Categorias
textos

comentaristas do prato alheio

“vai comer tudo isso?” “vai comer só isso?” “não pegou salada?” “não pegou carne?” “nossa, já acabou?” “nossa, ainda não acabou?”

para as pessoas de modo geral, existem vários comportamentos eliminatórios à mesa: falar de boca aberta, arrotar, comer feijão com arroz de colher, etc.

devo ser mesmo muito diferente, pois nada disso me incomoda.

tem apenas um comportamento à mesa que considero eliminatório. já me levantei de algumas mesas por causa dele. existem várias pessoas com quem não sento mais à mesa por serem reincidentes.

é o comentarista do prato alheio:

“vai comer tudo isso?” // “vai comer só isso?”

“não pegou salada?” // “não pegou carne?”

“nossa, já acabou?” // “nossa, ainda não acabou?” etc etc

em outros tempos, mais reativo e mais agressivo, eu responderia:

“quem é você para ter opinião, e pior ainda, verbalizar essa opinião, sobre a porra do MEU prato?”

hoje, me sinto tentado a pontificar:

“você tem noção de como esse comentário é invasivo e inconveniente?”

mas acho que não cabe a mim (além de ser uma atitude rude, arrogante e condescendente) querer ditar como as outras pessoas, adultas e independentes, devem se comportar.

assim como elas não têm que dar pitaco no que eu como ou deixo de comer, eu não tenho que dar pitaco no que falam ou deixam de falar.

então, a única opção polida que me resta é deixar de sair com as pessoas que verbalizam opiniões sobre o meu prato, sobre minha alimentação, sobre meus comportamentos.

* * *

na minha época de escola, em tempo integral, eu constantemente desmaiava, e tinha que ser levado para a enfermaria, por passar o dia inteiro sem comer.

e por que eu não comia?

porque bastava colocar qualquer coisa na boca para ouvir uma variação de:

“comendo de novo? é por isso que você está gordo assim! gordo tá sempre comendo!” etc.

gordofobia sam

* * *

no mundo das pessoas adultas e teoricamente bem-educadas, ainda existem muitas comentaristas do prato alheio que cometem variações desse comentário.

um dos meus colegas de escola não fez universidade, foi nadador olímpico e, depois que a carreira acabou, se converteu em representante comercial de uma marca de refrigerante.

um dia, nos encontramos em uma casa de suco, onde eu estava comendo e ele, ainda saradérrimo, vendendo coca-cola.

ao ver o meu sanduíche de peito de frango (nada nem tão trash!), ele comentou, em carinhoso tom de preocupação:

“ô, alex, você está gordo assim porque come essas porcarias!”

e minha resposta, na lata:

“ô, fulano, você está vendendo refrigerante assim porque ficou nadando ao invés de estudar!”

mas só pensei, não falei: teria machucado muito fundo e ele não merecia esse insulto, aliás, injusto — tirando ser fornecedor de açúcar líquido, não há nada de errado em vender refrigerante.

agradeci a ele por seu carinhoso interesse na minha saúde, mudei a conversa para outro assunto e nunca mais o procurei.

* * *

hoje em dia, o comentário que mais me incomoda é quando a pessoa me oferece seus restos de comida:

“ô sua draga, sobrou alimento aqui no meu prato, que eu chafurdei, mas não comi. como você parece que bota qualquer coisa pra dentro, não quer enfiar isso na sua vala também?”

naturalmente, a oferta nunca é feita nesses termos.

mas é o que ouvem os meus ouvidos, acostumados a quarenta anos de gordofobia.

relaxa só brincadeira nao precisa se ofender

ilustra: manzanna.

* * *

sobre a tirania das nossas opiniões, dois exercícios de empatia:

exercer a não-opinião & cultivar o não-conhecimento

6 respostas em “comentaristas do prato alheio”

Odeio qualquer tentativa de controlar qualquer aspecto da minha vida. Sou um bicho, mas à minha maneira. Os teus textos deviam constar dos livros escolares. meu doce Alex.

Acho que você pode pontuar seu descontentamento com a pessoa que faz comentários sobre seu prato sem ser necessariamente rude.
Algo como “me sinto invadido por comentários desse tipo” ou “Não me sinto bem quando comentam sobre meu prato”…enfim, coisas assim, em que você se coloca na conversa e admite como se sente, em lugar de simplesmente afirmar que comentário X ou Y é invasivo. Se é invasivo, é porque alguém (você) se sentiu invadido. Nada mais justo para ambas as partes que conversar sobre os incômodos na hora em que eles são gerados. Pelo menos, assim acho eu.

Empatizo facilmente com você, mas também consigo empatizar com a hipotética pessoa que fazia esses comentários, recebeu um silêncio como resposta, nunca mais recebeu um convite para almoçar com você e ainda encontrou esse post aqui no teu blog…

Uma resposta que tem me ocorrido muito ultimamente, embora nem sempre tenho coragem de proferir é: Me de seu telefone, que quando eu quiser sua opinião eu ligo pra pedir .

Alex, estou aqui lendo seu artigo que chegou para mim através do facebook de não sei quem, mas estou imensamente grata por ter o prazer de ler este texto! É bom saber que não estou sozinha, que existem pessoas que pensam como eu, que tem empatia pelo próximo, mesmo ele sendo um completo babaca! Infelizmente, esses tipos de comentários também fazem parte do meu cotidiano, claro, sempre com muita doçura e discrição para “não ofender” ou “não parecer preconceituoso”, mas assim como você, estou a cada dia mais me afastando desse tipo de pessoa. Costumo usar muito o facebook como meio de garimpar notícias, assim como me fez chegar até você, é uma pena que não use essa mídia, de qualquer forma, vou me inscrever para te acompanhar a partir de agora.

Boa noite, Alex.
Texto muito pertinente. Vivo irritada com os fiscais do prato alheio, da dieta alheia. Embora eu seja magra, sou uma ex-anoréxica, e sei bem que essa fiscalização é um fomento aos transtornos alimentares, como você mesmo comentou do seu caso de ter chegado a algumas vezes desmaiar na escola para escapar aos fiscais. Cada dia sou mais intolerante a qualquer tentativa de controlarem meu peso, minha comida, minha aparência. Infelizmente, ou felizmente, não sou tão educada quanto você e dou respostas atravessadas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *