Em pleno auge “heroico” do expansionismo português, só mesmo um grande artista como Gil Vicente para ridicularizar, diante do Rei e da corte, os homens que iam fazer fama e fortuna nas Índias.
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O Auto da Índia, auto de Gil Vicente, encenado em 1509, é a sua primeira obra (e a primeira obra do teatro português) a ter um enredo com começo, meio e fim. (Até então, as peças do teatro medieval eram compostas de cenas sem sequência, como no Auto da Barca do Inferno.) Além disso, também é sua primeira farsa, e sua primeira obra majoritariamente em português (só um dos personagens, o Castelhano, fala em espanhol.) Por fim, é a primeira obra a pôr em cena personagens femininas.
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Inicialmente, as grandes navegações, que começam com a tomada de Ceuta aos mouros em 1415, tinham se associado ao ideal religioso da cruzada, para propagar a fé no Deus verdadeiro, etc. Entretanto, aos poucos, os interesses mercantis vão se sobrepujando aos religiosos: a guerra e a expansão acabam se tornando meios de sustentar uma atividade comercial, maculada pela violência.
O reacionarismo religioso de Gil Vicente, que demonstra diversas vezes apoiar a “cruzada”, como nas peças Exortação à Guerra, ou no final de Auto da Sibila Cassandra, não poderia jamais apoiar a mercantilização da ideia de cruzada, e, menos ainda, suas conseqüências funestas, como abandono da agricultura e dos trabalhos manuais, fomes sucessivas, endividamento externo da coroa para comprar grãos, e a multiplicação de viúvas e órfãos dos homens falecidos na aventura colonial.
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A peça não está dividida em cenas ou atos: tudo acontece encadeado, de uma vez só, mas, na verdade, temos três momentos temporais distintos: primeiro, o momento de partida da armada para o Oriente, levando o marido da Ama; em segundo lugar, três dias depois, os dois amantes, Lemos e o Castelhano, visitam a Ama; em terceiro lugar, três anos depois, o retorno do marido traído. As únicas indicações da passagem temporal são rápidos comentários da Moça, criada da Ama, que funciona algo como um Coro, fazendo apartes e chamando atenção para pontos importantes, comentando a ação e sendo a substituta da platéia.
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Um tipo que Gil Vicente frequentemente satiriza é o escudeiro ocioso e galante, que quer aparentar uma riqueza que não tem. Ou seja, o falso nobre que não sabe o seu lugar. (Vicente levava muito a sério a ideia de que as pessoas tinham os seus lugares e, portanto, que um dos piores pecados era não saber o seu lugar, aspirar a uma condição que não era a sua.) Esses personagens são mostrados como parasitas presunçosos e vazios, que tocam guitarra, fazem versos, usam linguagem culta, mas, na verdade, não são nobres, não trabalham, são medrosos, covardes, exemplificando o contraste entre essência e aparência.
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Certamente uma das motivações para que esse fosse o primeiro auto de Gil Vicente escrito em português foi tentar simular uma fala mais natural, mais cotidiana. A impressão fica mais forte quando entram em cena Lemos e, principalmente, o Castelhano, pois ambos falam repetindo e parodiando os lugares-comuns do discurso amoroso de cancioneiro, das velhas Cantigas de Amor.
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O Marido da Ama, ironicamente chamada Constança, parte para buscar riqueza nas Índias, e a esposa se comporta com tudo menos Constança, traindo-o com pelo menos dois homens. Na volta, mente descaradamente ao marido, que não desconfia de nada, e é mostrado como, mais do que corno, também burro. Todas as referências a ele são pejorativas, até o Castelhano o critica por abandonar a esposa e, para piorar, volta tão pobre quanto partiu.
O subversivo dessa peça, que era um auto de moralidade, é justamente fazer da platéia cúmplices da Ama: por mais que saibamos que o adultério é reprovável, fica a mensagem de que o marido teria merecido a traição, pois seu pecado teria sido maior: largar a esposa por três anos para perseguir objetivos levianos como ambição e riqueza.
O marido da Ama representa bem esse espírito mercantil e ambicioso do expansionismo português, esse mundo degradado e dissoluto e corrompido, e, por isso, é punido, sem pena alguma, com o adultério de sua esposa. Sua punição não é por seus pecados, mas por todos os pecados que Vicente vê no projeto imperial português.
(Referência: Ana Paula Dias, Auto da Índia, de Gil Vicente.)
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Como todo texto teatral, o Auto da Índia foi feito para ser assistido, não lido. Por outro lado, nenhum texto teatral foi feito para ser assistido pelo YouTube. Pior, realmente, para nós, brasileiros, o sotaque português hoje se tornou difícil de entender. (É ridículo mas têm duas línguas estrangeiras que entendo com mais facilidade que o português de Portugal!) Com todas essas ressalvas, eis aqui a melhor encenação de Auto da Índia que encontrei na internet: partes um, dois, três, quatro.
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Leia também meu texto principal sobre Gil Vicente.
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Esse texto (que não é uma criação original, mas uma paráfrase dos textos de referência) faz parte dos guias de leitura para a quinta aula, Grandes Navegações, do meu curso Introdução à Grande Conversa: um passeio pela história do ocidente através da literatura. Esses guias são escritos especialmente para as pessoas alunas, para responder suas dúvidas e ajudar em suas leituras. Entretanto, como acredito que o conhecimento deve ser sempre aberto e que esses textos podem ajudar outras pessoas, também faço questão de também publicá-los aqui no site. Todos os guias de leitura das aulas estão aqui. O curso começou no dia 2 de julho de 2020 — quem se inscrever depois dessa data terá acesso aos vídeos das aulas anteriores.
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Auto da Índia, de Gil Vicente é um texto no site do Alex Castro, publicado no dia 10 de novembro de 2020, disponível na URL: alexcastro.com.br/auto-da-india-de-gil-vicente // Sempre quero saber a opinião de vocês: para falar comigo, deixe um comentário, me escreva ou responda esse email. Se gostou, repasse para as pessoas amigas ou me siga nas redes sociais: Newsletter, Instagram, Facebook, Twitter, Goodreads. // Todos os links de livros levam para Amazon Brasil. Clicando aqui e comprando lá, você apoia meu trabalho e me ajuda a escrever futuros textos. // Tudo o que produzo é sempre graças à generosidade das pessoas mecenas. Se gostou, considere contribuir: alexcastro.com.br/mecenato