Como ser um homem não-canalha em um mundo criado e pensado para ser abusivo para as mulheres?
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“Por que ela recusou minha ajuda?”
Em uma imersão “As Prisões”, uma das moças que trabalhava na pousada estava trocando o garrafão de água do filtro. Ela, moça pequena; o garrafão, de vinte litros, enorme.
Um dos participantes se ofereceu para ajudar mas ela não não quis. Ele insistiu e ela recusou mais enfaticamente, até ele desistir.
Mais tarde, durante as conversas pós-Caminhada do Privilégio, ele contou essa história e, soando meio ferido e algo perplexo, perguntou:
“Por que ela recusou minha ajuda?”
Esse texto é para responder essa pergunta.
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O mundo é abusivo para mulheres
Outro assunto que surgiu nesse encontro foram relações não-monogâmicas. Dessa vez, uma moça perguntou:
“Alex, você não acha que relações não-monogâmicas são muitas vezes abusivas para as mulheres?”
Sim, mas só porque o mundo é abusivo para as mulheres.
Todas as instituições desse nosso triste mundo tendem a ser abusivas para as mulheres. O mundo dos esportes é abusivo para as mulheres. O mundo dos negócios é abusivo para as mulheres. Qual mundo não é abusivo para as mulheres?
Até mesmo espaços seguros exclusivamente femininos são, muitas vezes, também abusivos para mulheres — pois até as mulheres mais feministas cresceram em uma cultura outrofóbica e machista, violenta e competitiva, introjetaram esses valores e ainda não conseguem evitar de reproduzir alguns deles.
Então, naturalmente, não seriam logo as relações não-monogâmicas o único espaço a não ser abusivo para mulheres.
Mas me parece que a questão é outra.
Vale a pena defender a possibilidade de escolhermos desprivatizar nossos relacionamentos justamente porque relacionamentos não-monogâmicos têm o potencial de serem muito menos abusivos e muito mais igualitários que a maioria dos acordos monogâmicos.
Ou seja, a luta não é para impor relações não-monogâmicas a quem não quer, mas sim para que as pessoas-que-querem tenham a possibilidade de escolher viver esses relacionamentos em todo seu potencial.
(Sobre as questões éticas da não-monogamia, leia a Prisão Monogamia.)
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Entretanto, para que as relações não-monogâmicas sejam de fato não abusivas e igualitárias…
(na verdade, para que qualquer relação homem-mulher, amorosa ou profissional, familiar ou de amizade, seja de fato não-abusiva e igualitária)
…é preciso que os homens tenham sempre em mente um incômodo fato:
Toda relação homem-mulher é sempre assimétrica.
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As mulheres são sempre vítimas?
Nesse ponto, lendo o primeiro rascunho do texto, uma amiga fez a seguinte objeção:
“Quer dizer então que as mulheres são sempre vítimas? Não temos autonomia?”
A frase “O mundo é abusivo para as mulheres” afirma muito sobre como o mundo age em relação às mulheres, mas não afirma nada sobre o que são as mulheres ou como reagem a esse mundo.
O fato de o mundo sempre tentar derrubar as mulheres não quer dizer que todas as mulheres vão cair, nem que não tenham suas próprias estratégias individuais para se manter de pé: quer dizer apenas que, para as mulheres, manter-se de pé é muito mais difícil do que para os homens.
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Nossa língua é machista
Vivemos em uma sociedade profundamente machista, onde os direitos e os deveres de homens e mulheres são profundamente assimétricos. Um homem que queira se relacionar de forma ética e igualitária com mulheres precisa ter isso sempre em mente para não virar (nem que por descuido) um canalha.
A assimetria está em tudo, inclusive na própria língua que todas falamos.
Quase todos os xingamentos para homens são questionamentos de que não transam o suficiente com mulheres — provavelmente por serem homossexuais; por outro lado, quase todos os xingamentos para mulheres são questionamentos de que transam demais.
O “aventureiro” é o homem audaz que vive aventuras. A “aventureira” é a puta.
“Pistoleiro” é um homem que atira com pistolas. “Pistoleira” é puta.
“Vagabundo” ou “vadio” é um homem que não trabalha. A “vagabunda” ou “vadia” é uma puta.
“Cachorro”, “galo”, “touro” são alguns dos animais mais importantes na história da humanidade. “Cachorra”, “galinha”, “vaca”? Puta, puta, puta.
Por fim, “puto” é um homem indignado, irritado.
Já “puta” é puta.
