Fazer hoje o que eu quero fazer hoje é mais importante do que fazer hoje o que eu posso vir a querer ter feito amanhã.
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Mudanças (2003)
Eu, Até os 15 Anos
Até os 15 anos de idade, eu era uma criança extremamente complicada.
Gordo, feio e gago. Óculos de fundo de garrafa no nariz. Cara coberta de espinhas. Muito mais rico do que todos os meus colegas.
Ninguém poderia chegar perto de mim a não ser para sacanear, eu pensava. Por isso, me tornei primeiro defensivo e, depois, agressivo. Minha boca era uma arma. Inteligente e articulado, eu conseguia enfiar o dedo em todas as feridas. Antes que me sacaneassem (o que mais poderiam querer comigo, afinal?), eu já sacaneava todo mundo.
Meninas, nem pensar. Pra que se preocupar com impossibilidades? Mesmo que alguma infeliz desenvolvesse alguma inexplicável paixão por mim, e teria que ser uma infeliz, para se sentir atraída por uma pessoa tão insuportável, eu simplesmente jamais acreditaria que era verdade.
Nunca vou deixar de amar os poucos amigos que tenho daquela época. Lembro bem de suas tentativas de aproximação. Lembro bem de afastá-los a pedradas – afinal, o que podiam querer com alguém como eu?! Lembro bem de suas repetidas tentativas até vencerem minhas barreiras.
Eles me salvaram de mim mesmo e me ajudaram a me tornar mais humano.
Por fim, nem todos esses defeitos faziam de mim uma pessoa insegura ou infeliz.
Contra todas as evidências, eu me achava o máximo, mais inteligente e mais capaz do que qualquer um. Extremamente seguro dos meus pontos fracos, eu procurava me concentrar nos fortes.
Trancado em casa, lendo, escrevendo, inventando histórias e personagens, eu era feliz.
Já naquela época, eu tinha noção de uma coisa muito importante.
Minha incansável mãe tentava fazer com que eu saísse de casa, dançasse, fosse a festas, ou seja, me comportasse como um menino normal.
E, muitas vezes, eu friamente me perguntava: será que eu não devia estar fazendo isso? Será que eu não devia estar na festa com os amiguinhos ao invés de trancado em casa lendo Sherlock Holmes? Será que mais tarde eu não vou me arrepender de ter desperdiçado minha juventude?
E, apesar de todo o longo caminho que eu ainda tinha a percorrer, desde os quinze anos eu sabia a resposta desse dilema.
Fazer hoje o que eu quero fazer hoje é mais importante do que fazer hoje o que eu posso vir a querer ter feito amanhã.
Eu amanhã desejar ter dançado mais aos quinze anos é uma abstração, uma possibilidade. Desejar hoje ler Holmes hoje era um fato.
Na pior das hipóteses, se o meu eu-velho for infeliz por não ter dançado mais aos quinze, eu pelo menos vou ser feliz hoje fazendo o que eu quero.
E dá-lhe Watson.
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Eu, A Partir dos 15 Anos
Aos 15 anos, meus pais me colocaram em uma escola internacional.
Todas as aulas eram inglês. Todas as conversinhas com os colegas eram em inglês. Todos os nomes de partes do corpo humano eram em inglês. Todos os laboratórios de física eram em inglês. E meu inglês nem era isso tudo.
As regras, a cultura, os hábitos, tudo era radicalmente diferente. Nunca me senti tão mentalmente estafado como naquelas primeiras semanas. Aprendia coisas novas no ritmo que só um cérebro de quinze anos é capaz.
Sem querer, sem planejar, bom ser humano que sou, no esforço de me adaptar ao meu novo ambiente, eu mudei. Foi minha primeira, e mais importante, reinvenção.
Sobrevivi ao primeiro ano já camaleado. Tão ocupado em entender o novo mundo à minha volta, nem mesmo percebi o quanto tinha mudado.
Para melhor absorver o meu ambiente, fiquei mais calado, mais calmo, mais tolerante. Para fazer amigos, me tornei mais sociável, menos agressivo, menos boca suja.
As atividades extra-curriculares da escola serviam de válvula de escape para minha energia interminável. Fiz de tudo. Editei jornal, presidi grêmio, participei de clubes, disputei eleições. Além de canalizar minha agressividade latente, essas atividades também fizeram com que eu me socializasse com colegas de interesses parecidos e até mesmo desenvolvesse liderança.
O eremita ranzinza tinha finalmente aprendido a interagir com os humanos.
