Dentre tantos livros compilados na Bíblia (“Bíblia” literalmente significa “livros”), talvez o mais surpreendente e inesperado seja uma antologia de poesia erótica, que jamais menciona Deus, assinada pelo dono de um gigantesco harém e provavelmente escrita por uma mulher: o Cântico dos Cânticos.
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Cântico dos Cânticos: sagrado ou profano?
O Cântico dos Cânticos, onde um homem e uma mulher cantam seu amor um pelo outro, é um poema claramente sexual e profano, mas inserido no livro mais sagrado do Ocidente.
Como isso pode ter acontecido? Talvez o Cântico não seja tão profano assim. Ou talvez a Bíblia é que não seja tão sagrada.
Por um lado, algumas pessoas estudiosas cometem o seguinte argumento tautológico: é óbvio que o Cântico não é um poema sexual e profano… pois senão, não estaria na Bíblia! Na verdade, tudo seria uma grande metáfora, onde o amor entre uma pessoa e outra simbolizaria o amor entre Deus e o povo escolhido, ou entre Jesus e sua Igreja, etc. (Essa é a leitura, entre outros, de Frei Luís de León e de João da Cruz. Mais sobre eles no final.)
Por outro lado, nada no poema autoriza esse salto interpretativo. Pelo contrário, o Cântico dos Cânticos é admiravelmente concreto, material, prático:
“Um número crescente de exegetas católicos adota a interpretação literal, que reúne hoje a quase totalidade dos sufrágios. … O próprio Cântico não manifesta nenhuma intenção alegorizante. … Nada indica que seja preciso aplicar uma fórmula ao Cântico para descodificá-lo e ler nele coisa diferente do sentido que decorre naturalmente do texto. … O tema não é somente profano pois Deus abençoou o matrimônio menos como um meio de procriação do que como a associação afetuosa e estável do homem e da mulher. … A vida sexual … é aqui desmitificada e considerada com sadio realismo. … Não há, pois objeção a que o livro lhe tenha sido consagrado [ao amor humano] e tenha sido aceito no Cânon. Não compete a nós fixar limites à inspiração de Deus.”
O mais legal de discussão bíblica é isso: fica-se milênios, séculos, anos debatendo cada palavra de cada texto bíblico mas deixa-se sempre em aberto a possibilidade de derrubar o tabuleiro e argumentar que não cabe “interpretar” ou “fixar limites” na palavra de Deus.
(O trecho acima, polêmico e confrontacional, está na Introdução ao Cântico dos Cânticos da Bíblia de Jerusalém, 1ª edição, lançada na França em 1973 e, no Brasil, em 1985. Na nova edição, revista e ampliada, de 1998/2002, essas frases polêmicas foram cuidadosamente suprimidas por alguma cautelosa pessoa editora.)
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Já que falei de comentários suprimidos, aqui vai outro. Mais adiante no poema, o homem compara longamente a mulher a diversas árvores e plantas:
“— Sou o narciso de Saron,
o lírio dos vales.
— Como açucena entre espinhos
é minha amada entre as donzelas.”
(2, 1-2, Bíblia de Jerusalém, BJ)
Em várias das minhas edições da Bíblia, as notas aqui fazem questão de acrescentar que essas espécies vegetais não necessariamente existiam na mesma região, ou que floresciam na mesma época, logo, toda essa descrição era fantasiosa, etc. Já a 1ª edição da Bíblia de Jerusalém, claramente em resposta a esse tipo de comentário, resmunga apenas:
“Não é preciso destruir essa poesia acrescentando notas botânicas.”
Naturalmente, esse comentário rabugento também foi apagado da 2ª edição, com certeza vítima da mesma editora cautelosa.
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Meu corpo, minhas regras, minha luta de classes
A filosofia de cada edição da Bíblia tem um enorme impacto em nossa leitura. (Daí ser tão importante escolhermos a Bíblia mais apropriada.) Considerem o trecho abaixo:
“Sou negra e bela,
ó filhas de Jerusalém,
semelhante às tendas de Cedar
e como as cortinas de Salma.
Não reparem se sou negra:
pois foi o sol que me queimou;
os filhos de minha mãe
indignaram-se contra mim,
fazendo-me guardar as vinhas
e minha própria vinha eu mesma não guardei!”
(1, 5-6, Nova Bíblia Pastoral, BNP)
Reparem o “negra”. Em todas as minhas outras traduções, a palavra utilizada é ou “morena” (quase sempre) ou “trigueira” (nas mais antigas).
