Simone Weil (1909-43) é uma das pessoas que mais amo na humanidade inteira, no passado e no presente.
Como Simone Weil é linda, forte, sensível. Como ela se entrega em cada frase. Como seu raciocínio é límpido, implacável.
Tenho vontade de abraçá-la, de apoiá-la, de aprender com ela, de salvar sua vida.
Uma das pensadoras mais radicalmente originais de todos os tempos. O cerne de todas as contradições filosóficas do século XIX, explodindo em pleno XX.
Todo mundo deveria ler, conhecer, amar Simone Weil.
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Simone Weil no Brasil
Ainda existe muito pouca Simone publicada no Brasil.
Recomendo A condição operária e outros estudos sobre a opressão, editado em 1979 pela grande Ecleia Bosi e já na 3ª edição, uma coletânea simplesmente maravilhosa, que me apresentou à Simone, e cujo único defeito, que não é realmente um defeito, é privilegiar demais a Simone política-esquerdista e quase não mostrar a pensadora religiosa.
Outra boa edição brasileira é Pela supressão dos partidos políticos, editado pela Âyiné. Ela é boa por ser pequena, baratinha e por apresentar os dois lados de Simone: o ensaio-título, um de seus melhores textos políticos, e “A pessoa e o sagrado”, um de seus melhores textos, digamos, místicos. (Mais sobre ambos abaixo.)
Da mesma editora, também saiu Reflexões Sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social, com alguns excelentes ensaios políticos. Como a editora é famosamente de direita, ambos os livros privilegiam o lado mais antiesquerdista de Simone, em reação à sua primeira fase mais marxista, que é privilegiada pela antologia Condição Operária, da Paz & Terra. Oitenta anos depois de morta, todos os lados do espectro político querem cada vez mais Simone para si.
Ainda na Simone política, temos os excelentes ensaios de Contra o colonialismo, publicados pela Bazar do Tempo, criticando a política colonial francesa na Indochina e no norte da África.
Por fim, a Simone mística e religiosa é representada por dois excelentes livros, ambos publicados na belíssima coleção Clássicos da Espiritualidade, da editora Vozes: Espera de Deus, que traz o ensaio “Reflexões sobre o bom uso dos estudos escolares em vista do Amor a Deus”, um de meus preferidos e sobre o qual falarei mais abaixo, e Carta a um religioso, escrita para um padre católico, listando as perguntas que ele teria que responder para que Weil pudesse se converter católica. (O que ela nunca fez.)
Na internet. recomendo esse site, apesar de um pouco desatualizado.
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As duas Simones
Existem duas Simones:
A primeira, pensadora política, de esquerda, que colocou seu corpo na reta, foi trabalhar numa fábrica;
A segunda, depois da conversão, pensadora religiosa, autoimolada em solidariedade às vítimas da guerra.
As duas, na verdade, são a mesma pessoa, em uma mudança belíssima de acompanhar.
Quase todas edições anglófonas de Weil priorizam fortemente seus textos religiosos em detrimento dos políticos.
Já as edições brasileiras e hispânicas tendem a ser mais políticas. (Só em espanhol, por exemplo, das três línguas que leio, encontrei uma edição completa de A condição operária!)
Cada pessoa leitora pode escolher sua Simone Weil preferida.
Eu, por exemplo, conheci Simone através do livro Homens invisíveis: retratos de humilhação social, de Fernando Braga da Costa, e me apaixonei pelos seus textos políticos.
Hoje, cada vez mais religioso e Irmão ordenado, amo também a Simone mística e teológica.
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Alguns trechos preferidos:
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A gravidade e a graça
Simone não publicou quase nada em vida. Gravity and Grace é a transcrição de um caderno que ela deixou para trás em uma casa por onde passou. (O quão foda tem que ser uma pessoa para seus pensamentos desconjuntados e rascunhados em um caderno serem incríveis?)
Abaixo, alguns trechos.
Ao ler, tenham em mente
1) que são anotações esparsas rascunhadas em um caderno (por exemplo, quando usa um imperativo, Weil está provavelmente falando consigo mesmo, apontando um dedo para suas próprias falhas);
2) que tinha apenas 32 anos; e,
3) que era, com certeza, completamente, brilhantemente, divinamente louca.
