforço que, digamos, não valeria a pena investir em um desabafo informal e rápido em um grupo privado. Apenas porque uma pessoa não usou uma ferramenta em uma determinada situação na qual nós a teríamos usado, não podemos presumir que ela simplesmente não possui ou não sabe usar essa ferramenta.

Então, de fato, não consigo imaginar de que maneira esse desabafo nas redes sociais poderia ser usado desqualificar a autora para esses empregos.

[*Uma das maiores vantagens de audiolivros de autoras contemporâneas é a oportunidade de ouvi-las narrando a própria obra. Tantas autoras incríveis fizeram esse esforço por mim que decidi fazer o mesmo por minhas leitoras. O audiolivro do Atenção. saiu pela Tocalivros, produzido pelo incrível Clayton Herringer, a quem agradeço por uma das melhores e mais exaustivas experiências da minha vida.]

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Quebrar a normatividade da língua

Em 2015, lancei no Brasil e em Cuba uma edição traduzida e anotada da autobiografia do poeta afrocubano Juan Francisco Manzano. Por ter nascido escravizado, ele nunca teve educação formal e aprendeu a ler e escrever por conta própria. Mais tarde, quando escreveu uma incrível e comovente autobiografia, o texto naturalmente não seguia a norma culta do espanhol. Infelizmente, quando é traduzido, o texto é sempre corrigido para a norma culta da língua de destino.*

Mas a autobiografia do poeta-escravo é mais que seu conteúdo: a forma da escrita de Manzano é o melhor autorretrato que temos dele e sua maior contribuição à literatura. Seus erros de ortografia, gramática e sintaxe nos inspiram respeito: não são erros, mas sim marcas tão concretas e tão reais da escravidão quanto os lanhos de chicote em sua carne. Corrigi-los significa apagar sua trajetória, silenciar seu sofrimento, rasurar sua vida.

Por isso, ao traduzir Manzano ao português, fiz o oposto: me mantive o mais fiel possível à oralidade do seu texto. Como o resultado final pode ser um pouco difícil de ler, eu ensino um truque. A melhor maneira de extrair sentido de um texto marcado por forte registro oral e pontuação muito irregular é lendo-o em voz alta. Assim, construções antes confusas subitamente farão sentido, os sujeitos vão se atrelar aos verbos corretos e as pausas intuitivamente se revelarão.

Nosso desafio, como pessoas leitoras, é suspender os hábitos adquiridos de leitura silenciosa, abraçar a oralidade da prosa e permitir que o texto fale em seus próprios termos. Quebrar a normatividade de nosso modo de leitura tradicional pode ser difícil, mas a recompensa será experimentar os diferentes caminhos que a literatura em prosa poderia ter seguido se o advento da pontuação não tivesse restringido a diversidade textual. Toda linguagem, mesmo quando opressora, é sempre dialógica: se lermos com cuidado, as brechas cavadas pela fala e pela prática das pessoas oprimidas nos permitem ouvir até mesmo quem não tem voz. Nesse sentido, esse esforço de oralidade é bem mais do que um exercício de autenticidade: é um exercício de alteridade.

Abaixo, um trecho da autobiografia do poeta-escravo Juan Francisco Manzano, na minha tradução:

“huma tarde sahimos ao jardim durante muinto tempo fiquei ajudando minha ama á colher flores ou transplantar alguns matinhos como pasatempo enquanto o jardineiro andava pr. toda a largura do jardim cumprindo sua obrigaçaõ ao nos retirarmos sem consiensia realmente do qe. fazia peguei huma folhinha, huma folhinha coalquer de botaõ de geranio esta malva estremamente odoroza ia em minha maõ junto com sei la mais o que eu levava distraido com meus versos de memoria seguia minha sinhá á distansia de dois ou trez pasos e caminhava taõ alheio á tudo qe. ia dispedaçando a folha do qe. rezultava maior fragansia ao entrar numa antesala naõ sei com qe. motivo a sinhá retrocedeu, le dei pasagem mas ao pasar por mim le chamou atensaõ o cheiro imediatamente colerica com huma voz fortisima e alterada me perguntou qe. tens nas maõs; eu fiquei morto meu corpo gelou-se num instante e sem poder quasi sustentar-me pelo tremor qe. me deu em ambas pernas, deixei cahir a porsaõ de pedaçinhos no chaõ me tomou as maõs e as cheirou e pegando os pedaçinhos paresiaõ hum montaõ hum matagal e hum atrevimento de nota quebraraõ meu nariz”

[*O texto foi publicado no Brasil pela editora Hedra, com o titulo de Autobiografia do Poeta-Escravo e, em Cuba, pela Ediciones Matanzas, com o título Autobiografia. Lancar esse texto em Cuba, e palestrar para alunas cubanas sobre um de seus grandes autores ignorados, foi um dos maiores prazeres e orgulhos da minha vida. O audiolivro, também produzido pela Tocalivros, foi gravado pelo ator Eduardo Silva; eu narrei os paratextos. Em 2018, o livro foi selecionado pelo PNLD Literário e mais de 90 mil exemplares foram enviados para escolas de todo Brasil.]

