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explicando a arte contemporânea

inhotim. as cosmococas são cinco instalações interativas de hélio oiticica e neville d’almeida, uma obra para interagir, contemplar, literalmente entrar na arte.

a sala cosmococas 2, “onobject”, tem chão de espuma grossa (onde é difícil andar sem afundar), e objetos geométricos, também de espuma, espalhados pelo chão: cones, cilindros, cubos, esferas. ouvem-se músicas do álbum solo de yoko ono. ocasionalmente, um telefone toca. as luzes estão apagadas e imagens são projetadas em duas das quatro paredes da sala: fotos de yoko, capas de livros.

CC2 ONOBJECT, de 12 de agosto de 1973.

a Outra Significativa e eu estamos deitados na espuma, em um canto, agarradinhos.

de repente, entram dezenas de crianças, uma turma inteira em excursão, já alucinadas, correndo e afundando e pulando na espuma, jogando os objetos geométricos contra as outras, chutando, uma verdadeira força da natureza. (neville e oiticica teriam ficado orgulhosos.)

o primeiro menino a penetrar mais fundo na sala escura topa comigo e com a Outra, ambos encolhidos no chão, tentando evitar chutes e objetos voadores, e trava, visivelmente surpreso:

isso é de verdade?!“, exclama.

arte contemporânea é isso. literalmente. é esse “isso” dito pelo menino surpreso.

* * *

texto escrito no café do teatro, em inhotim, que já é meu lugar preferido do brasil, apesar (talvez por causa) de todas as suas flagrantes contradições. leia mais sobre o inhotim e sobre as cosmococas.

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histórias da Outra Significativa

já fiz muitas coisas por mulher. cortei o cabelo comprido. cortei o cabelo curto. depilei a virilha. escanhoei a barba. fiz até a unha.

já a Outra Significativa só me pede uma coisa: para não tomar banho e, se tomar, não usar xampu nem sabonete.

quando preciso tomar um banho completo, já contamos que demora de doze a quatorze horas para o meu cheiro voltar aos níveis que ela considera aceitavelmente tesudos.

então, como uma gata manhosa e egoísta, ela vem se aproximando devagar, enfia o rosto em minha barba e chafurda no meu cheiro.

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eu sou minha aparência

somos julgados por nossa aparência o tempo todo. e com razão.

nossa aparência não é uma dimensão a parte, alheia à nossa verdadeira ó-tão-linda essência linda. isso é pensamento cartesiano.

nossa aparência somos nós. ela é resultado de minhas escolhas, de minha história de vida.

é tão justo sermos julgados por nossa aparência quanto por nossa inteligência, cultura, talento, sorte, berço.

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inteireza

algumas pessoas buscam por alguém que as complete.

já eu busco por quem esteja inteiro.

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ideia para adesivo de parachoque

“seu amigo negro não prova nada.”

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respeito

“respeitamos o passado aqui e ali e, se ele concordar em permanecer morto, podemos até preservá-lo, mas se insistir em continuar vivo, vamos atacá-lo e matá-lo.”

“os miseráveis”, de victor hugo.

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compromisso

se você quiser sair, não vou te segurar. se você quiser ficar, não vou te expulsar.

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ego

como escritor, meu trabalho é expor publicamente minhas falhas, meus medos, minhas vergonhas. meus egoísmos, minhas pequenezas, minhas mesquinharias.

não para falar de mim, porque eu não importo.

mas para que os leitores reflitam sobre suas próprias falhas, seus próprios medos, suas próprias vergonhas. seus próprios egoísmos, suas próprias pequenezas, suas próprias mesquinharias.

se tive sucesso, deixe uma moeda na minha canequinha de esmolas e fique com machado.

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citação

“você é eternamente responsável pelas merdas que lê em livros idiotas e depois sai repetindo por aí.”

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só mais uma quarta-feira

já andaram me perguntando o que vou fazer no dia dos namorados.

bem, nada: não tenho namorada. (até que porque gente não se tem.)

mas existe sim uma pessoa que eu amo.

essa pessoa é um ser independente, livre para beijar (e jogar bola), transar (e cozinhar), amar (e fazer ioga) com quem ela quiser.

ela não tem compromisso algum comigo, com exceção dos compromissos fluidos que decorrem da amizade e do afeto compartilhados.

ela me acompanha em muitos momentos e não em outros.

quando está comigo, é sempre lindo.

quando não está, duas coisas acontecem:

em primeiro lugar, sou feliz de outras maneiras, com outras pessoas, fazendo outras coisas. embora eu a ame, não preciso dela para ser feliz. e nem ela de mim. isso é libertador.

em segundo lugar, confirmo ainda mais que a amo. sinto falta dos seus ossinhos protuberantes do quadril, do seu jeito de bizarro tomar limonada com sal, de beijar seus pés até ela dormir, de ser acusado de romantismo quando escrevo textos como esse.

então, quando ela escolhe voltar para os meus braços, sem que nenhum compromisso ou obrigação nos una, quando poderia estar em qualquer lugar fazendo qualquer coisa com qualquer um, eu me sinto amado, mesmo que ela negue.

(não acredito no que as pessoas dizem, acredito no que fazem. se ela diz que não me ama mas se comporta como se amasse, então, na prática, na realidade, do modo mais concreto possível, ela ama. e isso vale pra tudo.)

* * *

a sociedade nos enfia muitos dogmas na cabeça. que só podemos amar uma pessoa. que quem ama sente ciúmes.

ou que as relações têm que sempre andar pra algum lugar, avançar, atingir metas, “evoluir”.

quando me sinto amando muito, às vezes tenho esses rompantes de “levar o relacionamento para a próxima etapa”.

mas essa ânsia não resiste a três segundos de reflexão.

afinal, quais são essas metas? morar junto, noivar, casar, ter o primeiro filho, comprar uma casa?

nem eu nem ela queremos nada disso. nada disso nos parece minimamente desejável.

confesso que ainda tenho dentro de mim essa vontade súbita de “ir a algum lugar com o relacionamento”, mas, quando olho pra frente, não existe nenhum lugar para onde eu queira ir.

já estou no melhor lugar onde poderia estar.

* * *

de vez em quando, me perguntam:

“alex, como encontrar parceiros para viver essas relações livres e independentes? onde estão essas pessoas?”

quando você se coloca publicamente como alguém que vive de acordo com certos valores, você vai naturalmente

— repelir pessoas que não compartilham esses valores (te poupando do trabalho de espantá-las uma por uma) e;

— atrair pessoas que compartilham esses valores e que estão buscando por seus pares.

tenho prazer em desentocar iguais.

eu me revelo justamente para descobrir quem vai bailar comigo e quem vai se encostar na parede. muita gente me acha esquisito? claro. essa é a ideia. não tenho medo de rejeição.

vale a pena afastar mil bois para atrair uma única leoa.

* * *

só não esqueça do seguinte:

a pessoa interessante que você tanto busca também está buscando por uma pessoa interessante.

encontrá-la é só o começo do desafio: mantê-la interessada é que são elas.

será que você é a pessoa dos sonhos da pessoa dos seus sonhos?

* * *

quando escrevo esses textos, muitos leitores se sentem agredidos, como se eu estivesse criticando seus estilos de vida e tentando convencê-los a mudar.

não estou. eu contar da minha paixão por maçã não é uma crítica a quem come abacaxi. o que funciona pra mim pode ser que não funcione para você. somos todos livres para vivermos nossas vidas como quisermos. eu não sou melhor que você. minhas escolhas não são melhores que as suas.

então, sintam-se livres para comemorar o dia dos namorados, essa data criada por um publicitário baiano pra alavancar a venda de um mês fraco, mas que, como tudo na vida, tem o significado que colocamos nele e não é menos real por causa disso.

mas, pra mim, sinceramente, hoje é só quarta-feira.