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The Self:
We possess nothing in the world – a mere chance can strip us of everything – except the power to say “I”. That is what we have to give to God – in other words, to destroy. There is absolutely no other free act which it is given us to accomplish – only the destruction of the “I”. …
Humility consists in knowing that in what we call “I” there is no source of energy by which we can rise. Everything without exception which is of value in me comes from somewhere other than myself, not as a gift but as a loan which must be ceaselessly renewed. Everything without exception which is in me is absolutely valueless; and, among the gifts which have come to me from elsewhere, everything which I appropriate becomes valueless immediately I do so.
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The mysticism of work:
Monotony is the most beautiful or the most atrocious thing. The most beautiful if it is a reflection of eternity – the most atrocious if it is the sign of an unvarying perpetuity. It is time surpassed or time sterilized. The circle is the symbol of monotony which is beautiful, the swinging of a pendulum of monotony which is atrocious. …
Only the cycle contains the truth. A squirrel turning in its cage and the rotation of the celestial sphere – extreme misery and extreme grandeur. It is when man sees himself as a squirrel turning round and round in a circular cage that, if he does not lie to himself, he is close to salvation. …
The great hardship in manual work is that we are compelled to expend our efforts for such long hours simply in order to exist. The slave is he to whom no good is proposed as the object of his labour except mere existence. …
To strive from necessity and not for some good – driven not drawn – in order to maintain our existence just as it is – that is always slavery. In this sense the slavery of manual workers is irreducible. Effort without finality. It is terrible – or the most beautiful thing of all – if it is finality without an end. The beautiful alone enables us to be satisfied by that which is. Workers need poetry more than bread. They need that their life should be a poem. They need some light from eternity. Religion alone can be the source of such poetry. …
Slavery is work without any light from eternity, without poetry, without religion. … Work is like a death if it is without an incentive. …
Joys parallel to fatigue: tangible joys, eating, resting, the pleasures of Sunday… but not money. No poetry concerning the people is authentic if fatigue does not figure in it, and the hunger and thirst which come from fatigue.
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Attention and will:
Extreme attention is what constitutes the creative faculty in man and the only extreme attention is religious. The amount of creative genius in any period is strictly in proportion to the amount of extreme attention and thus of authentic religion at that period. …
Attention alone – that attention which is so full that the “I” disappears – is required of me. I have to deprive all that I call “I” of the light of my attention and turn it on to that which cannot be conceived. The capacity to drive a thought away once and for all is the gateway to eternity. The infinite in an instant. …
The poet produces the beautiful by fixing his attention on something real. It is the same with the act of love. To know that this man who is hungry and thirsty really exists as much as I do – that is enough, the rest follows of itself. The authentic and pure values – truth, beauty and goodness – in the activity of a human being are the result of one and the same act, a certain application of the full attention to the object. Teaching should have no aim but to prepare, by training the attention, for the possibility of such an act. All the other advantages of instruction are without interest. …
Method for understanding images, symbols, etc. Not to try to interpret them, but to look at them till the light suddenly dawns. Generally speaking, a method for the exercise of the intelligence, which consists of looking. …
Solitude. Where does its value lie? For in solitude we are in the presence of mere matter (even the sky, the stars, the moon, trees in blossom), things of less value (perhaps) than a human spirit. Its value lies in the greater possibility of attention. If we could be attentive to the same degree in the presence of a human being.
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Detachment:
The extinction of desire (Buddhism) – or detachment – or amor fati – or desire for the absolute good – these all amount to the same: to empty desire, finality of all content, to desire in the void, to desire without any wishes. …
Attachment is a manufacturer of illusions and whoever wants reality ought to be detached. As soon as we know that something is real we can no longer be attached to it. Attachment is no more nor less than an insufficiency in our sense of reality. We are attached to the possession of a thing because we think that if we cease to possess it, it will cease to exist. A great many people do not feel with their whole soul that there is all the difference in the world between the destruction of a town and their own irremediable exile from that town.
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Love:
Among human beings, only the existence of those we love is fully recognized. Belief in the existence of other human beings as such is love. … That is why the only organ of contact with existence is acceptance, love. That is why beauty and reality are identical. That is why joy and the sense of reality are identical.