(Aliás, nenhuma crítica às trabalhadoras do sexo por trabalhar com sexo. “Puta” ser o xingamento último só prova a extrema misoginia da nossa sociedade.)
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Mesma situação, riscos diferentes
Um homem em um namoro aberto estava se relacionando com uma mulher em um casamento aberto. Saindo do cinema, ele quis andar de mãos dadas, mas ela se recusou: mesmo estando em um cinema quase vazio, num dia de semana, do outro lado da cidade, tinha medo de ser vista, de ser falada.
O homem me contou essa história indignado, achando que eu validaria sua indignação:
“Por que essas mulheres são tão reprimidas, Alex? De que adianta sermos os dois seres humanos livres, em um relacionamento não-monogâmico consensual, ambos em relacionamentos com outras pessoas que sabiam de tudo, se não podemos nem dar as mãos?! Não é um pedido justo a se fazer? Dar as mãos? O que custa?!”
Mas, se calhasse de alguma pessoa conhecida ver os dois e espalhar a história, as consequências seriam bem diferentes para ambos:
Ele receberia high-fives dos bróders do marketing, “issaí, pegando uma gatinha no cinema da perifa, gostei de ver!”
Já ela ela ficaria marcada como “a puta da contabilidade”.
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Para as mulheres, a aposta sempre é mais alta
É muito fácil exigir algo que, para mim, não tem custo algum, mas que, para a outra pessoa, pode ter um custo altíssimo.
Infelizmente, como todas as relações homem-mulher são fundamentalmente assimétricas, isso acontece em todas elas.
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Assimetria na paquera
A assimetria já começa na paquera.
Um comediante compara os diferentes tipos de coragem que um homem e uma mulher precisam ter para sair em um encontro amoroso-sexual: o homem precisa superar seu medo de rejeição… e a mulher, de morrer.
“Uma mulher que responda ‘sim’ a um encontro amoroso com um homem está literalmente louca e sem noção… e nossa espécie depende disso para se reproduzir! Sinceramente, não sei como as mulheres ainda continuam saindo com homens, considerando que somos sua ameaça número um. Globalmente, historicamente, nós somos somos a pior coisa que pode acontecer a uma mulher. E sabe qual é a pior coisa que pode acontecer conosco? Ataque cardíaco!”
E ainda propõe essa comparação:
“Se você é homem, imagine que só pode sair com uma criatura meio-leão meio-urso. E, antes de cada encontro, você pensa, ‘Hmm, espero que esse seja um dos legais. Espero que seja um dos que não vai me matar!'”
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Assimetria no sexo e na gravidez
A paquera é apenas o começo.
A decisão de transar sem camisinha traz poucos riscos aos homens e muitos, muitos riscos para as mulheres.
Caso o homem tenha AIDS ou outra doença sexualmente transmissível, as chances da mulher ser infectada são muito, muito maiores do que as chances de uma mulher na mesma situação infectar um homem.
Caso ambos estejam cometendo adultério, o homem arrisca um divórcio e olhe lá, sem grande perda de status social. Já a mulher, se descoberta, pode tornar-se uma pária em sua própria comunidade, ser rejeitada por sua família e até mesmo ser legalmente morta por seu marido, em “legítima defesa de sua honra”.
Se o sexo resultar em gravidez, o homem pode simplesmente sumir e não paga nenhum preço.
Já a mulher estará necessariamente grávida, e enfrentará a difícil decisão de
1) ou arriscar a vida levando a cabo um dos partos mais perigosos de qualquer espécie, com todo o investimento de tempo e dinheiro, dor e enjoo, necessários para isso,
2) ou arriscar a vida, a liberdade e a vergonha pública fazendo um aborto clandestino.
Se acontecerem complicações no parto ou no aborto, só ela morrerá. Se for denunciada pelo aborto, só ela será presa, só ela será execrada por sua família, amigos, colegas; etc.
Após o parto, o máximo que a sociedade impõe ao homem é que ele cumpra a obrigação mínima de pagar uma parte das contas mensais da criança e, se ele escolher fazer só isso, não será mal-visto por sua família, amigos, colegas. Sua carreira profissional e sua vida amorosa seguem iguais.
Já a mãe solteira terá mais dificuldades de encontrar novos relacionamentos e de dedicar o mesmo esforço à sua carreira. Talvez precise aceitar uma demoção, trabalhar menos horas ou meio-período.
