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um escritor no campo de concentração

não há nada a ser ensinado. não há nada a ser aprendido. só existe a dor para ser compartilhada.

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não há nada a ser ensinado. não há nada a ser aprendido. só existe a dor para ser compartilhada.

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nota preliminar

peço paciência: eu planejava apenas escrever um breve texto sobre minha ida à auschwitz.

mas, ao longo dos vários dias que passei escrevendo, percebi que havia muita coisa que eu precisava articular, para vocês, para minha família, para mim mesmo.

então, antes de tudo, eu lhes agradeço por existirem: se não fosse por estarem aí, pedindo por novos textos, eu não teria me proposto a escrever esse aqui e não teria aprendido o tanto que aprendi com ele.

o texto é talvez mais pessoal e íntimo do que estão acostumadas e está dividido em subseções para que possam livremente pular de uma para a outra sem precisar ler tudo:

começo falando sobre minha atitude em relação à política e à religião; depois um pouco sobre a tão mal-falada mistura das duas; sobre budismo engajado; sobre minha trajetória no zen budismo; sobre aordem dos pacificadores zen; por fim, sobre o retiro em auschwitz organizado por essa ordem.

muito obrigado por lerem e, como sempre, eu adoro, preciso saber a opinião de vocês.

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um homem político

faz muito tempo, tenho vontade de me filiar a um partido político. pois sinto que é assim que começamos a agir coletivamente para mudar o mundo.

mas qual?

por exemplo, no rio, jandira concorreu à prefeitura pelo PCdoB. acho que, ao não ter chances de ganhar e ao tirar votos do freixo (PSOL), jandira arriscou colaborar para um segundo turno entre um bispo da igreja universal e um espancador de mulher.

mas, se eu fosse filiado ao PCdoB, poderia estar escrevendo isso? não teria obrigação de lutar pela jandira até o fim? afinal, se não for para isso, para quê estou lá?

usei o PCdoB apenas como exemplo (não é um partido mais stalinista do que a média), mas participar oficialmente e publicamente de qualquer agremiação ideológica traz esse dilema:

vale a pena abrir mão de nossa autonomia intelectual para fazer parte de uma iniciativa maior que nós?

a verdade é que me sinto cada vez mais distante de me filiar a um partido político e cada vez mais próximo de me filiar a uma ordem religiosa.

(em tempo: o problema do crivella não é ser bispo, ou ser líder religioso, mas o fato da igreja universal do reino de deus ser uma organização religiosa notoriamente corrupta.)

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um homem religioso

nos últimos anos, a prática religiosa vem ocupando uma parte cada vez maior da minha vida.

a maioria de minhas leituras são sobre religião, vou ao meu templo frequentemente (todo dia, quando posso), as pensadoras que mais utilizo para balizar meu pensamento no Livro das Prisões são religiosas, tenho planos (sonhos? intenções?) de me ordenar monge.

se formos ver pela parcela do meu tempo que minhas atividades ocupam, eu sou hoje um homem fundamentalmente religioso.

em segundo lugar, sou um homem intelectual: quando não estou praticando, estudando, pensando, escrevendo sobre minha religião, estou praticando, estudando, pensando, escrevendo textos filosóficos e argumentativos, basicamente para o Livro das Prisões, sobre alguns dos temas mais espinhosos da humanidade: verdade, dinheiro, trabalho, monogamia, felicidade, liberdade.

arte mesmo sinto que não pratico faz tempo: nem lembro quando foi o último texto que escrevi que eu considerasse arte digna desse nome.

política, strito sensu, sinto que nunca pratiquei.

mas, por outro lado, existem arte e política assim, puras, flutuando no espaço?

minha prática religiosa é necessariamente política (se não, ela não faria nenhum sentido) e, em larga medida, como me ensinaram os gregos, uma obra de arte que vou construindo no meu dia-a-dia.

minha prática filosófica é pautada, antes de mais nada, por minha intensa religiosidade

(a maior parte das pessoas autoras citadas no Livro das Prisões fala a partir de um lugar religioso)

mas também, em menor grau, ma non troppo, pela minha política

(pois minha religiosidade é política: o objetivo dos meus textos é causar mudança política nas pessoas e, assim, no mundo)

e por minha arte

(pois é ela que determina meu estilo, meu ritmo, minha escolha de palavras, dando assim forma concreta à essa mistura de religião, filosofia e política).

religião, filosofia, arte, política. as esferas que me moldam. nessa ordem de importância. mas também todas misturadas.