Já a Nova Bíblia Pastoral (BNP), tradicionalmente marxista e de onde tirei o trecho acima, mete logo o pé na porta e rejeita os eufemismos de outras traduções: fica claro que estamos falando de um casal interracial, pois o amado será mais tarde descrito como “muito branco e rosado”.
Outras traduções anotam somente que, nesse contexto, a “vinha” era um símbolo de feminilidade e de sexualidade feminina. A Nova Pastoral, entretanto, vai mais longe:
“Para além do ‘ser negra’, temos a descrição da condição social da mulher: explorada no trabalho da roça sob os efeitos do sol, e impossibilitada de cuidar de sua vinha, isto é, de sua sexualidade. É portanto realidade de exploração do corpo das mulheres.”
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Uma explosão de cheiros e sabores
O Cântico dos Cânticos é um poema para os cinco sentidos. No trecho abaixo, todas as plantas citadas são famosas por seus aromas, em uma verdadeira overdose de cheiros:
“Teus amores são melhores do que o vinho,
mais fino que os outros aromas
é o odor dos teus perfumes.
Teus lábios são favo escorrendo,
ó noiva minha,
tens leite e mel sob a língua,
e o perfume de tuas roupas
é como o perfume do Líbano.
És jardim fechado,
minha irmã, noiva minha,
és jardim fechado,
uma fonte lacrada.
Teus brotos são pomar de romãs
com frutos preciosos:
cachos de hena com nardo;
nardo e açafrão,
canela, cardamomo
e árvores todas de incenso,
mirra e aloés,
e os mais finos perfumes.”
(4, 10-14, BJ)
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Sobre o que acontece com mulheres independentes que saem sozinhas pelas ruas
Abaixo, a cena mais bonita e mais perturbadora, mais onírica e mais violenta, do poema. Praticamente um modelo para todas as narrativas de desencontro amoroso da literatura:
“Eu estava dormindo,
meu coração vigiando,
quando ouço meu amado que me chama:
“Abre-me, amada minha,
pomba minha sem mancha,
pois tenho a cabeça orvalhada,
meus cabelos, do sereno da noite”.
Já tirei minha túnica,
e vou pô-la de novo?
Já lavei os pés,
e vou sujá-los de novo?
Meu amor põe a mão pela abertura:
estremeço ao senti-lo,
minha alma, ouvindo-o, se esvai.
Já me levantei para abrir ao meu amado,
minhas mãos gotejam perfume de mirra,
meus dedos são mirra que flui
pela maçaneta da fechadura.
Eu mesma abro ao meu amado;
abro, e meu amado já se foi.
Eu busco e não encontro;
chamo, e não responde.
Encontraram-me os guardas
que rondam a cidade.
Bateram em mim e me feriram,
tiraram-me o manto
as sentinelas das muralhas.
Jovens de Jerusalém, eu vos esconjuro:
se encontrardes meu amado
dizei-lhe… O que lhe direis? …
Que estou doente de amor.”
(5, 2-8, Bíblia do Peregrino, BP)
De repente, na calada da noite, o homem bate à porta da mulher. Apesar de estar pensando nele, obcecada por ele, ela demora a abrir, hesita, pensa. As razões que alega para si mesma são caprichosas: “já tinha lavado os pés, se for até a porta, terá que lavá-los de novo! Já tirou a túnica, terá que vesti-la de novo! Que saco! Quanto trabalho!” Será que está se fazendo de difícil? Será que quer puni-lo por alguma coisa?
Enquanto isso, ela escuta o homem tentando forçar a fechadura, sem sucesso. Ela estremece e sua alma se esvai… mas de amor? de medo? de antecipação? Existe algo de sinistro em um homem tentando forçar a fechadura de uma mulher na calada da noite.
Finalmente, ela vai até a porta. Quando tempo se passou? Talvez muito. Talvez demais. Ela teve tempo de vestir a túnica e de, literalmente, se ensopar de perfume. O perfume escorre por suas mãos e pela maçaneta enquanto ela abre a porta.
Mas o homem não está mais lá. Terá sido apenas um sonho? Será que imaginou sua voz? Ou será que agora é ele que quer puni-la, embirrado por sua birra?
Desesperada pelo desencontro, ela sai correndo pelas ruas, procurando por ele, e rapidamente descobre qual é o destino das mulheres que andam pela noite de Jerusalém sem proteção masculina.