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O Espelho dos Outros
A gente vai mudando ao longo da vida e nunca realmente percebe.
O melhor jeito de isolar, quantificar e acompanhar nosso processo de transição é através das pessoas que não conheceram nosso eu antigo, só o novo. Elas são o espelho que tornam nossa metamorfose visível.
Meus novos amigos, colegas de atividades, companheiros de chapa no grêmio, redatores do jornal, falavam de mim e eu não me reconhecia nas descrições. Esse não sou eu, eu pensava.
Mas eles viam a pessoa na qual eu já havia me transformado, enquanto eu ainda pensava na pessoa que eu era.
Um dia, caiu a ficha.
Pelo ano anterior, finalmente me dei conta, eu tinha de fato sido uma pessoa radicalmente diferente.
Mais importante, aquela era pessoa que eu realmente era. Ou, melhor, dane-se quem eu realmente era: aquela era a pessoa que eu queria ser.
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Plágio de Mim Mesmo
Preciso reescrever o primeiro capítulo de um romance dezenas de vezes até encontrar o tom exato. Quando encontro, o resto do romance nada mais é do que plagiar aquele primeiro capítulo, manter aquele tom, sustentar aquele clima.
Eu, romancista da minha vida, fiz o mesmo.
Olhei pra trás e pensei: essa pessoa que eu fui nesse último ano é quem eu realmente sou, é quem eu quero ser. Como manter esse tom?
De certo modo, me tornei o ídolo de mim mesmo.
Algumas pessoas se perguntam: o que Jesus faria nessa situação? Pois eu me perguntava: o que o Alex desse ano passado faria?
E buscava estar à altura daquele padrão de comportamento que eu mesmo, sem perceber, havia estabelecido.
Mesmo assim, muitas vezes, eu ainda resvalava em meus velhos e agressivos hábitos. E os novos amigos estranhavam, não me reconheciam: o que foi isso, Alex? Você não é assim!
E eu ria por dentro: sou sim, mas não pra vocês.
Na prática, eram o termômetro da minha metamorfose. Afinal, conheciam apenas o novo Alex. Ninguém melhor do que eles para detectar (e estranhar) as aparições esparsas do velho.
Nenhum dos Alex era perfeito, claro. O Alex da escola internacional era sociável e palatável, um bom político que ganhou todas as eleições que disputou mas, também por isso, careta, vaselina e tão certinho quanto jamais conseguirei ser.
E, assim, fui crescendo e, dentro de minhas limitações, virei gente.
Mas nunca cansei de me reinventar.
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Liberal Libertário Libertino
Muitos anos depois, eu era um responsável empresário da internet, casado com uma bela mulher. Tinha carro importado, era sócio de um clube de golfe e jogava tênis duas vezes por semana. Nunca fui tão adulto.
Ao mesmo tempo, na calada da noite, eu me envolvia cada vez mais com uma turma altamente subversiva. Sade, Sacher-Masoch e Krafft-Ebbing. La Mettrie, Darwin e Freud. Freire, Thoreau e Miller. Whitman, Kerouac e Emerson. Minha mãe deveria ter me avisado para não andar com maus elementos.
Finalmente, chutei o balde.
Não agüentava mais uma empresa que não dava dinheiro e sugava toda minha força criativa. Decidi que não queria mais emprego, não queria mais segurança.
Minha esposa e eu morávamos em um quarto na casa da minha mãe. Eu dava aulas de inglês em um cursinho de bairro e prestava consultoria de internet para grandes empresas. Ela fazia mestrado de manhã e vendia roupa de grife a noite. Com o tempo, fomos morar em nosso próprio apartamentinho. Alugado, claro.
Vivíamos um casamento aberto, onde ambos éramos livres para explorar novas fronteiras, buscar crescimento e amadurecimento em outros parceiros e trazer essas experiências para enriquecer nosso próprio relacionamento.
Mais uma vez, nascia um novo Alex. Absolutamente liberal, libertário e libertino.
Por um lado, mais contemplativo, plácido e tolerante do que nunca. Por outro, nunca tão ativo, ousado e sensual. Aproveitando oportunidades, expandindo limites, experimentando a vida de modo geral. Menos estressado, mas também menos sociável, e menos preocupado com tudo, especialmente com a opinião dos outros.
Desamarrei meu ego do meu trabalho, de um modo que a grande maioria dos homens não consegue nem conceber.
Dar aulas de inglês não era minha carreira. Eu não era professor de inglês – como já havia sido, por exemplo, empresário. Pela primeira vez na vida, eu era só Alex e isso tinha a força libertadora de uma revolução.
