Uma amiga norte-americana, uns dez anos atrás:
“Alex, sabe qual a coisa que mais amo no Brasil? Na Europa, em qualquer país, se você encontra uma grupo de pessoas enroladas na bandeira nacional, já sabe que não é coisa boa. Nos EUA, as casas com a bandeira hasteada na fachada são sempre de republicanos que apoiam todas as nossas guerras e invasões. No Brasil, não. Aqui, as pessoas vestem a bandeira do Brasil, colocam a bandeira nas havaianas e nas camisetas, vão à praia com a canga da bandeira, e isso não é ameaçador, não é agressivo, não é violento. Aqui a bandeira ainda é linda, positiva, inspiradora.”
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Hoje, agora, acabou de passar uma carreata do Bolsonaro aqui pela frente de casa. Motos enormes e jipões utilitários com a bandeira verde-amarela balançante. Pessoas agressivas gritando “Mito! Mito!” e “Melhor Jair se acostumando”, com toda a carga de ameaça que essa frase pode ter. Gestos que simbolizavam armas sendo apontados para as pessoas nas calçadas.
Ando pensando muito nessa minha amiga norte-americana.
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Durante sete anos, morei em Nova Orleans, principal porto escravista norte-americano. Assim como o Rio de Janeiro, uma bela cidade, sexy e musical, turística e carismática, construída nas costas de escravos desesperados e agonizantes.
Um dia, enquanto passeava com meu cachorro pelo bairro universitário, uma soccer mom enfiava cuidadosamente seus quatro filhinhos, todos brancos e roliços, em seu jipão utilitário de luxo, também branco e roliço. Era uma senhora baixinha e gorducha, bochechas rosadas e orelhas de abano, carregando mochilas e merendeiras, parecendo dotada daquela infinita paciência que só uma mãe de quatro meninos pode ter. E, em seu para-choque traseiro, discretamente, estava o adesivo:
The South Will Rise Again (“O Sul se Erguerá Novamente”)
Como não se sentir ameaçado? Não conheço o contexto dessas palavras. Por tudo que sei, é um inocente desejo de revitalizar a economia local. Mas, ainda assim, nenhuma racionalização poderia apagar o meu calafrio ao ler aquela frase; nenhuma explicação lógica faria aquele adesivo soar menos sinistro. De certo modo, era como se o ressurgimento do Sul fosse indistinguível e indissociável do reescravizamento de toda uma raça.
E pensei: o Brasil foi tão ou mais escravista do que o Sul dos Estados Unidos, e resistiu por muito mais tempo até libertar seus escravos. Ainda mais doloroso pra mim, dos nove únicos deputados que tiveram a cara-de-pau e a temeridade de votar contra a Lei Áurea em pleno maio de 1888, já na véspera do século XX e na contra-mão de todos os ventos filosóficos do XIX, oito eram do Rio de Janeiro. Legítimos representantes eleitos do meu estado.
Entretanto, não ficamos nem o Rio e nem o Brasil maculados por essa nódoa. Um adesivo “O Brasil Crescerá” despertaria calafrios? Claro que não. Nem o Paraguai tem medo do Brasil. E concluí, aliviado: ainda bem que pelo menos o bom nome do meu país e do meu estado não estão ligados à escravidão.
Um segundo depois, bateu o estranhamento: mas… por que não?
A falta de calafrios não corresponde à falta de crimes. O Sul dos EUA teve, no Norte, um vizinho incômodo que manteve viva a memória de seus crimes. Já em nosso caso, simplesmente varremos nossos crimes para debaixo do tapete.
Não somos mais virtuosos: somos melhores em esconder o corpo.
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Hoje, economistas admitem que o salário-mínimo é desumano e indigno, mas argumentam, com resignação, que o país iria à falência se pagasse um salário-mínimo humano e digno.
Ontem, cafeicultores admitiam que a escravidão era desumana e indigna, mas argumentavam, com resignação, que o país iria à falência se as lavouras fossem plantadas por pessoas assalariadas.
Seja na época colonial ou no segundo milênio, o consenso entre as pessoas brasileiras que vivem em condições humanas e dignas é sempre o mesmo: o Brasil só pode existir enquanto entidade política viável se mantiver grande parte das outras pessoas brasileiras em condições desumanas e indignas.
Mas é viável uma entidade política que não consegue nem mesmo garantir condições humanas e dignas para a maioria de sua população? Nesse caso, existir para quê? Existir para quem?
(Como bradou Castro Alves, ao ver a bandeira brasileira servindo de proteção a navios negreiros: “Antes tivesse sido destruída na batalha do que servindo a um povo de mortalha.”)
Em um primeiro momento, esse é o objetivo dos meus textos é tornar a nossa vida cotidiana inviável.
Ao final, quem ainda for uma pessoa viável nessa sociedade tão inviável, quem ainda conseguir caminhar pelo centro da cidade sem se rasgar de desespero, é porque não passou no curso.
Mas, se precisamos nos tornar pessoas insensíveis para funcionar em uma sociedade insensível, talvez essa sociedade é que não devesse funcionar.
Talvez fosse o caso de derrubar e fazer outra.