Quando se encontra com as mulheres da cidade, depois de ser surrada e roubada, ferida e humilhada, ela não se preocupa em lhes dizer a razão da violência que sofreu, talvez por ser autoevidente (qualquer mulher andando sozinha na rua de madrugada seria tratada assim?), talvez por considerar que a violência que sofreu é trivial em comparação à dor do desencontro com seu amado.
Seu recado para ele não é
“Você bateu a minha porta, não me esperou abrir e, por causa disso, levei uma surra, seu canalha!”
mas sim
“Estou doente de amor!”
Na magistral tradução do frade carmelita espanhol Frei Luis de León:
“Yo duermo, al parescer, muy sin cuidado,
mas el mi corazon está velando:
la voz de mi querido me ha llamado.
Abreme, amiga mia, que esperando
está la tu paloma este tu amado:
ábreme, que está el cielo lloviznando:
mi cabello, mi cabeza está mojada
de gotas de la noche, y rociada.
Todas mis vestiduras me he quitado,
¿cómo me vestiré, que temo el frio?
y habiéndome tambien los pies lavado,
¿cómo me ensuciaré yo, amado mio?
Con su mano mi Esposo habia probado
abrirme la mi puerta con gran brio ,
por entre los resquicios la ha metido,
el corazon en mí ha estremecido.
Levantéme yo á abrirle muy ligera,
de mis manos la mirra destilaba,
la mirra, que de mis manos cayera,
mojó la cerradura, y el aldaba:
abríle; mas mi amor ya ido era,
qu’el alma, quando abria, me lo daba:
busquéle, mas hallarle no he podido;
llaméle, mas jamas me ha respondido.
Halláronme las guardas, qu’ en lo obscuro
de la noche velaban con cuidado:
hiriéronme tambien los que en el muro
velaban, y aun el manto me han quitado.
O hijas de Sion, aquí os conjuro,
digais, si acaso viéredes mi amado,
quán enferma me tienen sus amores,
quán triste, y quán amarga, y con dolores.”
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A terrível beleza de uma mulher poderosa
A beleza excessiva pode ser assustadora. Diz o homem:
“És bela, amiga minha, …
terrível como esquadrão
com bandeiras desfraldadas.
Afasta de mim teus olhos,
pois me perturbam! …
Quem é essa
que surge como a aurora,
formosa como a lua,
límpida como o sol,
terrível como esquadrão
de bandeiras desfraldadas?”
(6, 4-10, BP)
Os exércitos somente desfraldavam suas bandeiras quando estavam prontos para atacar. Então, um exército de bandeiras desfraldadas, prestes a avançar, era uma das imagens mais apavorantes e mortíferas da época.
Nas palavras de Frei Luís de Leon:
“Um bem extremo não assusta menos do que um mal extremo. … Da mesma maneira que um exército assim organizado tudo vence e arrasa, e rende e sujeita tudo o que encontra pela frente, assim também, nem mais nem menos, não haveria nenhum poder nem resistência contra a força da extrema beleza da Esposa.” (131-2)
A mulher, de tão divinamente bela, era perigosa e irresistível, poderosa e terrível, capaz de destruir somente com o olhar. E ele ainda implora, fraco e impotente, “Por favor, desvia esses olhos de mim. Não aguento!” – mas é claro que ela não atende.
Por fim, ele compara sua beleza sobre-humana (ou inumana?) ao próprio cosmos, à lua e ao sol, como se ele fosse apenas um devoto aterrorizado, frágil e pequenino, implorando clemência a uma Deusa malvada e onipotente, impossivelmente bela, apavorantemente divina.
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O poder da paixão
O poema termina em um arroubo de intensidade:
“Grava-me
como um selo em teu coração,
como um selo em teu braço;
o amor é forte como a morte,
a paixão é cruel como o abismo.
é centelha de fogo, é labareda divina;
as águas torrenciais
não poderão apagar o amor,
nem os rios afogá-lo.”
(8, 6-7, BP)
Na Tradución en Lenguaje Actual (TLA), uma das minhas preferidas, existem dois versos fortíssimos:
“¡Tan fuerte es el amor como la muerte!
¡Tan cierta es la pasión como la tumba!”
E na tradução de Frei Luís:
“Sobre tu corazon me pon por sello,
amada, y sobre el brazo, y en tu cuello.
Ansí como la muerte es el amor ,
duros como el infierno son los zelos,
las sus brasas son fuego abrasador,
que son brasas de Dios, y de sus cielos,
muchas aguas no pueden tal ardor
apagar los ríos con sus hielos.”