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religião: o que é, para que serve

toda religião tem sua origem em uma grande civilização que, em algum momento da antiguidade, possuía uma teoria completa do ser humano, legislando o que deveria comer e o que deveria vestir, como casar e como enterrar os mortos, de onde viemos e para onde vamos.

então, ao longo dos anos e dos séculos e dos milênios, ela vai perdendo suas dimensões políticas e econômicas, estéticas e nutricionais, gradualmente transformadas em instâncias independentes, até que restam apenas os aspectos teológicos e existenciais, éticos e sociais.

e chegamos assim àquilo que redutivamente chamamos de religião: um sistema institucionalizado e apolítico de conforto e salvação pessoais.

hoje, as ditas “religiões” ocupam um espaço cada vez menor em nossas vidas: são templos que visitamos uma vez por semana e onde juramos obedecer regras que esquecemos antes mesmo de chegar em casa.

(exploro esses temas na prisão religião.)

em pesquisas realizadas entre pessoas cristãs norte-americanas, “deus ajuda quem ajuda a si mesmo” é frequentemente eleito “versículo favorito da bíblia”: uma gigantesca maioria (lá pelos 80%, 90%) concorda com essa frase, acha que está na bíblia e, mais ainda, que resume o espírito do livro sagrado.

naturalmente, além de não estar na bíblia, esse talvez seja o conceito mais anticristão de todos os tempos.

por outro lado, quando padres latino-americanos criaram a teologia da libertação, em uma tentativa de praticar valores mais próximos aos de fato ensinados por jesus e de usar o cristianismo para combater a opressão, foram violentamente censurados e silenciados pelos papas joão paulo ii e bento xvi.

(a teologia da libertação, diga-se de passagem, é uma das grandes ideias religiosas do século e uma poderosa contribuição original da américa latina ao pensamento cristão.)

não estou criticando especialmente nem o cristianismo, nem as pessoas cristãs: usei esse exemplo apenas por ser mais próximo a nós.

sempre que uma religião é institucionalizada em uma área, grande parte das pessoas que a professam agem apenas por osmose, por comodismo, por inércia: devem haver tantos budistas de fim-de-semana na tailândia quanto cristãs de fim-de-semana na itália.

mas qual é o sentido de uma religião que não informa, que não contextualiza, que não influencia nosso modo de pensar, de viver, de agir?

conheço pessoas que se dizem cristãs, mas ando com elas para cima e para baixo, por anos a fio, e nunca vejo cristianismo em nada do que fazem, nem na sua fala nem em suas atitudes, nem em sua moral nem em sua maneira de enxergar o mundo.

e me pergunto: essas pessoas são cristãs como? em que sentido? onde guardam seu cristianismo?

uma religião é uma visão de mundo e uma cosmogonia: minha religião influencia como me alimento e como me visto, como escrevo textos e como ouço pessoas.

a religião, se for um chapéu que escolhemos usar ou não usar, dependendo do nosso estado de espírito, dependendo do clima lá fora, não é religião.

se a religião não arregaça a nossa vida pelo avesso, se não influencia quem somos e como agimos de uma maneira profunda e fundamental, então não é religião: é um hobby.

