falar das ações que podemos tomar para não sermos vítimas de crimes… não significa culpabilizar as vítimas e desculpar as criminosas.
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o otário é seguro de si
uma das coisas que define a pessoa otária é a sua certeza de não ser otária.
uma pessoa que eu conheço comprou um iphone 6, novo, na caixa, em um site de classificados, por apenas 800 reais. quando a encomenda chegou, claro que não era um iphone. quando foi reclamar, malandro já tinha sumido.
por que essa pessoa caiu nesse golpe tão banal, tão previsível?
porque, em alguma medida, ela via as OUTRAS pessoas comprando seus iphones por dois mil reais na loja autorizada e pensava:
“vou lá eu ser otária de pagar dois mil num iphone? nada! eu tenho um esquema, eu conheço um site, eu dou meu jeito, eu sou esperta.”
naturalmente, quando se compra um iphone 6, novo, na caixa, por 800 reais, dá pra saber com certeza que teve malandragem, desonestidade, crime na história: porque não tem jeito honesto da pessoa obter um iphone por esse preço.
então, das duas, uma:
ou o malandro roubou esse iphone de alguma pessoa otária, ou a otária é você.
mas o que define a otária é a sua certeza de não ser otária.
ao comprar o telefone, a pessoa (convicta da sua não-otarice e se achando muito esperta) está implicitamente aceitando ser cúmplice do crime sofrido pela OUTRA otária (não tão esperta quanto ela).
o que ela nunca pensa:
“hmm, se ele deu o golpe nessa outra otária, por que ele não daria um golpe em mim também?”
ela não pensa isso… porque ela tem certeza que a otária não é ela.
naturalmente, ao ter certeza de que não é otária e de que otárias são as outras, a pessoa se torna a proverbial otária e cai no golpe.
nunca houve a “primeira otária”: a única otária sempre foi só ela.
paradoxalmente, a pessoa que SABE que é otária, ou que desconfia que pode ser, nunca cai em golpes como esse:
“poxa, moço, um iphone 6, novo, por 800 reais, é tentador, né? quase bom demais pra ser verdade! mas, ó, não posso não, sou meio bobo, sabe, otário mesmo, fico caindo em golpes, já perdi tanto dinheiro, o senhor nem imagina!, minha esposa nem me deixa mais comprar essas coisas sem falar com ela, prefiro mesmo comprar na autorizada, pagando caro, sabe como é, mais seguro!”
só é otária quem acha que não é. quem acha que é, jamais será.
malandragem é metapoesia pura.
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o otário é ganancioso
e tem mais.
quase todo golpe depende, em alguma medida, da ganância do otário.
se um príncipe nigeriano, em um momento de necessidade, te pedir ajuda para trazer dinheiro ao brasil e se oferecer para depositar mil reais da sua conta mas você só precisa dar quinhentos pra ele…
… o golpe acaba na hora se você responder que se recusa a lucrar em cima da necessidade alheia e que, assim que os mil reais caírem na sua conta, você transfere o valor total ao pobre príncipe.
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se uma coach cobra fortunas (e mais bônus imperdíveis e um webinário grátis!) para ensinar sobre gatilhos mentais, técnicas de venda, copywriting persuasivo, etc, mas a coachee em potencial responde:
“olha, isso tudo é muito bonito, agradeço seu empenho em alavancar minha carreira, mas eu não me sentiria bem utilizando essas técnicas de hipnose neurolinguística para manipular outras pessoas.”
… o golpe acaba na hora.
pois aquilo que faz a coachee permanecer ali, sendo ordenhada e tosquiada pela lifestyle coach, é justamente sua ganância em ordenhar e tosquiar as próximas otárias.
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simplesmente não querer se aproveitar de ninguém é a melhor defesa contra os malandros que querem se aproveitar de nós.
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o otário é burro
“por que esses emails de ‘príncipe nigeriano’ são tão toscos, meu deus? alguém cai nisso? isso convence alguém?”
é um “vestibular da otarice”:
os emails são toscos para afastar qualquer pessoa com qualquer pensamento crítico, qualquer pessoa que já tenha ouvido falar desse golpe, qualquer pessoa que verifique as coisas na internet.
mandar milhões de emails é fácil, o que dá trabalho é trocar emails com as pessoas otárias: as golpistas só querem investir esse tempo com as pessoas que sejam as superotárias, as megatrouxas, as überpatas.
por isso, quanto mais tosco o email, mais garantida será a otarice de quem responder a ele.
a crueldade desses golpes é fazer as ovelhas se auto-apresentarem para a tosquia.