Every desire for enjoyment belongs to the future and the world of illusion, whereas if we desire only that a being should exist, he exists: what more is there to desire? The beloved being is then naked and real, not veiled by an imaginary future. …
[T]he love we devote to the dead is perfectly pure. For it is the desire for a life which is finished, which can no longer give anything new. We desire that the dead man should have existed, and he has existed.
To desire friendship is a great fault. Friendship should be a gratuitous joy like those afforded by art or life. We must refuse it so that we may be worthy to receive it. … It is one of those things which are added unto us. Every dream of friendship deserves to be shattered. It is not by chance that you have never been loved. … To wish to escape from solitude is cowardice. Friendship is not to be sought, not to be dreamed, not to be desired; it is to be exercised (it is a virtue). ….
Do not allow yourself to be imprisoned by any affection. Keep your solitude. …
[G]ratitude must not in any degree constitute an attachment, for that is the gratitude proper to dogs. Gratitude is first of all the business of him who helps, if the help is pure. It is only by virtue of reciprocity that it is due from him who is helped.
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Chance:
We want everything which has a value to be eternal. Now everything which has a value is the product of a meeting, lasts throughout this meeting and ceases when those things which met are separated. … It leads straight to God. …
The theories about progress and the ‘genius which always pierces through’, arise from the fact that it is intolerable to suppose that what is most precious in the world should be given over to chance. It is because it is intolerable that it ought to be contemplated. Creation is this very thing. The only good which is not subject to chance is that which is outside the world. The vulnerability of precious things is beautiful because vulnerability is a mark of existence.
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Pela supressão dos partidos políticos
Estou há anos ensaiando me filiar a um partido político. Já consegui me filiar a uma ordem religiosa e a um templo religioso, mas ainda não conseguo me filiar a nenhum partido. (Falo um pouco sobre essas questões aqui.) E Simone finalmente articulou para mim o motivo:
“É preciso reconhecer que o mecanismo de opressão espiritual e mental próprio aos partidos foi introduzido historicamente pela Igreja Católica, quando de sua luta contra a heresia. … A Reforma e o humanismo renascentista, produto duplo dessa revolta, contribuíram amplamente para gerar, depois de três séculos de amadurecimento, o espírito de 1789. Deste resultou, depois de certo prazo, nossa democracia fundada no jogo de partidos, cada um deles uma pequena igreja profana armada da ameaça de excomunhão. A influência dos partidos contaminou a vida mental de nossa época. Um homem que adere a um partido aparentemente identificou em sua ação e propaganda coisas que lhe pareceram justas e boas. Mas jamais estudou a posição do partido em relação a todos os problemas da vida pública. Ao entrar para o partido, ele aceita posições que desconhece. Assim, submete seu pensamento à autoridade do partido. Quando, paulatinamente, descobrir suas posições, ele as aceitará sem analisá-las detidamente. É exatamente a situação em que se encontra aquele que adere à ortodoxia católica estabelecida, como faz Santo Tomás. Se um homem dissesse, ao pedir sua carta de filiação, “estou de acordo com o partido sobre tal, tal e tal pontos; ainda não analisei as outras posições e me abstenho de opinar enquanto não o tiver feito”, sem dúvida lhe pediriam para voltar mais tarde. Mas na verdade, salvo raríssimas exceções, um homem que entra para um partido adota docilmente a postura que expressará mais adiante pelas palavras: “Enquanto monarquista, enquanto socialista, penso que…”. É tão cômodo! Pois é um não pensar. E não há nada mais cômodo do que não pensar.“
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Sobre os fins e os meios em uma democracia:
“A democracia e o poder da maioria não são bens. São meios com vistas ao bem, avaliados como eficazes com ou sem razão. … O verdadeiro espírito de 1789 não consiste em pensar que uma coisa é justa porque o povo a quer, mas que, em certas condições, o querer do povo tem mais chances do que qualquer outro de estar em concordância com a justiça. … Em todo lugar, sem exceção, todas as coisas em geral tidas como fins são por natureza, por definição, por essência e da forma mais evidente unicamente meios. … Apenas o bem é um fim. … Se temos um critério para avaliar o bem que não seja o próprio bem, então perdemos a noção de bem.”