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misturando religião e política

e chegamos em uma das questões políticas mais delicadas do brasil de hoje:

assim como não tem como uma pessoa ser cristã só no domingo à noite e laica no resto da semana…

…também não tem como uma pessoa religiosa, cuja religião informa e influencia seu modo de agir e de pensar, ser eleita para cargo público e deixar sua religião lá fora, como se deixa um sobretudo na antessala.

para mim, religião é uma coisa tão política, seria tão inconcebível uma religião digna desse nome que não fosse também política, que não acho nem possível nem desejável tirar a política da religião ou a religião da política.

a questão é como gerenciar essa união.

quando se fala em estado laico, não se está falando em um estado sem religiões, ou onde as pessoas agem como se não tivessem religiões, mas um estado que não tenha, ele mesmo, uma religião oficial que exerça hegemonia sobre as outras, um estado que garanta que todas as religiões tenham voz, tenham espaço, tenham lugar.

nesse sentido, o templo satânico, nos estados unidos, está realizando um dos mais importantes trabalhos em prol do estado laico: sempre que ele encontra uma instância do cristianismo ocupando um espaço público, ele exige que o espaço também seja ocupado pelo satanismo. aí, das duas, uma: ou o estado decide que nenhuma religião pode ocupar aquele espaço, por ser público, ou mais religiões passam a poder ocupá-lo, não apenas a cristã.

no brasil, o problema não é existir uma bancada evangélica.

o problema não é nem mesmo não existirem bancadas budistas e umbandistas — pois seriam sempre minoritárias.

o problema são pessoas legisladoras tentarem impor os valores e as regras de suas religiões a todas as pessoas brasileiras de todas as diferentes religiões. (um problema que não é nem um pouco limitado às pessoas que se elegem com bandeiras religiosas, aliás.)

vale a pena lembrar que, em uma democracia constitucional, a maioria da população não pode impor seus valores e suas crenças sobre o resto das cidadãs.

se sou um senador budista e não como carne, não posso propor uma lei, que vai valer para todas as pessoas brasileiras, budistas ou não, impedindo-as todas de comer carne e usando como justificativa o fato de que buda sugeriu que não coméssemos carne.

o desafio do estado laico é: dado que não é possível descalçarmos nossas religiões como quem descalça um chinelo…

como agir politicamente enquanto pessoas religiosas sem impor nossa religião às outras cidadãs?

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meu caminho, meus agradecimentos

outro dia, folheando budismo sem crenças, do stephen batchelor, eu literalmente chorei de emoção ao lembrar o impacto que aquelas palavras tiveram em mim na primeira vez em que as li e ao perceber como todo o meu caminho desde então tem sido diferente graças a suas palavras e ensinamentos.

falamos muito que isso ou aquilo “mudou nossa vida”, mas, quando alguém pergunta, “mudou como exatamente?”, muitas vezes não sabemos responder.

(eu já escrevi um texto sobre as coisas que falamos que mudaram nossas vidas, mas que, na verdade, não mudaram nada.)

então, para não cair nesse erro, aqui vão alguns agradecimentos a mestres e professores que, de fato, concretamente, mudaram minha vida e, logo depois, a explicação de como foi essa mudança.

sem qualquer um desses elos na corrente da minha vida, eu hoje estaria em um lugar muito afastado, muito pior.

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obrigado a daisetsu teitaro suzuki, o pioneiro popularizador do zen no ocidente, a primeira pessoa a seriamente estimular meu interesse.

obrigado a stephen batchelor, que, ao articular a possibilidade de um budismo agnóstico e não-dogmático, removeu o primeiro obstáculo mental que me impedia de começar a prática.

obrigado a david r. loy, que, ao articular a possibilidade de um budismo engajado e atuante politicamente, removeu o segundo obstáculo mental que me impedia de começar a prática.

(vários professores ajudaram a quebrar minha percepção falsa de um budismo apolitico e alienado do mundo, como bernie glassman, alan senauke e thich nhat hanh, mas foram efetivamente as palavras de loy que primeiro me tocaram, me moveram, me ativaram.)

obrigado ao mestre robert livingston roshi, do new orleans zen temple, meu primeiro professor, que me iniciou efetivamente na prática.

obrigado ao monge alcio braz eido soho, do templo zen de copacabana, eininji — templo do cuidado amoroso eterno, atual professor.

obrigado. obrigado.

