A esperança é nos fode. A esperança nos estressa. A esperança nos faz lutar infindavelmente em prol de causas perdidas — pois, afinal, há uma esperança.
Quantas pacientes de câncer não teriam aproveitado melhor e com mais substância seus últimos meses de vida, em paz, em contemplação, cercadas de seus entes queridos…
…se não estivessem “lutando até o fim”, pulando de médica em médica, sendo as “batalhadoras” contra o câncer que nossa sociedade espera que todas sejamos?
A beleza do luto é que não há mais esperanças.
O luto não é uma luta: não tem objetivo a ser alcançado, não há esperança de vitória, nada há para ser ganho.
A pessoa amada morreu e não vai voltar, nem se fizermos o melhor e mais competente trabalho de luto do mundo.
Em meus momentos de dor, essa é uma libertação: não depende mais de mim. (Talvez nada nunca tenha dependido, mas, agora, com certeza, nem mesmo isso.)
O luto não é algo que faço PELA pessoa querida que se foi, não é algo que faço PARA conseguir alguma coisa.
O luto é algo que é.
O luto existe porque existo; porque sou gente, primata, tecido, nervos, emoções, impulsos químicos; porque estou vivo. (Só tecido morto não dói.)
O luto é um processo meu: existe dentro de mim, POR mim, PARA mim.
Por tudo isso, só depende de mim: o meu luto dura o tempo que eu precisar que eu dure.
E se eu quiser me fechar ao mundo e viver para aquela dor e ser definido por aquela dor, eu posso. É meu direito. Serei a viúva que passa o resto da vida de preto, guardando a memória do seu grande amor.
E se eu quiser levantar do chão e sacudir a poeira, comer, beber e ser feliz, pois amanhã morreremos, eu também posso. Afinal, mais vale um cachorro vivo do que um leão morto.
Nada há para ser ganho. Não há esperança. Só existe o luto e seu trabalho, o luto e seu processo, o luto e seu ciclo.
O luto é meu. O meu luto sou eu.
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Notas de leitura
O texto acabou. Fim. Pode parar de ler. Abaixo, algumas notas de leitura.
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Devo ser mesmo uma pessoa religiosa. Pois, para pensar o luto, de tantas referências laicas que poderia ter usado, só me vêm à cabeça textos religiosos, judaico-cristãos e budistas.
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Em primeiro lugar, sobre os malefícios da esperança, escreveu a mestra zen Charlotte Joko Beck:
“Uma vida vivida sem esperança é pacífica, alegre e compadecida.
Enquanto nos identificarmos com esta mente e este corpo — e todos fazem isso — esperaremos que aconteçam coisas que, em nossa opinião, tomarão conta de nosso corpo e de nossa mente.
Esperamos ter sucesso. Esperamos ter saúde. Esperamos alcançar a iluminação.
Há todo tipo de coisa que esperamos nos aconteça; e, evidentemente, toda forma de esperança consiste em dimensionar o passado e projetá-lo no futuro.
A pessoa que já praticou o sentar, seja qual for o período que durou sua prática, sabe que não existe passado ou futuro, exceto em nossa mente.
Não há nada além do si-mesmo e o si-mesmo está sempre aí, presente.”
(Sempre Zen.)
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Depois, a melhor cena de luto da literatura.
Quando seu filho fica doente, o Rei Davi faz de tudo para salvá-lo. Finalmente, a criança morre e os conselheiros, depois de ver o empenho do Rei, ficam com medo dele fazer alguma loucura. Mas Davi simplesmente se levanta e sacode a poeira, toma banho e vai almoçar.
(Reparem como já na primeira linha o narrador nos relembra que o filho era fruto de um relacionamento criminoso.)
“Iahweh feriu a criança que a mulher de Urias dera a Davi e ela caiu gravemente enferma.Davi implorou pelo menino: jejuou, ficou junto dele, e passou a noite prostrado no chão.
Os dignitários da sua casa foram ter com ele para o levantarem do chão, mas recusou e não tomou alimento nenhum com eles.
No sétimo dia, o menino morreu.
Os oficiais de Davi tinham receio de lhe dar a notícia de que o menino tinha morrido. Diziam:
“Quando a criança estava viva, nós lhe falamos e ele não nos ouviu. Como podemos agora dizer-lhe que a criança morreu? Ele poderá fazer algum mal!”
Davi notou que os seus oficiais cochichavam entre si e compreendeu que a criança estava morta.
Perguntou-lhes Davi:
“O menino morreu?”
Eles responderam:
“Sim.”
Então Davi se levantou do chão, lavou-se, pôs perfume e mudou as vestes. Depois entrou no santuário de Iahweh e se prostrou. Voltou para casa, mandou que lhe servissem a refeição e comeu.
Disseram-lhe os seus oficiais:
“Que fazes aí? Enquanto a criança estava viva, jejuaste e choraste, e agora que a criança morreu tu te levantas e te alimentas?!”