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A atenção é um dos temas mais caros à Simone e também a mim. Na Prisão Religião, eu desenvolvo um pouco mais essa questão de que gente não acredita no quer, a gente acredita no que pode.
“A atenção verdadeira é um estado tão difícil para o homem, tão violento, que qualquer desarranjo pessoal da sensibilidade se torna obstáculo a ela. Donde a obrigação imperiosa de proteger tanto quanto possível a faculdade de discernimento que levamos em nós contra o tumulto das esperanças e dos temores pessoais. Se um homem faz cálculos numéricos muito complexos sabendo que será açoitado a cada vez que obtiver um número par como resultado, sua situação é bastante difícil. Alguma coisa na parte primordial da alma o impelirá a fazer pequenos ajustes nos cálculos a fim de sempre obter números ímpares. Buscando reagir, ele arriscará achar um número par mesmo onde este não caiba. Aprisionada nessa oscilação, sua atenção não está mais intacta. Se os cálculos são complexos a ponto de exigir dele atenção plena, é inevitável que cometa erros com muita frequência. Nada valerá que ele seja muito inteligente, corajoso ou fiel à verdade.”
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A pessoa e o sagrado
A edição brasileira de Pela supressão dos partidos políticos também inclui outro ensaio, na minha opinião ainda mais importante, “A pessoa e o sagrado”. Abaixo, alguns trechos:
O impessoal é o sagrado
“Desde a tenra infância até a morte, existe no fundo do coração de todo ser humano algo que, não obstante toda a experiência relativa a crimes cometidos, sofridos ou testemunhados, espera invariavelmente a bondade alheia, e não o mal. É isso, antes de tudo, que é sagrado em todo ser humano. … O sagrado, bem longe de ser a pessoa, é o que, em um ser humano, é impessoal. Tudo o que é impessoal no homem é sagrado, e só isso. …
O canto gregoriano, as igrejas romanas, a Ilíada, a invenção da geometria não foram, nos seres por quem essas coisas passaram para chegar a nós, instâncias de realização. A ciência, a arte, a literatura e a filosofia, que são apenas formas de realização da pessoa, constituem um campo em que se produzem sucessos vistosos, gloriosos, os quais fazem nomes ecoar por milhares de anos. Mas acima dessa seara, bem acima, separado dela por um abismo, há outro patamar, em que se situam as coisas de primeiríssima ordem. Essas são essencialmente anônimas.
Se o nome dos que acederam a esse patamar é lembrado ou não, trata-se de puro acaso. Mesmo que tenha sido guardado, eles entraram no anonimato. A pessoa deles desapareceu. A verdade e a beleza habitam esse domínio das coisas impessoais e anônimas. É ele que é sagrado. O outro não o é, ou, se o é, é somente como o poderia ser uma mancha de cor que, num quadro, representasse uma hóstia.
O que é sagrado na ciência é a verdade. O que é sagrado na arte é a beleza. A verdade e a beleza são impessoais. Isso tudo é patente. Se uma criança se engana ao realizar uma soma, o erro leva a marca de sua pessoa. Se ela procede de maneira perfeitamente correta, sua pessoa está ausente da operação.
A perfeição é impessoal. A pessoa em nós reside no que temos de equívoco e de pecado. Todo o esforço dos místicos foi sempre no sentido de que não houvesse mais em sua alma parte alguma que dissesse “eu”.”
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Por quanto vendemos nossa alma? (Prisão Trabalho)
“Aviltar o trabalho [manual] é um sacrilégio, exatamente como pisar numa hóstia configura um sacrilégio.
Se os que têm um trabalho sentissem que, ao surgirem como vítimas deste, também são em certo sentido seus cúmplices, a resistência deles teria um impulso completamente distinto daquele que o pensamento sobre sua pessoa e seu direito pode lhes oferecer. Não se trataria de uma reivindicação; mas sim do motim do ser como um todo, selvagem e desesperado, como a garota que querem instalar à força numa casa de tolerância. E seria, ao mesmo tempo, um grito de esperança oriundo do fundo do coração.
Esse sentimento reside neles, mas tão inarticulado que nem eles mesmos o conseguem identificar. Os profissionais da palavra não logram expressá-lo.