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Prizão classe e preconsseito lingüístico*

A ojeriza aos “erros de portugues” ainda é uma das poucas manifestações abertas de elitismo e preconsseito que muitas pessoas pretensamente politizadas e conscientes ainda se permitem fazer. Mas essa ojeriza, na verdade, é por pessoas pobres. Por pessoas que vieram de regiões, de culturas, de classes sociais que não são as nossas. É ojeriza ao Outro. É pura outrofobia. Falar “Cráudia” não diz nada, nem a favor nem contra, sobre a inteligência, cultura, caráter, talento, profissionalismo, etc, de uma pessoa. Já sacanear, discriminar, rotular quem fala “Cráudia” diz muito. Se somos pessoas conscientes e politizadas, se lutamos contra o machismo e o racismo, contra a homofobia e a transfobia, por que não lutarmos também contra o nosso próprio preconceito linguistico? Afinal, quanto valor estamos dando ao conjunto de regrinhas arbitrárias de uma entre as muitas variantes da nossa língua? Não faz sentido militar pela maior inclusão social de pessoas historicamente discriminadas… só para exclui-las por outra porta.

[*Esse texto apresenta diversos erros propositais de gramática, concordância, ortografia, pontuação, etc. Muito obrigado à Amanda Coca, Patricia Gondeck, Fernanda Lizardo e Raquel Siqueira por me ajudar na contrarrevisão.]

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Fim da Prisão Classe.

Próxima Prisão: Prisão Patriotismo.

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O Curso das Prisões

Um curso para nos libertar até mesmo da busca pela liberdade. O que está em jogo é nossa vida.

Curso em resumo

Curso de filosofia prática, com ênfase em liberdade pessoal e consciência política: como viver uma vida mais livre e significativa sem virar o rosto ao sofrimento do mundo. // As Prisões: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia // Sem leituras, com muita conversa, debate, polêmica. // Um tema por mês, durante onze meses: uma conversa livre, no 1º domingo, para abrir o mês de conversas sobre o tema, e uma aula, na última quarta-feira, para fechar. Até 27 de dezembro de 2023. // Encontros e aulas ao vivo via Zoom; aulas gravadas via Facebook; grupo de discussão no Whatsapp. // R$88 mensais, no Apoia-se, por todos os meus cursosCompre agora.

O que são As Prisões

As Prisões são as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal explicadas, os costumes sem sentido: Verdade, Religião, Classe, Patriotismo, Respeito, Trabalho, Autossuficiência, Monogamia, Liberdade, Felicidade, Empatia.

O que chamo de As Prisões são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas.

Monogamia, por exemplo, é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: “relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade”.

Felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para nossas vidas, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: “não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz”.

Quem está “presa” na Prisão Monogamia não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de viver relacionamentos monogâmicos, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, vive relacionamentos monogâmicos por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é viver a Monogamia, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Quem está “presa” na Prisão Felicidade não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de colocar sua própria felicidade individual como fim último de sua vida, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, busca sua própria felicidade por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é buscar a Felicidade, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Cada uma das Prisões, da Verdade à Empatia, do Trabalho à Felicidade, é sempre, antes de mais nada, uma prisão cognitiva, uma percepção incompleta da realidade. Por trás de todas as Prisões está sempre a mesma inimiga: a ignorância.

Funcionamento

Como toda Prisão é uma verdade tão inquestionável que nos impede de perceber outras alternativas, nossas aulas começam sempre por analisá-la e desconstruí-la, para entender como nos limitam, e podermos então enxergar as alternativas que ela esconde.

Cada mês será dedicado a uma Prisão.

No 1º domingo do mês, às 17h, damos início às discussões com uma conversa livre no Zoom. Não é uma aula expositiva, mas uma sessão de troca e de escutatória. Sem a interlocução de vocês, sem ouvir como essa prisão afetou as suas vidas, eu não teria nem como começar a pensar a aula. Aqui, tudo é prático, nada é teórico. O que está em jogo são nossas vidas.

Ao longo do mês, continuamos conversando sobre essa Prisão em nosso grupo do Whatsapp, trocando histórias e experiências. Para quem quiser, vou compartilhando as leituras que estou fazendo sobre o tema, mas nenhuma leitura é obrigatória, nem necessária para a compreensão da aula.

Na última quarta-feira do mês, às 19h, fechamos as discussões com uma aula, também pelo Zoom. Essa aula será expositiva, mas também teremos bastante espaço para debates e conversas.

Aulas gravadas indefinidamente

A gravação em vídeo das aulas expositivas fica disponível em um grupo fechado do Facebook. (É preciso se inscrever no Facebook para ter acesso ao grupo) Mas, juridicamente falando, como não posso garantir “indefinidamente”, garanto que as aulas estarão acessíveis às compradoras do curso, se não no Facebook em outro lugar, no mínimo até 31 de dezembro de 2027. As conversas livres, por serem mais pessoais, não ficam gravadas: são só para quem vier ao vivo. As aulas gravadas só estarão disponíveis para as mecenas do plano CURSOS enquanto durar o apoio. Você pode cancelar seu plano de mecenato a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos.

Sem leituras

O Curso As Prisões não é um curso de leituras: nenhuma leitura é obrigatória ou recomendada. É um curso de conversas livres e de trocas de experiências, de escutatória e de debates, de reflexão sobre nossas vidas e sobre como viver.

Para cada Prisão, eu listo uma pequena bibliografia, para que vocês saibam quais livros eu utilizei na preparação da aula e para que possam correr atrás das leituras que mais lhes interessem.

Mas não precisa ler nada para participar das aulas, das conversas, das trocas, das discussões.

Sejam as primeiras leitoras do Livro das Prisões

Livro das Prisões foi contratado pela Rocco em 2017 e eu ainda não consegui escrever. Um de meus objetivos para esse curso é, com a inestimável ajuda da interlocução de vocês, finalmente terminar o livro. Então, junto com a aula, também pretendo disponibilizar o texto dessa Prisão em sua versão final, já pronta para publicar. Todas as alunas do curso serão citadas nos agradecimentos do livro, pois ele certamente nunca teria sido escrito sem a participação de vocês. Já de antemão, agradeço.

Professor

Alex Castro é formado em História pela UFRJ com mestrado em Letras por Tulane University (Nova Orleans, EUA), onde também ensinou Literatura e Cultura Brasileira. Atualmente, é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Tem oito livros publicados, no Brasil e no exterior, entre eles A autobiografia do poeta-escravo (Hedra, 2015), Atenção. (Rocco, 2019) e Mentiras Reunidas (Oficina Raquel, 2023). Escreve para a Folha de São Paulo.

Meus votos zen-budistas

Pratico zen budismo há dez anos. Todo dia, pela manhã, refaço meus votos: os quatro votos do Bodisatva e os três votos dos pacificadores zen.

Basicamente, eu me comprometo a ajudar as pessoas a 1) se libertarem, 2) enxergarem as ilusões que as limitam, 3) perceberem a realidade em sua plenitude e, assim, 4) agirem no mundo de acordo com essa percepção. E me proponho a fazer isso a partir de 1) uma posição de não-saber, me abrindo às novas situações sem certezas prévias, 2) estando presente de forma plena a cada interação humana, sem virar o rosto nem à dor nem à alegria, e 3) agindo amorosamente.

Esse curso é minha humilde tentativa de agir no mundo de acordo com meus votos. De ajudar as pessoas, minhas alunas e minhas leitoras, a enxergarem suas prisões, se libertarem delas, perceberem a realidade e agirem amorosamente no mundo, questionando suas certezas e nunca virando o rosto nem à dor nem à alegria das outras pessoas.

Dar esse curso, portanto, é minha prática religiosa. Se eu tiver algum sucesso em caminhar ao lado de vocês nesse percurso, minha vida terá sido uma vida bem vivida, e sou grato por tê-la vivido.

Os Quatro Votos do Bodisatva: As criações são inumeráveis, faço o voto de libertá-las; As ilusões são inexauríveis, faço o voto de transformá-las; A realidade é ilimitada, faço o voto de percebê-la; O caminho do despertar é insuperável, faço o voto de corporificá-lo.

Os três votos da Ordem dos Pacificadores Zen: Praticar o não saber, abrindo mão de certezas prévias; Estar presente na alegria e no sofrimento, não virando o rosto à dor alheia; Agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.

Compre

O Curso das Prisões é exclusivo para as mecenas dos planos CURSOS ou MIDAS do meu Apoia-se.

Para fazer o curso completo (11 aulas expositivas + 11 encontros livres + grupo no Facebook + grupo de Whatsapp):

  • R$88 mensais, via Apoia-se: comprando o plano Mecenas CURSOS (ou superior), você tem acesso a todos os meus cursos enquanto durar o seu apoio, além de ganhar muitas outras recompensas, como textos e aulas avulsas exclusivas. Como bônus, coloco seu nome na lista das mecenas. Você pode cancelar o seu plano a qualquer momento, mas aí perde acesso aos cursos. (O Apoia-se aceita todos os cartões de crédito e boleto).

Não são vendidas aulas individuais. Não existem outras formas de pagamento. Quem estiver no estrangeiro e não tiver cartão de crédito ou conta bancária brasileira, fale comigo: eu@alexcastro.com.br

Dúvidas

Somente por email: eu@alexcastro.com.br

Aulas em resumo

Links levam para a descrição de cada aula na ementa do curso.

  1. Verdade (fevereiro)
  2. Religião (março)
  3. Classe (abril)
  4. Patriotismo (maio)
  5. Respeito (junho)
  6. Trabalho (julho)
  7. Autossuficiência (agosto)
  8. Monogamia (setembro)
  9. Liberdade (outubro)
  10. Felicidade (novembro)
  11. Empatia (dezembro)

As inscrições para o Curso das Prisões estão abertas: é só fazer o plano CURSOS no meu Apoia-se.

2 respostas em “Prisão Classe”

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