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aviso sempre reiterado

sou um autor de ficção. todos os meus textos são sempre rigorosamente ficcionais, mentirosos, falsos, apócrifos, inventados. aqui, no meu facebook, no papodehomem. em qualquer lugar.

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lei do conselho

(ou “acho que você deve mandar seu chefe tomar no cú”):

a contundência de um conselho é inversamente proporcional às consequências práticas que recairão sobre o aconselhador.

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lei da racionalização

(ou “bem, se não fosse eu, alguém mais teria feito”):

qualquer racionalização em seu benefício é quase sempre errada, e sempre de mau-gosto.

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roubado por aí

“o problema da vida é que julgamos os outros por suas ações, mas a nós mesmos por nossas intenções.”

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para pôr no currículo

o beijo mais passional que ganhei da Outra Significativa foi quando ela viu certas pessoas falando mal de mim no twitter.

ser odiado pelos nefandos é a melhor carta de recomendação que existe.

dá vontade de pendurar esse ódio no peito como uma medalha e mostrar pra todo mundo.

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o rio é só um rio

“on my own”, do musical “os miseráveis”, cantada pela personagem eponine, que vive uma paixão não-correspondida por marius. e, mesmo amando-o demais, termina ajudando-o a conquistar sua amada cosette.

das várias versões dessa música, minha preferida é a (mal) cantada pela personagem de katie holmes em dawson’s creek. dá pra entender toda a dinâmica amorosa da série só de assistir o clipe. captura perfeitamente o tom de amor e resignação da música.

um trecho: “i love him, // but when the night is over, // he’s gone, // the river’s just a river”

inventamos amores, paixões, dores, vinganças, ciúmes, mas, no final, na verdade, o rio é só um rio.

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e não é que deu um texto?

tenho viajado acompanhado de uma fotógrafa. ela raramente tira fotos.

de vez em quando, no começo, eu ainda dizia:

“olha, acho que isso dá uma foto!”

ou então:

“por que não fotografa isso?”

e vinha sempre a resposta:

“olha, acho que isso dá um texto! por que não escreve sobre isso?”

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cú tem que ter acento. cú combina com acento. cú sem assento é um acinte.

a melhor coisa de escrever cú com acento é descobrir quem são os malas que vão te corrigir.

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se eu fosse forte

de vez em quando, acho importante reler essa crônica. todo artista deveria, pelo menos uma vez. mestre albano martins, vulgo branco leone, em sua melhor forma. talvez seja minha crônica favorita.

* * *

Estava lá nas Livrarias Curitiba (em uma só, é claro!), autografando um livro. A certa altura, a fila diminuiu, e aproveitei para abandonar os amigos e meu posto na mesa, para dar uma espiada na livraria. Andava por trás de alguma gôndola, folheando alguma coisa, quando percebi, ao meu lado, um moleque: alto, loiro despenteado e olhos muito sérios grudados num rosto que, à primeira vista, não pertencia aos olhos. Não tinha nem vinte anos, e olhava ao redor, desconfiado, como se estivesse a ponto de me assaltar. Tento aqui reproduzir o diálogo que se seguiu, usando o sotaque dele:

– Foi tu que escreveu aquele livro vermelho?

– Eu e mais nove. – respondi.

– E o SESC nisso?

– Pagou parte da edição, dividiu com a editora. – expliquei.

Pausa.

– Tu é de São Paulo, não é?

– Sou.

– O SESC de São Paulo é foda, né?

– Põe foda.

– Legal.

E voltou a olhar para os lados. Agora vinha o bote, era de se ver.

– Eu também escrevo. – ele disse.

– Ah, é? – simulei algum interesse para não decepcioná-lo, porque não vejo muita graça nesse assunto.

– É. – confirmou ele.

Outra pausa incômoda.

– E o que tu escreve? – perguntei, aproveitando para usar a gramática local.

– Poesia.

– Ah, é?

– É.

Mais uma pausa. Ou ele dava uma mãozinha, ou a coisa desandava: minha dificuldade com poesia é notória.