Quando se fala com eles de sua situação, normalmente é pelo viés do salário. Sob o peso do cansaço que transforma em dor qualquer esforço de atenção, eles recebem com alívio a clareza dos números.
Assim, esquecem-se de que o objeto que se mercantiliza, o que eles reclamam se ver forçados a entregar por migalhas, longe do preço justo, não é nada senão sua alma.
Imaginemos que o diabo esteja comprando a alma de um desventurado e que alguém, compadecendo-se do desditoso, intervenha no debate e dirija-se ao diabo: “É vergonhoso de sua parte oferecer esse preço; o objeto vale ao menos o dobro”.”
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A dor é inarticulável; o privilégio, muito fácil de articular
“Pois a pessoa só se realiza quando o prestígio social a envaidece; sua realização é um privilégio social. Não se diz isso às multidões quando se fala a elas do direito das pessoas. … Eis um motivo para que elas rechacem essa palavra de ordem. Em nossa época de inteligência obscurecida, ninguém se opõe a pleitear uma divisão equânime dos privilégios, das coisas que são privilégios em sua essência. Trata-se de uma espécie de reivindicação tão absurda quanto baixa; absurda porque, por definição, o privilégio é desigual; baixa pois este não merece ser almejado.
Mas a categoria dos homens que formulam as reivindicações e todas as coisas, que detêm o monopólio da linguagem, é uma categoria de privilegiados. Não são eles que dirão que o privilégio não merece ser almejado. Eles não pensam assim. Mas, sobretudo, seria indecente da parte deles afirmá-lo.
Muitas verdades indispensáveis e que salvariam os homens não são enunciadas por uma razão como esta: os que poderiam dizê-las não as podem formular, enquanto os que as poderiam formular não conseguem dizê-las. O antídoto a esse mal constituiria uma das pautas urgentes de uma política verdadeira.
Em uma sociedade instável, os privilegiados têm consciência pesada. Alguns a disfarçam adotando um ar desafiador e falando às multidões: “É perfeitamente razoável que vocês não tenham privilégios, mas que eu sim”. Outros lhes dizem com amabilidade: “Reivindico para vocês a mesma parcela de privilégios que detenho”.
A primeira atitude é odiosa. A segunda, destituída de bom senso. Além de fácil demais. …
O infortúnio é por si só inarticulado. Os desditosos suplicam silenciosamente que lhe sejam dadas palavras para se expressar. Há épocas em que eles não são ouvidos. Em outras, os termos lhes são fornecidos, mas são mal escolhidos, pois os que o fazem desconhecem o malogro que interpretam.”
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O mendigo diante do juiz: porque é tão difícil ouvir quem sofre
“Nada é mais atroz, por exemplo, do que ver, num tribunal, um desditado balbuciar diante de um juiz que faz troça dele em linguagem elegante. Com exceção da inteligência, a única faculdade humana realmente interessada pela liberdade pública de expressão é essa parte do coração que grita contra o mal. Mas como ela não sabe se expressar, a liberdade não lhe vale grande coisa. É preciso primeiro que a educação pública seja tal que lhe forneça, o máximo possível, meios de expressão. Em seguida, é necessário um regime para a expressão pública das opiniões que seja definido menos pela liberdade que por uma atmosfera de silêncio e de atenção em que esse grito frágil e desajeitado possa se fazer ouvir. Por fim, é preciso um sistema de instituições que conduza aos postos de comando, tanto quanto possível, os homens capazes e desejosos de ouvir e compreender esse grito. …
Como um mendigo acusado de ter pegado uma cenoura numa plantação se ergue diante do juiz que, sentado confortavelmente, enfileira questões, comentários e gracejos elegantes, enquanto o interlocutor mal consegue articular – assim se posta a verdade diante de uma inteligência preocupada em organizar opiniões graciosamente. …
Um espírito preso à linguagem está encarcerado, quer queira, quer não. Seu limite é a quantidade de relações que as palavras podem ativar nele ao mesmo tempo. Ele ignora os pensamentos que implicam a combinação de um número maior de relações; esses pensamentos estão fora da linguagem, não são formuláveis, ainda que sejam perfeitamente rigorosos e claros – e ainda que cada uma das relações que os compõem seja passível de expressão em vocábulos precisos. Dessa forma, o espírito se move em um espaço fechado de verdade parcial (que pode ser maior ou menor), sem nunca poder espiar o que há fora dali.