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budismo engajado

“a longo prazo, a chegada do budismo ao ocidente pode se provar o fato mais importante do século vinte”, disse um dos maiores historiadores de todos os tempos, o britânico arnold toynbee. (a frase é provavelmente apócrifa.)

“até o seu encontro com o ocidente, o budismo não tinha uma ideia original há mil anos,” escreveu edward conze, um dos maiores estudiosos ocidentais do budismo.

são frases polêmicas, mas, certas ou erradas, buscam chamar nossa atenção para as novas e originais ideias que surgiram desse encontro.

em todo lugar onde se instalou, o budismo se adaptou ao contexto local:

no contexto de um ocidente greco-romano que inventou a declaração dos direitos do homem, surgiu o “budismo engajado”, um movimento que busca aliar a prática budista ao engajamento político no mundo.

eu, ocidental agnóstico e com preocupações sociopolíticas, só pude realmente começar minha prática quando descobri que existia esse tal “budismo engajado” e quando encontrei um templo e um professor fortemente vinculados a esse movimento.

para quem também tinha essa minha antiga ideia de que o budismo era uma forma de alienação, recomendo começar pela leitura dos treinamentos, princípios, votos, preceitos básicos de duas das principais ordens do budismo engajado: a ordem interser, fundada pelo monge vietnamita thích nhat hạnh, e a ordem dos pacificadores zen, sobre a qual falarei mais abaixo.

reparem como os textos fundacionais de ambas as ordens especificamente evitam dogmas de fé:

são ordens que se baseiam não em crenças (“aqui, acreditamos em X e Y; se você também acredita, junte-se a nós”)

mas sim em práticas (“aqui, agimos da maneira A e B; se você também acha apropriado agir assim, junte-se a nós”).

parece pouco, mas é uma diferença enorme.

(leia aqui, em português.)

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a ordem dos pacificadores zen

a ordem dos pacificadores zen (zen peacemakers order ou ZPO) foi fundada pelo mestre zen bernie glassman em 1996. o templo que eu frequento, eininji — templo do cuidado amoroso eterno, adota as formulações dessa ordem.

mestre bernie é considerado um dos líderes mais criativos do budismo engajado ocidental. entre suas iniciativas inovadoras, estão:

retiros sem-teto:

onde pessoas privilegiadas, ao invés de fazer um retiro budista isolado em um hotel bucólico no meio da floresta, fazem seu retiro vivendo por cinco dias como pessoas sem-teto nas ruas de alguma grande cidade. diz mestre bernie: “não fazemos o retiro nas ruas para ensinar algo às pessoas ou para fazê-las mudar de vida. não há nada a ser ensinado, não há ninguém para ser mudado. a única coisa que existe é o comer e o dormir, o urinar e o defecar, o manter-se quente e seco — tudo isso enquanto vivemos nas ruas.”

fundação greyston:

tentando aplicar os ideais do budismo engajado ao mundo capitalista e criar um novo paradigma de negócio sustentável, mestre bernie fundou a padaria greyston, que contratava as pessoas mais “incontratáveis” da sociedade, ex-presidiárias, sem-teto, etc, e tinha como lema “não contratamos pessoas para fazer pão; fazemos pão para contratar pessoas”. mais tarde, ainda baseado na mesma filosofia, mestre bernie foi fundando outros negócios, como construção de casas populares e centros de tratamento de HIV, que hoje funcionam sob a aba da fundação greyston.

retiros de testemunho:

um dos três votos da ordem dos pacificadores é “testemunhar a dor do mundo“. para isso, ela promove retiros budistas em regiões conflagradas, em espaços marcados pela morte e pela dor: em ruanda, na bósnia, em reservas de povos originários norte-americanos, e em auschwitz. os retiros são organizados em parceria com institutos de memória coletiva das populações locais, como uma forma de participar do processo de luto e de cura. a ordem não considera que tem nada a ensinar, nada a trazer à essas pessoas:

o objetivo é simplesmente estar lá e compartilhar a dor.

(aviso importante: não sou membro da ordem dos pacificadores zen; não sou afiliado formalmente ao tempo zen de copacanana, eininji — templo do cuidado amoroso eterno; não tenho nem autoridade nem conhecimentos para falar em nome dessas organizações. falo somente, sempre, em meu próprio nome.)

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corporificando os três votos da ordem

as iniciativas de mestre bernie glassman e da ordem dos pacificadores zen têm moldado meu pensar e meu agir já faz alguns anos:

tanto a prisão eu quanto a prisão religião dependem bastante de suas ideias. já a prisão conhecimento, a última que escrevi, pode ser considerada nada mais que uma glosa, um apêndice, ao primeiro voto da ordem.

abaixo, os três votos da ordem dos pacificadores zen:

— praticar o não-conhecimento, abrindo mão de certezas prévias;

— testemunhar a alegria e o sofrimento, não virando o rosto à dor alheia;

— agir amorosamente, de acordo com essas duas posturas.

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sou escritor, professor, crítico. décadas de estudo formal e de pesquisas acadêmicas, em três países e em três idiomas, me treinaram a acumular, demonstrar, repassar conhecimento.

não seria exagero dizer que cultivar uma postura de não-conhecimento vai literalmente contra tudo o que fui treinado em minha vida adulta.

ao reconhecer a enormidade do meu não-conhecimento, a primeira coisa que perdi foi aquela profunda certeza na solidez das minhas opiniões.

sem essa certeza, eu já não me sentia mais tão impelido a julgar e opinar sobre as vidas alheias.

sem julgar e sem opinar, minhas interações humanas começaram a se tornar menos egocêntricas e autocentradas.

agora, já era possível simplesmente estar ali, ao lado de outra pessoa, de maneira plena e aberta, não como mais um juiz que tudo sentencia ou como mais um mestre que tudo aconselha, mas apenas como um outro ser senciente, falho e ignorante, mas capaz de ouvir e de aceitar, de acolher e de abraçar.

durante algum tempo, eu temia que cultivar o não-conhecimento e exercer a não-opinião significasse me omitir de agir politicamente no mundo.

mas não.

ao testemunhar a alegria e a dor alheias a partir de uma postura de não-conhecimento, eu podia agir no mundo de forma mais efetiva e mais generosa, menos egóica e menos violenta, mais transformadora e mais política.

nem sempre consigo. aliás, quase nunca.

é um processo, um caminho, uma prática.

(para conhecer as dez práticas de um pacificador zen, que também tento corporificar no meu dia-a-dia, leia aqui.)

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um retiro em auschwitz

em 2016, a ordem dos pacificadores zen realizará seu 21º retiro de testemunho em auschwitz.

entre segunda, 31 de outubro, e sexta, 4 de novembro de 2016, cerca de 80 pessoas, de todas as idades, religiões, continentes, vão passar cinco dias, juntas, meditando em um dos locais mais associados à dor e à morte do mundo.

meditaremos ao ar livre, debaixo de chuva ou de neve, nos trilhos de trem por onde chegavam as mais de um milhão de pessoas que morreram ali.

não temos nada a aprender. nada a ensinar. não sabemos o que vai acontecer.

nosso objetivo é simplesmente estar ali: testemunhar a dor e não virar o rosto à morte.

(mais informações sobre o retiro.)

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por que um retiro em auschwitz?

antes do primeiro retiro, quando perguntavam ao mestre bernie o que aconteceria, sua resposta era:

“não sei.”

algumas pessoas se ofenderam com a ideia. disseram que não era apropriado fazer um retiro em auschwitz. que era desrespeito com as pessoas mortas. uma participante quis sair no primeiro dia, afirmou que o comportamento das outras era uma afronta ao lugar, que “auschwitz era impossível”.

mestre bernie concordou:

“sim, auschwitz é impossível. tudo isso aqui é impossível. não é um retiro, são 150 diferentes retiros individuais. a qualquer momento, uma pessoa vai ofender outra, com suas palavras ou com suas ações. porque auschwitz é impossível. mas, ainda assim, tínhamos que fazer alguma coisa. as pessoas tinham que vir. tinham que ser testemunhas. tinham que estar aqui presentes.”

o que temos em comum é nossa diversidade.

ao longo dos retiros de testemunho em auschwitz, quase todas as pessoas tinham suas sugestões para resolver o desconforto geral: permitir ou não permitir preces cristãs ou muçulmanas; mais meditação, menos meditação; falar mais, falar menos, etc.

mas o objetivo do retiro, respondia o mestre, não era estarmos confortáveis mas sim testemunharmos nossas diferenças.

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aparte sobre “as prisões”

pelos últimos quatro anos, por todas as regiões do brasil, com mais de mil e quinhentas pessoas, tenho realizado um encontro chamado “as prisões”.

agora, relendo velhas palavras de mestre bernie para escrever esse texto, percebo o quanto de suas ideias, sem nem me dar conta, eu já havia internalizado e influenciavam minha maneira não apenas de viver, mas também de conduzir meus encontros.

quando as pessoas me perguntam como vai ser o encontro “as prisões”, eu respondo que sinceramente não sei.

e não sei mesmo, é sempre diferente.

quando as pessoas me dizem que não conseguiriam ficar em uma sala, cercadas de pessoas estranhas, compartilhando histórias e praticando atenção plena, por 12, 15 horas, eu respondo que, realmente, de fato, é impossível.

ainda assim, fazemos.

quando me perguntam se o encontro tem alguma lição, eu respondo: apesar de chegarmos imersas em nossos próprios e enormes problemas, acabamos sempre enxergando pedaços de nós em todos os problemas de todas as pessoas que estão ali.

somos diferentes mas estamos juntas: o que nos une é nossa diversidade.

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dizer o indizível, explicar o inexplicável

desde criança, eu era muito articulado: conseguia escrever, falar, comunicar o que quisesse, não apenas na minha língua, mas em outras. se tenho algum talento é falar bem.

talvez por isso, sempre me senti atraído pelo indizível, pelo inexplicável, por aquilo que está além da capacidade comunicativa das nossas palavras, por aquilo que está fora do alcance do meu único talento.

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não por acaso, minha pessoa autora preferida é clarice lispector:

desde a onomatopéica primeira frase de seu primeiro livro

(“a máquina do papai batia tac-tac… tac-tac-tac… o relógio acordou em tin-dlen sem poeira.”)

até o tour-de-force brilhante e insuperável de seu romance póstumo, água viva

(inteiramente dedicado a dizer apenas o que não pode ser dito)

toda sua obra é uma grande exploração das fronteiras do pensamento, da palavra, da comunicação.

seus contos são apenas os melhores que se produziram no brasil; a hora da estrela apenas encerra o ciclo de literatura realista de cunho social começado na década de 1930 e estabelece um novo patamar que ainda não foi alcançado; mas a paixão segundo gh e água viva são alguns dos maiores livros jamais escritos em qualquer língua e fazem parte da grande aventura linguística humana.

“será que consigo escrever sobre isso?”, clarice parece se perguntar, antes de cada livro.

se a resposta fosse negativa, se fosse objetivamente impossível escrever sobre aquilo, então, ela sentava e escrevia.

sou tão grato a ela por isso que me escorrem lágrimas de alegria pelo rosto. como agora.

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foi essa mesma busca pelo indizível que me atraiu ao zen, onde o foco é na experiência individual e na prática diária, e quase nada nas escrituras e no conhecimento.

no zen, as únicas experiências que importam são aquelas que não podem ser ditas, que não têm como ser comunicadas.

a pouca literatura zen é composta por koans, pequenas histórias aparentemente ilógicas cujo objetivo é dar um curto-circuito em nossos cérebros conscientes e nos abrir para a possibilidade de experiências além da palavra e além do conhecimento.

não por acaso (de novo), o livro que me apresentou ao zen, introdução ao zen-budismo de daisetsu teitaro suzuki (autor já citado acima nos meus agradecimentos), também habitava a estante da própria clarice.

qualquer pessoa que leu com atenção tanto a literatura de clarice como koans zen percebe imediatamente a semelhança: água viva nada mais é do que o koan mais longo da literatura universal.

(já existe até livro sobre isso: zen e a poética auto-reflexiva de clarice lispector, de igor rossoni. para quem não conhece koans zen, aqui tem três coleções em português para ler online.)

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a essência do zen está no indizível.

por isso, o primeiro voto da ordem dos pacificadores zen é praticar o não-conhecimento.

por isso, o fato de ninguém saber o que vai acontecer em um retiro zen em auschwitz não é um bug, é um feature.

pode falar sobre o zen

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“por que você vai a um retiro em auschwitz, alex?”

até agora, contei para pouquíssimas pessoas sobre minha viagem, e já fui soterrado por perguntas:

“alex, por que você vai para um retiro em auschwitz, gastando o que tem e o que não tem?”

não sei. me pareceu uma coisa importante a se fazer.

“alex, você não acha muito pouco apropriado e insensível fazer um retiro em auschwitz?”

não sei. se achar que sim, te conto.

(essa foi uma ex-namorada querida, que fez mestrado sobre o holocausto e me apresentou a shoah, que até hoje considero o melhor filme de todos os tempos e sobre o qual falo em senzalas & campos de concentração.)

“alex, como pode uma pessoa inteligente como você fazer uma coisa enorme dessas sem saber o porquê?”

não sei. sinceramente, não sei.

e não é um “não sei” arrogante e condescendente de quem apenas quer cortar o assunto

(afinal, estou aqui escrevendo esse texto enorme sobre esse “não sei”!)

mas um “não sei” profundamente sincero, um “não sei” zen, um “não sei” de quem está fazendo um enorme esforço para não agredir o universo com a violência dos meus porques.

talvez a única resposta realmente sincera seja:

vou atravessar o atlântico e gastar o dinheiro que tenho e o que não tenho para fazer um retiro zen em auschwitz, meditando ao ar livre debaixo de neve e debaixo de chuva…

…porque sinceramente, honestamente…

… me parece completamente impossível, inviável, inconcebível fazer um retiro zen em auschwitz.

e me parece ainda mais impossível, mais inviável, mais inconcebível… que eu (pasmem!) esteja lá.

por isso, vou.

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rememorando pessoas

durante o retiro em auschwitz, uma das cerimônias será uma espécie de kadish laico e gentio, onde recitaremos os nomes de pessoas falecidas, para honrá-las e recordá-las:

não apenas de pessoas que morreram em auschwitz ou no holocausto, mas de qualquer vítima de morte violenta, seja em guerras ou genocídos, seja em autos de resistência ou desacatos às autoridades.

infelizmente, como digo em meu texto senzalas & campos de concentração, o holocausto não foi tão único quanto nos parece:

para jovens homens brasileiros favelados, descendentes das pessoas escravizadas que construíram nosso país, todo dia ainda é dia de holocausto.

então, se alguém da sua família ou que você conhece morreu vítima de violência, em auschwitz ou na candelária, no brasil ou no exterior, parente ou amiga, hoje ou ontem, e se gostaria que seu nome fosse rememorado em nossa cerimônia, seria uma honra para mim:

por favor, responda esse email com o nome completo da pessoa e, se possível, data de nascimento e de morte.

se quiser aproveitar para falar um pouco sobre ela, eu adoraria saber.

e te agradeço.

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aprendendo a pedir

pedir dinheiro é uma parte importante da tradição budista: no início, os monges não podiam trabalhar e tinham que garantir sua subsistência diária pedindo esmola.

até hoje, a ordem dos pacificadores estimula essa atividade.

por exemplo, os retiros sem-teto custam cerca de três mil dólares (para passar cinco dias dormindo nas ruas!), um valor totalmente revertido para os projetos sociais da ordem, mas a pessoa interessada não pode pagar do seu próprio bolso:

ela precisa juntar um mala, ou terço budista, um colar de contas, com 18 contas pequenas, e uma conta grande, onde as contas pequenas simbolizam cada pessoa que doou US$108 e a conta grande, uma que doou US$1.080, totalizando assim os três mil dólares.

não basta apenas assinar um cheque: antes mesmo de o retiro começar, a futura pessoa participante já precisa sair de si, abandonar seu ego e desvestir seu orgulho.

somente tentar explicar às nossas pessoas próximas porque queremos dormir nas ruas por cinco dias já não é fácil.

depois disso, entretanto, vem a parte mais difícil: humildemente, esticar a mão e pedir dinheiro — algo que a maioria de nós, em nossas vidas adultas de pessoas financeiramente independentes, nunca teve que fazer.

além disso, ao pedir dinheiro…

— reconhecemos que, como pessoas individuais, somos limitadas naquilo que podemos alcançar sozinhas, confirmando assim a interdependência de todos os seres sencientes;

— incorporamos o dinheiro à nossa prática, constatando que não existe empreitada social ou iniciativa política que não envolva necessariamente a captação de recursos, e que doar também é um ato político de amor e de compaixão;

— promovemos e divulgamos o budismo engajado em nosso círculo de pessoas amigas e familiares, compartilhando assim nossa prática e fortalecendo nosso compromisso com ela.

finalmente, mais importante, o mala se torna um símbolo concreto, ali pendurado no pescoço, da comunidade de amigas e parentes que apoia, estimula, possibilita a nossa prática.

se você quiser e puder me ajudar a fazer esse retiro de testemunho em auschwitz, seria minha honra e meu orgulho poder levar um pedaço de você no meupescoço.

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pedindo sua ajuda

o retiro (e mais uma oficina sobre os três votos da ordem) custa US$2.000, mas me deram uma bolsa parcial e vou pagar apenas US$1.300 por ambos. (essa aqui é a página oficial do evento.)

a passagem aérea foi comprada com as milhas de uma pessoa amiga: usei todas e ainda tive que pagar mil e tantos reais.

depois do retiro, já que estarei na europa pela primeira vez em muitos anos, pretendo visitar três das pessoas que mais amo na vida:

minha melhor amiga, a artista plástica isabel löfgren, em estocolmo; asli, colega de doutorado, em istambul (recentemente elogiada até pelo milton ribeiro!); e minha ex-esposa, diane, em bolonha.(elas vão me hospedar e me ajudar com parte das despesas de deslocamento dentro da europa.)

antes mesmo de sair do lugar, porém, já são sete mil reais, uma parte significativa das minhas economias.

então, se você quiser e puder me ajudar, eu te peço que faça uma contribuição em dinheiro. não precisa ser US$108. pode ser qualquer valor: em reais, pelo pagseguro, ou em dólar, pelo paypal.

e eu te agradeço, muito mesmo, por fazer parte do meu processo, do meu caminho, da minha prática.

vou te levar pendurada no meu pescoço.

e, na volta, conto como foi.

(doe por paypal, em dólares, ou doe pelo pagseguro, em reais.)

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Uma resposta em “um escritor no campo de concentração”

Se formos pensar bem, na verdade sabemos muito pouco quando planejamos algo. Uma das coisas que mais me espantam, mas que é geralmente aceita como normal e até banal, é o chamado ‘plano de negócios’ de uma nova empresa. Como é que o empreendedor sabe que aquelas projeções irão se confirmar? E se ninguém se interessar pelo produto ou serviço que ele ofereça? Assim como esse, seria possível elencar N outros exemplos.

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