levamos todos porrada da vida.
ninguém é sempre campeão. não somos semideuses.
atrás de toda pessoa feliz, deveria existir um homem com um martelo – para lhe golpear periodicamente a cabeça.
só porque a vida mais cedo ou mais tarde mostra suas garras.
só para lembrar que existem pessoas infelizes no mundo.
só pra lembrar que elas também amanhã estarão infelizes.
só porque ninguém é tão egoísta e autocentrado quanto alguém autenticamente feliz.
* * *
um belo dia, chega a porrada.
sofremos a traição e saboreamos a desilusão.
e é o fim de tudo: nunca mais confiaremos em ninguém, estamos fechados pro amor.
sentamos na sarjeta e choramos. choramos nossa miséria, nossa feiúra, nossa desesperança.
tão autocentrados, coitados de nós, quanto durante o auge da felicidade…
* * *
um dia, a dor também passa.
porque, afinal, apesar da dor e do horror, uma das mais importantes leis da física é a seguinte:
“lavou, tá novo.”
a dor e o prazer, a alegria e a tristeza: como diria o cobrador, é tudo passageiro.
não há mal que tanto dure, nem bem que tanto perdure.
* * *
mas existe um fascínio inegável pela sarjeta.
por andar se arrastando.
por fazer um espetáculo de nossa tristeza.
por jurar, copo de chope na mão, que o amor, ah!, esse nunca mais!
são como aqueles cachorros que você tenta acariciar… e eles estremecem de medo, se encolhem de horror, afastam a cabeça, se colocam fora da possibilidade do soco.
você percebe na hora: alguém um dia cobriu aquele cachorro de porrada.
ele apanhou.
ele sofreu.
e nunca mais esqueceu.
* * *
diz o budismo que toda emoção é dor.
que não existe emoção puramente prazeirosa que não vá, em algum momento, se converter em dor.
o carinho que sente pela namorada será inversamente proporcional à sua dor por perdê-la…. e perdê-la você vai, seja porque ela cansou de você, morreu ou o sol explodiu.
de qualquer modo, tudo é impermanente:
o bom e o mau. a dor de dente e o gozo. eu e a via láctea.
ainda assim, até fazermos nossos votos de monge budista, é preciso colocar a cara a tapa. se arriscar. tentar amar de novo.
mesmo sabendo que vamos sofrer. mesmo sabendo que vai doer.
porque sempre dói.
o hamburguer do mcdonald’s não apodrece porque não é comida. a maçã que você morde fica marrom porque ela está viva.
só tecido morto não dói.
* * *
tenho um conhecido cuja autodescrição do twitter é “pairando sobre um mundo hostil”.
fico triste por ele. ninguém merece viver num mundo hostil.
mesmo se o mundo for hostil de verdade.
especialmente se o mundo for hostil de verdade.
* * *
penso sempre em uma pintora que foi estuprada três vezes ao longo de sua vida. quando perguntaram como se recuperou e o que fez para voltar a ter relações saudáveis com homens, ela respondeu:
“em um dado momento, temos que escolher quem permitimos que nos influencie. eu poderia me permitir ser influenciada pelos três homens que me fuderam contra a vontade, ou podia escolher ser influenciada por van gogh. escolhi van gogh.”
* * *
tomei lá minha farta dose de porradas em 2011 e 2012. quando achei que não tinha como ficar pior, ficou. quando achei que tinha me livrado dos malucos, apareceram piores.
mas me recuso a ser o cachorro que se encolhe diante da possibilidade do soco – ou da carícia.
sei que vou levar outros socos, e sei também que vou receber outras carícias. provavelmente, como quase sempre acontece, dadas pelas mesmas pessoas.
é melhor andar feliz e despreocupado por um mundo belo e seguro e, de vez em quando, levar uns tombos pelo caminho (eu sei me levantar!) do que viver sempre em um ambiente feio e hostil, cercado por cretinos e canalhas.
desfiz minhas barreiras. abaixei meus escudos. me expus à dor e ao amor.
sejam gentis.
8 respostas em “só tecido morto não dói”
Eu amo esse texto! Já li tantas vezes que já sei de cor.
Tinha lido esse texto quando tava no portal homem, acho que da Natura.
Até tinha favoritado o link. Um dia quis ler de novo e o link tava quebrado.
Bom, cheguei aqui de novo e quero só mandar um
Obrigado, Alex. De verdade!
Esse é meu texto (de tua autoria) preferido! Sempre volto para reler.
Que texto, que texto.
Sem dúvida um dos melhores textos que já li. Talvez seja o momento, talvez seja apenas gripe, mas é inegável o fato de que é um texto belíssimo! Parabéns.
Esse texto é maravilhoso (e foi especialmente foda para o momento aqui). Parabéns, Alex!
Lindíssimo texto. Copiei a parte do “Toda emoção eh dor” e postei no meu perfil junto com o link da postagem. Veio em hora certíssima. Obrigado por mais um texto sublime.
Att. Lucas Oliveira
Lindo texto.