Se um espírito cativo desconhece seu próprio cativeiro, vive no erro. Se ele o identificou, ainda que por um décimo de segundo, e se apressou em esquecê-lo para não sofrer, reside na mentira. Homens dotados de inteligência fulgurante podem nascer, viver e morrer no erro e na mentira. Neles, a inteligência não representa um bem, nem mesmo uma vantagem. A diferença entre homens mais ou menos inteligentes é como a entre os criminosos condenados à prisão perpétua cujas celas variam de tamanho. Um homem inteligente e orgulhoso em sê-lo se parece com um condenado orgulhoso de ter uma cela larga. …
Todo espírito preso na linguagem só é capaz de opiniões. … Um bronco de um vilarejo está tão próximo da verdade quanto uma criança-prodígio. Ambos estão separados dela apenas por uma muralha. Não se adentra a verdade sem ter atravessado a destruição de si mesmo, sem ter vivido por muito tempo num estado de humilhação total e extrema. …
A mente humana não pode reconhecer a realidade do malogro. Se alguém o faz, deve dizer a si mesmo: “Uma combinação de circunstâncias que não controlo pode me tirar o que quer que seja, a qualquer hora, incluindo todas as coisas que são tão minhas que considero como sendo eu mesmo. Não há nada em mim que eu não possa perder. Um acaso pode a qualquer momento abolir o que sou e colocar no lugar alguma arbitrariedade vil e desprezível”. Pensar dessa forma com toda sua alma é sentir o vazio, o nada. É o estado de humilhação total e extrema que é também a condição para uma passagem à verdade. É uma morte da alma. Eis aí o porquê de o espetáculo do infortúnio nu causar na alma o mesmo encolhimento que a aproximação da morte ocasiona na carne. …
Ouvir uma pessoa é se colocar em seu lugar enquanto ela fala. Colocar-se no lugar de um ser cuja alma está mutilada pelo malogro ou periga sê-lo em breve é aniquilar sua própria alma. Isso é ainda mais difícil do que seria o suicídio de uma criança feliz. Dessa forma, os desditados não são ouvidos. Eles se encontram em um estado semelhante ao de alguém de quem se tivesse cortado a língua e que esquecesse momentaneamente sua enfermidade. Seus lábios se agitam, e som nenhum vai ao encontro dos ouvidos. Eles próprios são subitamente tomados pela impotência no uso da linguagem, certos de que não serão escutados.
Por isso é que não há esperança para o mendigo em pé diante do magistrado. Se por entre seus balbucios desponta algo dilacerante, que penetra a alma, isso não será ouvido nem pelo juiz, nem pelos espectadores. Será um grito mudo. Também entre eles, os desafortunados são quase sempre surdos uns aos outros. E cada um deles, sob a pressão da indiferença geral, tenta pela mentira ou pela inconsciência se fazer surdo a si próprio.”
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Trechos avulsos
““Você não me interessa.” Eis uma frase que um homem não pode dirigir a outro sem cometer uma crueldade e ferir a justiça.”
“Na Antiguidade, não havia a noção do respeito devido à pessoa. O pensamento da época era claro demais para uma noção tão confusa. O ser humano só escapa ao coletivo elevando-se acima do pessoal para penetrar no impessoal.”
“É necessário, de um lado, que haja em torno de cada pessoa espaço e um grau de liberdade na organização do tempo, possibilidades de passagem a níveis de atenção cada vez mais elevados, solidão, silêncio. Ao mesmo tempo, cumpre que a pessoa esteja aquecida, para que a desorientação não a force a se afogar no coletivo.”
“A justiça consiste em zelar para que não se faça mal aos homens. Isso acontece quando um ser humano grita, interiormente: “Por que é que estão me maltratando?”. Ele com frequência se engana ao tentar perceber que mal lhe é infligido, quem o inflige e por quê. Seu grito, porém, é infalível.”