Ele respondeu:
“Enquanto a criança vivia, jejuei e chorei, porque eu dizia: Quem sabe? Talvez Iahweh tenha piedade de mim e a criança viva. Agora que o menino está morto, por que jejuarei? Poderei fazê-lo voltar? Eu, sim, irei aonde ele está, mas ele não voltará para mim.”
(Segundo livro de Samuel, capítulo 12, Bíblia de Jerusalém.)
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Utilizei também algumas palavras de Coelet no meu texto acima, tiradas do trecho abaixo:
“Todos têm um mesmo destino, tanto o justo como o ímpio, o bom como o mau, o puro como o impuro, o que sacrifica como o que não sacrifica; o bom é como o pecador, o que jura é como o que evita o juramento.
Este é o mal que existe em tudo o que se faz debaixo do sol: o mesmo destino cabe a todos. O coração dos homens está cheio de maldade; enquanto vivem, seu coração está cheio de tolice, e seu fim é junto aos mortos.
Ainda há esperança para quem está ligado a todos os vivos, e um cão vivo vale mais do que um leão morto.
Os vivos sabem ao menos que irão morrer; os mortos, porém, não sabem, e nem terão recompensa, porque sua memória cairá no esquecimento.
Seu amor, ódio e ciúme já pereceram, e eles nunca mais participarão de tudo o que se faz debaixo do sol.
Vai, come teu pão com alegria e bebe gostosamente o teu vinho, porque Deus já aceitou tuas obras.
Que tuas vestes sejam brancas em todo tempo e nunca falte perfume sobre a tua cabeça.
Desfruta a vida com a mulher amada em todos os dias da vida de vaidade que Deus te concede debaixo do sol, todos os teus dias de vaidade, porque esta é a tua porção na vida e no trabalho com que te afadigas debaixo do sol.
Tudo o que te vem à mão para fazer, faze-o conforme a tua capacidade, pois, no Xeol para onde vais, não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento e nem sabedoria. 11Observei outra coisa debaixo do sol: a corrida não depende dos mais ligeiros, nem a batalha dos heróis, o pão não depende dos sábios, nem a riqueza dos inteligentes, nem o favor das pessoas cultas, pois oportunidade e chance acontecem a eles todos.
Com efeito, o homem não conhece o seu tempo. Como peixes presos na rede traiçoeira, como pássaros presos na armadilha, assim também os filhos dos homens se enredam no tempo da desgraça, quando ela cai de surpresa sobre eles.”
(Eclesiastes, capítulo 9, Bíblia de Jerusalém.)
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Jó, Eclesiastes e Samuel/Reis são três dos meus livros preferidos da Bíblia.
(Originalmente, os livros 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis e 2 Reis eram um livro só.)
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Por fim, cito uma frase do Sutra do Coração, talvez o texto mais importante do budismo zen, que recitamos no nosso templo toda semana e que eu quase já sei de cor:
“Sutra do Coração
Quando o Bodhisatva da compaixão Avalokitesvara praticava as profundezas de Prajna Paramita ele claramente percebeu o vazio e a não existência de todas as coisas, livrando-se dessa forma da dor e do sofrimento.
Ó Sariputra, aqui a forma é o vazio e o vazio é a forma, tudo que tem forma é exatamente vazio e tudo que é vazio é exatamente a forma. Dessa maneira as sensações, as concepções, a discriminação e a consciência são também vazias e desprovidas de substância.
Ó Sariputra, o vazio de todas as coisas não foi criado e não pode ser destruído e dessa maneira no vazio não há forma, não há sensações, não há discriminação e não há consciência. Não há olho, não há ouvido, não há nariz, não há língua, não há corpo e não há mente. Não há cor, não há som, não há cheiro, não há gosto, não há tato e não há fenômenos. Nada existe desde o reino da visão até o reino da consciência, não há ignorância nem a extinção da ignorância, não há nascimento, não há sofrimento, não há causa do sofrimento, não há velhice, não há morte, não há extinção do nascimento, extinção do sofrimento, da velhice ou da morte, não há sabedoria e iluminamento e nada há para ser ganho. Como nada há para ser ganho, o Bodhosatva vive em Prajna Paramita e não há obstáculos em seu coração, e sem obstáculos não há medo e muito além dos pensamentos ilusórios, ele atinge o Nirvana.
Todos os Budas do passado, do presente e do futuro obtiveram completa sabedoria e perfeito iluminamento praticando Prajna Paramita.
Saiba então e repita o grande mantra, o brilhante e inigualável mantra que completamente elimina todo sofrimento, verdadeiro além de qualquer falsidade.
Tendo ido, tendo ido, para a outra margem, da iluminação. Salve.”
Sobre Prajna Paramita (em inglês) e sobre o Sutra do Coração (em português).
Uma resposta em “A desesperança do luto”
[…] Ainda sobre a morte e em um tom hedonista, o escriba adverte contra o luto e a tristeza excessivos. (Na verdade, bastava ter remetido seus leitores à talvez melhor cena de luto da literatura, em 2Sm 12, 15-23, sobre a qual falo aqui.) […]