O amor e a paixão não são mais fortes, mais certos, mais inflexíveis, etc, do que a morte, a tumba, o abismo: são tanto quanto. O amor e paixão, a morte e a tumba, estão disputando o mesmo prêmio: a totalidade do Ser Amado.
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O loop infinito de um poema sempre em aberto
O pequeno diálogo que fecha o poema provavelmente é uma desastrada adição posterior. Mas não deixa de ser sugestivo:
“Tu que habitas nos jardins,
companheiros te ouvem atentos:
faze-me ouvir tua voz!
Foge logo, ó meu amado,
como um gamo,
um filhote de gazela
pelos montes perfumados.”
(8, 13-14, BJ)
E assim acaba o poema, com a imagem de um filhote de gazela sumindo por entre montes perfumados, um final em aberto, no loop infinito de um amor sempre em progresso: os amantes precisam se afastar para que o poema possa recomeçar, em uma busca sempre renovada (e nunca passível de ser satisfeita) por prazer e por companheirismo, por sexo e por amor.
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Uma obra feminina
O poema é feminino do começo ao fim: na maior parte dos versos, enxergamos o homem pelos olhos da mulher. É ela que mais fala, que mais age, que mais sofre.
Por outro lado, se a voz do poema é uma bolha de feminilidade, os fatos do poema acontecem em uma sociedade violentamente patriarcal. A mulher paga um preço alto por sua autonomia: é expulsa de casa e forçada a trabalhar nos campos sob o sol, humilhada e surrada.
O Cântico afirma ter sido escrito pelo Rei Salomão, mas esse tipo de atribuição espúria a uma figura do passado era comum: na verdade, foi escrito séculos depois da morte do rei, talvez por uma mulher.
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Frei Luís e João da Cruz: unidos pelo Cântico dos Cânticos
O tradutor, poeta e humanista Frei Luís de León (1527-91) foi professor da Universidade de Salamanca, onde provavelmente teve entre seus alunos João da Cruz (1540-91).
Em 1572, Frei Luís é preso pela Inquisição, em grande parte por sua tradução comentada do Cântico dos Cânticos, considerada demasiado mundana.
Cinco anos depois, em 1577, é a vez de seu ex-aluno, João da Cruz, também ser preso, por suas tentativas de reformar a Ordem dos Carmelitas.
Na cadeia, João escreve a Noite Escura, cuja imagética romântico-sexual estabelece um intenso diálogo (talvez pastiche descarado) com a obra que custara a liberdade ao seu ex-professor.
Por isso, ao terminar de reler a Noite Escura, em julho de 2017 (veja mais aqui), decidi reler o Cântico dos Cânticos e aproveitar para conhecer os comentários de Frei Luís de León sobre ele, publicados na coleção “Clássicos da Espiritualidade”, da Editora Vozes. Essa coleção tem um belíssimo projeto gráfico, excelentes traduções e uma curadoria primorosa. Já tenho dez dos seus livros, um melhor que o outro, da Nuvem do Não-Saber à obra de Mestre Eckhart. Recomendo.
Frei Luís traduziu e comentou, linha a linha, o Cântico dos Cânticos. Os comentários são pouco inspirados e pouco imaginativos, mas sua tradução em oitava-rima é uma das grandes poesias espanholas do Século de Ouro. Se você lê espanhol, recomendo fortemente, aqui.
O final do Cântico dos Cânticos, na tradução de Frei Luís:
“Estando tú en el huerto, amada Esposa
y nuestros compañeros escuchando,
haz que oya yo tu voz graciosa,
que al tu querido Esposo está llamando.Vén presto, amigo mio, que tu Esposa
te espera, vén corriendo, vén saltando,
como cabras, ó corzos corredores,
sobre los montes altos, y de olores.”
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Leia meu texto sobre a Noite Escura, de João da Cruz.
4 respostas em “Cântico dos Cânticos”
[…] principal sobre misticismo, incluindo uma análise de “Noite escura”, poema de João da Cruz; e um texto sobre o livro bíblico Cântico dos Cânticos, a grande inspiração de João da Cruz e com quem […]
Todo lo que nos conecta con el Amor és Sagrado…
[…] São considerados “livros sapienciais”: Jó e Eclesiastes (talvez os dois cumes da literatura hebraica), as três coletâneas já citadas (Sabedoria, Provérbios, Eclesiástico) e, talvez por falta de classificação melhor, os Salmos e o Cântico dos Cânticos (sobre o qual já escrevi). […]
Sensacional estudo sempre as escrituras,e deferente,comecei a ler o cântico dos cânticos ,fiquei maravilhado com este postagem..