“Só a luz que cai sem parar do céu fornece a uma árvore a energia para fincar profundamente na terra poderosas raízes. A árvore na verdade está enraizada no céu. Apenas o que emana do céu é capaz de deixar uma marca efetiva sobre a terra.”
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Simone Weil e a Atenção
Trechos de “Reflexões sobre o bom uso dos estudos escolares em vista do Amor a Deus”, ensaio de Espera de Deus:
“A formação da faculdade da atenção é o verdadeiro fim e quase o único interesse dos estudos. … Jamais, em caso algum, qualquer esforço de atenção verdadeiro se perde. … Sempre que um ser humano realiza um esforço de atenção com o único desejo de se fazer mais apto a apreender a verdade, ele adquire esta aptidão maior, ainda que o seu esforço não tenha produzido qualquer fruto visível. … É necessário … estudar sem qualquer desejo de obter boas notas, de ter sucesso nos exames, de obter qualquer resultado escolar, sem nenhuma consideração por gostos ou aptidões naturais, com idêntica aplicação a todos os exercícios, com o pensamento de que eles servem todos para formar essa atenção. …
A atenção consiste em suspender o pensamento, em deixá-lo disponível, vazio e permeável ao objecto, mantendo em nós mesmos, próximos do pensamento, mas a um nível inferior e sem contacto com ele, os diversos conhecimentos adquiridos que somos forçados a utilizar. O pensamento deve ser, para com todos os pensamentos particulares e já formados, como um homem que sobre uma montanha, ao olhar em frente, percebe debaixo de si, mas sem as mirar, muitas florestas e planícies. E, sobretudo, o pensamento deve estar vazio, à espera, sem nada procurar, mas pronto a receber, na sua verdade nua, o objecto que o vai penetrar. …
Os infelizes não precisam de outra coisa neste mundo que de homens capazes de lhes prestarem atenção. A capacidade de prestar atenção a um infeliz é coisa muito rara, muito difícil; é quase um milagre; é um milagre. Quase todos os que crêem ter esta capacidade não a têm. O calor, o ímpeto do coração, a piedade não são suficientes.
Na primeira lenda do Graal, diz-se que o Graal, pedra miraculosa que por virtude da hóstia consagrada sacia toda a fome, pertence a quem primeiramente disser ao guardião da pedra, rei paralisado em três quartos pela mais dolorosa ferida: «Qual é o teu tormento?»
A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe perguntar: «Qual é o teu tormento?» É saber que o infeliz existe, não como unidade numa colecção, não como um exemplar da categoria social etiquetada «infelizes», mas enquanto homem exactamente semelhante a nós, que foi um dia atingido e marcado com uma marca inimitável pela infelicidade. Para isso é suficiente, mas indispensável, saber pousar sobre ele um certo olhar.
Este olhar é em primeiro lugar um olhar atento, em que a alma se esvazia de todo o conteúdo próprio para receber nela mesma o ser que olha tal como ele é, em toda a sua verdade. Disto só é capaz aquele que é capaz de atenção.”
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Trechos de “Prerequisite to dignity of labor”, ensaio de A condição operária:
Beleza é a essência do momento presente
“There is one form of relief and one only. Only one thing makes monotony bearable and that is beauty, the light of the eternal . It is in respect of one thing only that human nature can bear for the soul’s desire to be directed towards not what could be or will be, but towards what exists, and that is in respect of beauty. Everything beautiful is the object of desire but one desires that it be not otherwise, that it be unchanged, that it be exactly what it is. One looks with desire at a clear starry night and one desires exactly the sight before one’s eyes. Since the people are forced to direct all their desires towards what they already possess, beauty is made for them and they for it. For other social classes, poetry is a luxury but the people need poetry as they need bread. Not the poetry closed inside words: by itself that is no use to them. They need poetry to be the very substance of daily life.”
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A plenitude da atenção ao momento presente
“A sower in the act of sowing, however, may, if he wishes, through his own movements and the sight of the seed entering the earth, direct his attention towards that truth without the help of a single word. If he does not reason around it but simply looks, the undiminished attention he pays to the accomplishment of his task reaches the very highest degree of intensity.”