– Eu canto numa banda de punk-rock. – confessou, usando todos os erres do sotaque curitibano: “panquerrróque”.

– Letras tuas? – perguntei.

– Só.

– Então, é assim que tu publica?

– Não só.

Mais pausa. Eu estava curioso, mas quase desistindo. Era pausa demais, mesmo para quem tem paciência!

– Tu tem um blog? – investi.

– Não. Não tenho Internet. – disse cabisbaixo, como se alguém no mundo a tivesse. – Eu grudo é nos orelhão.

– Hein? – gaguejei.

– Eu escrevo, xeroco e grudo dentro dos orelhão. – me disse, quase sorrindo.

– Você gruda seus poemas dentro dos telefones públicos, e vai embora? – com o susto, perdi o sotaque e a gramática.

– Ué! Tu queria que eu ficasse lá pra quê?

– Besteira minha… Eu quis perguntar se você deixa algum meio de contato junto com os poemas? Um e-mail?

– Não tenho.

– Telefone?

– Não deixo. – parou um instante, e completou: – Eu nem assino.

Fez-se outra pausa, esta provocada pela minha boca aberta.

– Caralho… – consegui murmurar algum tempo depois.

– É… – respondeu ele.

Fiquei olhando aquele alienígena: na minha frente, estava um escritor, coisa rara, um dos poucos que conheço. Um cara que escreve. E só. Na verdade, ele escreve, xeroca e gruda “nos orelhão”. E acabou-se. Opinião alheia? Pra quê? Reconhecimento? Pfff… Sucesso? Não o faça rir. Editora, distribuidora, dez por cento do preço de capa, resenha nos cadernos literários? Ora, nada disso tem nenhuma importância para ele. Ele escreve e sabe que nunca vai chegar a lugar nenhum com isso. É quase como se tivesse vergonha do que faz. Cá pra nós, todos os que fazem isso também deviam ter. E eu lá na livraria, lançando um livro! Pateta…

Foi só depois que ele sumiu pelo meio das pessoas, que me ocorreu de lhe agradecer. Quis lhe dar um livro, sei lá, pagá-lo de alguma forma. Mas ele já tinha ido.

Depois desse encontro, continuei escrevendo. Mas desde então, nunca mais fiz isso com a mesma intenção, com os mesmos princípios. O curitibano vocalista de uma banda de panquerrróque quebrou alguma coisa em mim. Mas tudo bem, era uma coisa que estava estragada.

* * *

eu, se fosse forte, seria esse piá. mas sou fraco.

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gentileza

se alguém te ajudou, você sempre pode pagar a dívida ajudando outra pessoa.

* * *

um dia, nove anos atrás, no fim de uma madrugada histórica, cometi um ato de mesquinharia e pequenez: neguei um favor simples a uma pessoa que eu não conhecia. a toa. não havia nenhum impedimento prático. não me custaria nada. eu só não quis.

não foi uma distração: uma amiga me puxou para o lado e me pediu, enfaticamente, para fazer isso por essa outra pessoa. insistiu bastante. neguei.

fiquei anos com isso na cabeça. com o tempo, a pessoa a quem neguei o favor se tornou uma amiga, alguém que admiro imensamente.

só ontem consegui pedir desculpas a ela. esse pedido de desculpas era das coisas que estava na minha garganta há quase uma década. daquelas coisas que, na hora da morte, a gente se arrepende de não ter dito.

então, ontem, eu disse.

* * *

nem sempre podemos retribuir diretamente quem nos ajudou, mas podemos repassar a gentileza para outras pessoas.

se você fez mal a alguém e quer expiar o seu pecado, não precisa ser necessariamente com sua vítima.

de forma consciente, para reparar minha falta, comecei a fazer por outras pessoas o favor que neguei naquela noite.

assim, conheci a Outra Significativa.

se eu não tivesse cometido aquela mesquinharia e se não estivesse ativamente tentando compensá-la, não teria conhecido minha atual companheira.

deve ter alguma moral aí.