Dentre as muitas armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos e escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas, poucas podem ser mais unânimes (especialmente no Ocidente) do que a ilusão de que, dentro de cada uma de nós, existiria uma essência maior do que a soma de nossas partes: o Eu.
Nossa prática zen não consiste em “abandonar o Eu” — porque o Eu não existe e não temos como abandonar algo que não existe — mas sim em desapegar dessa ilusão que criamos para buscar o prazer e evitar a dor, dessa ilusão que nos venderam para poderem vender a ela automóveis e pasta de dente.
Não é que eu, aqui, pessoa concreta, de carne e osso, falando essas palavras nesse exato minuto, e você, ouvindo essas palavras nesse exato minuto, não tenhamos existência física, concreta, real.
(Afinal, eu sinto, eu sei que estou aqui e você sente, você sabe que está aí.)
Mas essa entidade que chamo de Eu — que me parece tão maior e mais transcendental do que apenas a mera soma de “meus” membros, “meu” corpo, “minha” consciência, “meu” nome — é apenas um conceito que não possui existência permanente e autônoma, uma coleção de características contingentes e fortuitas sem nenhum tipo de essência intrínseca.
Nossa consciência é formada por um contínuo de experiências ao qual damos um nome. Por razões práticas, faz sentido distinguir uma pessoa da outra – sou o João da Silva porque não sou nem o Chico Buarque nem a Joana d’Arc.
Da mesma maneira, distinguimos um rio do outro: o Rio Amazonas e o Rio Paraíba do Sul são dois rios diferentes porque nascem em pontos diferentes, correm por trajetos diferentes, contêm águas de composições químicas diferentes, deságuam em pontos diferentes.
Entretanto, por mais reais e concretos que sejam esses caudalosos rios, eles não possuem qualquer essência: como até os gregos antigos sabiam, não se banha duas vezes no mesmo rio. Suas águas literalmente nunca são as mesmas.
Tudo é contingente: somos pessoas únicas não porque temos uma pretensa essência metafísica (o Eu!) qualitativamente diferente da essência metafísica das outras entidades que não-são-o-meu-Eu, mas sim porque surgimos a partir de condições únicas e de circunstâncias irrepetíveis.
Se conseguimos desapegar de nosso Eu, se conseguimos nos libertar da obrigação absorvente de cuidar e proteger essa frágil entidade dentro de nós (“será que construí o suficiente em vinte e cinco anos de vida?”, “será que as pessoas gostam mesmo de mim?”, etc etc), então, poderemos finalmente levantar os olhos, perceber as pessoas à nossa volta e nos dar conta de que elas também estão sofrendo.
Desapegar do nosso Eu não nos impede de militar em causas sociais ou de lutar para transformar a realidade.
Pelo contrário, ao eliminar a importância excessiva que damos a nós mesmas em relação às outras pessoas, o nosso potencial de engajamento político é finalmente desbloqueado, realizado, magnificado.
Se o nosso Eu tivesse uma essência, então nossa natureza nunca poderia mudar: o fato de o nosso Eu ser vazio de existência intrínseca é justamente o que nos permite a liberdade de nos reconstruir, recriar, reinventar.
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Pós-escrito
Fala do Darma de 17 de outubro de 2018, em Eininji, dada por um dos nossos instrutores Alex Darma de Iquiú.
Fala inspirada nos trechos abaixo dos “Versos fundamentais do Caminho do Meio”, de Nagarjuna:
“Se eu tivesse uma essência, eu nunca deixaria de ser eu. Se não tivesse nenhuma essência, quem deixaria de ser eu?”
“Você não é igual, e nem diferente, das condições das quais depende [para existir]; você não está nem separado delas, nem eternamente identificado com elas.”
“Quando a vacuidade é possível, tudo é possível. Se vacuidade fosse impossível, nada seria possível.”
Nagarjuna foi um sábio budista indiano do séc.II. Os trechos foram adaptados a partir das traduções de Batchelor, Garfield e Ferraro. Capítulos 15, estrofe 9; 18.10; 24.14.
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Todas as quartas-feiras, em Eininji — Templo do Cuidado Amoroso Eterno, nosso professor e monge-responsável dá um pequeno ensinamento sobre budismo chamado Fala do Darma. (Darma é o ensinamento do Buda.)
Enquanto ele está em Portugal na Imersão Zen, as Falas do Darma estão sendo dadas pelas pessoas alunas de nosso Curso de Formação de Professores do Darma.
A Fala acima foi dada pelo aluno Alex Darma de Iquiú, na quarta, 17 de outubro de 2018.
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As Falas do Darma acontecem todas as quartas feiras, às 20h35, depois do zazen (meditação silenciosa) das 20h.
Todas as pessoas são bem-vindas.
Pedimos para chegar até às 19h50, trajando roupas escuras e confortáveis, sem dizeres ou decotes, adereços ou bijuterias.
A entrada é franca, mas sua contribuição voluntária será muito bem recebida.
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Eininji – Templo do Cuidado Amoroso Eterno
Rua Saint Romain 16, Copacabana
Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 22071-060
Telefone: 55 21 97262 2026
Email: eininji@eininji.org
Facebook: /eininji
Site: eininji.org
Monge responsável: Álcio Braz Eido Soho.