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Treinando a atenção
“The only serious aim of schoolwork is to train the attention. … Pure, intuitive attention is the only source of perfectly beautiful art, truly original and brilliant scientific discovery, of philosophy which really aspires to wisdom and of true, practical love of one’s neighbour. … In order to attain intuitive attention , those with leisure to do so must exercise to their very utmost the discursive faculties which, while they remain , act as an obstacle. For those whose social function requires them to use those faculties there is probably no other method. For those whose faculties are almost completely paralysed by the fatigue of long daily labour, the possible obstacle is much reduced and the necessary wearing-down minimal. For them, the very work which paralyses, provided it be transformed into poetry, will lead to intuitive attention.”
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A atenção das pessoas trabalhadoras
“The worst outrage, however, is violation of the workers’ attention. … The inferior kind of attention required by taylorized (conveyor-belt) work is incompatible with any other kind of attention since it drains the soul of all save a preoccupation with speed. This kind of work cannot be transformed and must be stopped. All technological problems should be viewed within the context of what will bring about the best working conditions. This is the most important standard to establish; the whole of society should be first constituted so that work does not demean those who perform it. It is not sufficient that they avoid suffering. Their joy must be desired also, not bought treats but the natural delights that do not cheapen the spirit of poverty. The supernatural poetry which should permeate all their lives could from time to time be concentrated in dazzling celebrations, as necessary in working life as milestones to the walker. … All should be done so that nothing essential is missing and the best among them may then possess in their daily lives the completeness artists seek to express in their art. If man’s vocation is to achieve pure joy through suffering, workers are better placed than all others to accomplish it in the truest way.”
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Minhas edições de Simone Weil
Em português
Carta a um religioso. Vozes, 2016. [“Lettre a un religieux”, trad. Monica Stahel.]
Contra o colonialismo. Bazar do Tempo, 2019. [“Contre le colonialisme”, trad. Carolina Selvatici.]
Espera de Deus. Vozes, 2019. [“Attente de Dieu”, org. Joseph-Marie Perrin, 1950, trad. Karin Andrea de Guise.]
Condição operária e outros estudos sobre a opressão, a. SP: Paz e Terra, 1996, 2ª ed. [1ª ed: 1979; Coletânea, org. Ecléa Bosi, trad. Therezinha Langlada.]
Pela supressão dos partidos políticos. [Inclui também “A pessoa e o sagrado”.] BH: Ayiné, 2016. [“Note sur la supression générale des partis politiques” e “La personne et le sacré”, trad. Lucas Neves.]
Reflexões Sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social. BH: Ayiné, 2020. [Réflexions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale, trad. Pedro Fonseca.]
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Em inglês
Anthology, an. Londres: Penguin, 2005. 2ª ed. [1ª ed: 1986, org. Siân Miles.]
Formative writings, 1929-1941. Amherst: UMass Press, 1987. [Org. Trad. Doroty Tuck McFarland e Wilhelmina van Ness.]
Gravity and grace. Londres: Routledge, 2002. [“La pesanteur et la grêce”, coletânea org. Gustave Thibon, 1947; trad. Emma Crawford e Mario von der Ruhr.]
Need for roots, the. Londres: Routledge, 2002. [“L’enracinement”, org. ?, 1949; trad. Arthur Wills, 1952.]
On the abolition of all political parties. NY: NY Review of Books, 2013. [Trad. Simon Leys.]
Opression and liberty. Amherst: UMass Press, 1973. [“Opression et liberté”, org. ?, 1955; Trad: Arthur Wills e John Petrie, 1958.]
Simone Weil reader, the. NY: David McKay, 1977. [Org. George A. Panichas.]
Waiting for God. NY: Harper, 2009. [“Attente de Dieu”, org. Joseph-Marie Perrin, 1950; Trad: Emma Crawfurd, 1951.]
War and the Iliad. NY: NY Review of Books, 2005. [“L’Iliad, ou le poème de la force”, Trad. Mary McCarthy, 1945.]
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Em espanhol
La condición obrera. Madri: Trotta, 2014. [“La condicion ouvrière”, org. ?, trad. Teresa Escarpín Carasol e José Luis Escarpín Carasol.]
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Simone Weil é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 11 de junho de 2017, e atualizado pela última vez no dia 2 de setembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/simone-weil // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para a Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato
2 respostas em “Simone Weil”
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