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o otário não sabe fazer conta
como elaborar um sistema infalível para ganhar nas corridas de cavalos?
como jogar uma moeda dez vezes e conseguir “cara” dez vezes?
por que você ter tomado homeopatia e se curado não quer dizer que homeopatia funciona?
the system, de derren brown, responde todas essas perguntas e é uma verdadeira aula sobre como deixar de sermos enganadas.
(nos primeiro dois minutos, eu já tinha adivinhado o “truque”. aí pensei: “não pode ser, é simples demais, deve ser algo mais complexo!” no final, era exatamente a coisa simples que eu tinha adivinhado no começo. infelizmente, não é preciso nada muito elaborado para enganar as pessoas.)
leia também meu texto sobre homeopatia e método científico.
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deixo vocês com um trecho do meu conto “A falta que nos fazem os figos”, do meu livro onde perdemos tudo (2011):
“Alguns anos atrás, ela começou, uma equipe de estudiosos de percepção extra-sensorial conduziu uma pesquisa de campo em uma aldeia de pescadores onde, segundo informações, um alto número de crianças havia predito a morte de seus pais.
Feitas as diligências iniciais, verificou-se que o fenômeno de fato se dera. Uma das crianças acordou no meio da noite e disse para a mãe que o pai não iria mais voltar do mar. Outra passou um dia inteiro falando para todo mundo que encontrava pela frente: o papai morreu no mar, não foi?, eu sei, eu sei. Em ambos os casos, e em vários similares, as previsões se realizaram.
Satisfeitos com a comprovação do fenômeno paranormal, os cientistas estavam se preparando para voltar às suas universidades quando um membro mais cético da equipe questionou a metodologia da pesquisa e resolveu conduzir um outro estudo por conta própria.
Não precisou de muito trabalho para descobrir que o maior medo de qualquer filho — e aliás, esposa também — de pescador é que algum dia o pai ou marido não volte do mar. As esposas, adultas e mais controladas, não saem verbalizando esse sentimento por aí o tempo todo, mas as crianças, destemperadas e impressionáveis, sim.
Em suma, rara era a ocasião em que um pescador saísse ao mar e sua família não tivesse pressentimentos de sua morte, que seus filhos não sonhassem com o pai enfrentando as ondas em seu barco para em seguida afundar e morrer. Logo, por uma questão de probabilidade, algum deles teria que acabar acertando.
A explicação do fenômeno, concluiu ela, não era paranormal, e sim, estatística.”
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conclusão e ressalvas
a responsabilidade do crime sempre é da pessoa criminosa.
a vítima nunca é culpada, nem mesmo co-responsável.
raríssimas são as criminosas que escolhem suas vítimas aleatoriamente, entretanto: o batedor de carteira ou o puxador de carro escolhem com cuidado e com experiência seus alvos.
de algum modo, de alguma maneira, antes de sofrermos qualquer crime, passamos quase sempre por algum tipo de “vestibular de vítima”.
por isso, sempre existem ações concretas que podemos fazer para aumentar ou diminuir nossas probabilidades de sermos aprovadas nesse vestibular perverso.
dizer isso não é colocar a responsabilidade nas vítimas ou des-culpar as criminosas, mas enfatizar a agência, a autonomia de todas as pessoas humanas, vítimas e criminosas.
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sobre como não sermos vítimas de crimes, o melhor livro, o mais importante, o que mais presenteei na vida, é as virtudes do medo, de gavin de becker.
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Próximos eventos
Em 2017, vão acontecer três imersões “As Prisões”:
no Sudeste, em Areias (na Dutra, no meio do caminho entre Rio e São Paulo), em junho e em outubro.
no Sul, em Viamão (a 20km de Porto de Alegre), no feriadão de finados, em novembro.
Uma resposta em “o otário: quem é? onde vive?”
[…] Acredito que nossa natureza, enquanto humanidade, é a colaboração, por isso, sempre que possível e nos limites do que julgo correto, tento ajudar as pessoas amigas. Nessa relação, elas são mais vítimas (das empresas) do que algozes (de si mesmas). Sobre as empresas que se acham espertas copiando códigos livres para depois fechá-los, violando as licenças de software (ou sobre qualquer outro tipo de pretendente a “malandro”), sempre lembro do Alex Casto no seu texto O otário, que é, onde vive: […]