Não era nenhum emprego desafiador a altura de minhas pretensas capacidades brilhantes, e isso também era uma libertação. Ninguém esperava nada de mim. Minha chefa não queria um intelectual inovador ou um manager pró-ativo. Ela queria apenas que eu ensinasse o present perfect como estava no livro e não criasse caso.
Percebi que eu não devia nada a ninguém. Bastava eu trabalhar o suficiente para pagar minhas contas e eu estaria livre o resto do tempo, pra flanar, vagar, perambular, observar, experimentar, transar.
De vez em quando, alguém vinha me dizer que era uma pena alguém brilhante como eu desperdiçar meus inúmeros talentos dando só aulinhas de inglês. E eu respondia: vai ver o meu brilhantismo está em perceber que existem coisas mais importantes na vida do que trabalho, carreira, segurança.
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O Alex da Joana
No meio de tudo isso, apareceu Joana.
Primeiro, fomos amigos, depois amantes, então amigos-e-amantes e também amantes-e-amigos. E continuamos assim até hoje.
Ela foi a primeira pessoa que conheci depois de completada essa última metamorfose. Pra ela, esse novo Alex não era um novo Alex, era O Alex.
Pra os amigos mais antigos, para a família, eu estava apenas surtando, dando um tempo, já já iria voltar ao normal, que eu não poderia me desperdiçar assim, não tinha nem emprego, nem plano de saúde, nada, isso não é vida!
Mas, para Joana, o Alex era aquilo, sem tirar nem pôr. Ela foi, e continua sendo, o parâmetro do sucesso contínuo e continuado dessa minha nova jornada em direção a sei lá onde.
Quando ela fala que sou a pessoa mais cuca-fresca que conhece, eu fico feliz.
Essa é a pessoa que eu sou. Essa é a pessoa que eu sou porque essa é pessoa que eu criei. Essa é a pessoa que eu criei porque essa é a pessoa que eu queria ser. Essa é a pessoa que eu queria ser porque sei bem que naturalmente eu não sou assim.
Mas, por um ato consciente de vontade, essa pessoa existe e sou eu.
Meus pais, que conheceram o adolescente complexado e agressivo, nunca irão me enxergar assim, por mais que eu mude.
A Joana não. Para ela, eu sou essa pessoa. E cada vez que eu vejo essa pessoa refletida em seus olhos, sei que alcancei uma grande vitória, daquelas decisivas, verdadeiro Dia D interior.
E quando ela, uma mulher neurótica e complicada, diz que está aprendendo comigo a cagar mais pra vida, a ser mais livre, mais tranqüila e mais feliz, o que eu escuto é não só que passei por mais uma etapa na minha jornada como que ainda estou trazendo-a junto.
E quando ela observa que estou diferente, estressado, com uma agressividade que não reconhece, que nunca me ouviu falar daquele jeito, aí eu dou um passo atrás e soam todos os alertas: é o velho Alex, Godzilla tentando emergir, placas tectônicas se movendo no subsolo, terremotos e maremotos na superfície.
Eu penso: o que o Alex da Joana faria numa hora dessas? Como ele reagiria? Mais importante, como voltar a ser o Alex da Joana?
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Mantendo a Estrada
E, por enquanto, o meu objetivo balizador é continuar reconhecível para Joana. Enquanto ela vir em mim o Alex que conheceu e amou é porque não me afastei demais da estrada que escolhi.
Em breve, a não ser que eu morra primeiro, espero transcender esse Alex e me tornar uma nova pessoa. Mas esse passo a frente Joana acompanharia ao vivo, no nosso dia-a-dia.
Já um passo atrás, porém, em direção a um Alex que não conheceu, ela perceberia na hora.
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Adendo de 2017
Aproveito para agradecer às pessoas leitoras que, tantos anos depois, ainda carregavam as palavras desse texto em suas mentes;
e, também, para agradecer de novo:
às pessoas da minha infância na escola católica, que, em seu amor, venceram minhas gigantescas barreiras;
às pessoas da escola internacional, que, com seu amor, e companheirismo, e cumplicidade, me ensinaram a ser gente,
à minha incrível ex-mulher, que acabou de ter um filhinho e me hospedou uma semana em bolonha com seu também incrível atual marido;
à minha ex-chefa que foi a mecenas que mais contribuiu para que minha viagem à auschwitz acontecessse;
e à pessoa que eu chamo de Joana, hoje casada, e que continua uma amiga linda e incrível.
vocês me salvaram, viu? obrigado.