Além disso, sofrerá uma vigilância social da sua maternidade que os homens nem imaginam:
“Ah, que legal te encontrar pulando carnaval aqui no bloco! E sua filha, hein? Com quem está?”
Nunca vi essa pergunta ser feita a homens divorciados.
(Sobre isso, leiam A Fácil Paternidade.)
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Assimetria no ar condicionado
Os exemplos poderiam literalmente continuar ad eternum.
Não é exagero.
Como o mundo é sempre abusivo para as mulheres, se estivermos atentas poderemos ver essa assimetria em literalmente tudo.
Mas para não ficar somente em exemplos vida-ou-morte, deixa eu dar um mais prosaico.
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Uma amiga gaúcha, no meio de um inverso sulista particularmente cruel, veio me visitar no Rio. Empolgada e aliviada de estar indo para uma cidade tropical onde a temperatura média de inverno era 25 graus, ela anunciou à mãe:
“Não vou nem levar casaquinho! Chega de carregar agasalho! Viva o Rio de Janeiro!”
Já no dia seguinte, estávamos no Saara, comprando um casaco.
Não por causa do frio das ruas, naturalmente, mas pelo frio do metrô, do teatro, do cinema.
Ela percebeu que, no verão do Rio, assim como no inverno de Porto Alegre, as mulheres todas também andavam carregando casaquinhos e cachecois — apenas por razões diferentes.
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Em qualquer escritório que já visitei, a temperatura estava sempre ajustada para o maior conforto dos homens. Já as mulheres, tremendo de frio, é que precisavam se adaptar e trazer casaquinhos, meias, cachecois.
(Calor não tem gênero: pessoas com mais massa corporal sentem mais calor; como homens tendem a ter maior massa corporal que as mulheres, eles tendem a ser mais calorentos.)
Em um twist perverso, o código de vestuário só aumenta a assimetria: a roupa formal dos homens é quente (paletó, sapato fechado, etc) enquanto a roupa formal das mulheres é muito mais reveladora (decotes, mangas curtas, etc).
Ou seja, a mesma temperatura fria que garante o conforto dos homens em seus paletós também garante o desconforto das mulheres em seus scarpins.
Ironicamente, se ambos os gêneros trocassem de roupa provavelmente ficariam ambos mais confortáveis.
(Uma pesquisa holandesa comprova esse fenômeno.)
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Nesse ponto, você poderia argumentar:
“Mas, Alex, se ambos os sexos sentem temperaturas de forma diferente, faz muito mais sentido que as mulheres tragam mais roupas do que deixar os homens trabalhando no calor.”
É verdade.
De fato, se fosse apenas um exemplo isolado, seria trivial: em um mundo onde a situação de homens e mulheres fosse mais simétrica, haveria diversos exemplos de ambos lados.
No nosso mundo, porém, quase todos os desconfortos são femininos:
Para ter mãos bonitas, homens não precisam fazer quase nada, mulheres precisam ter unhas compridas caras de manter e que dificultam o manuseio; um sapato elegante masculino é basicamente confortável, um feminino machuca os pés e dificulta o caminhar; um homem bonito pode retirar ou não pêlos de uma única parte do corpo, mulheres precisam depilar o corpo inteiro, etc etc.
O ar condicionado é apenas um dentre muitos exemplos possíveis de um fato que pode ser facilmente observado em qualquer país, em qualquer profissão, em qualquer momento.
O mundo foi criado e desenhado, planejado e desenvolvido, para o conforto dos homens.
As mulheres que se virem, as mulheres que engravidem.
As mulheres que se adaptem, as mulheres que abortem.
As mulheres que se cubram, as mulheres que morram.
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A moça da pizza
Ainda pensando sobre a pergunta do moço (“por quê ela recusou minha ajuda, Alex?”), me veio à mente um episódio vergonhoso da minha infância.
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Um dia, pedi uma pizza e estava comendo sozinho quando percebi a empregada se esgueirando pelos cantos, com seus movimentos sorrateiros de quem se treinou para não chamar atenção e nunca incomodar as pessoas bem-nascidas.
Ofereci um pedaço, ela aceitou. Estava indo embora com sua fatia de pizza quando a convidei para se sentar à mesa e comer comigo. Ela não quis. Insisti. Ela se recusou. Várias vezes.
Falei, brincando, que se eu não era bom o bastante para que ela se sentasse à mesa comigo, então eu não era bom o bastante para que comesse minha comida.
Só fui aprender muito depois que brincadeiras apenas são brincadeiras quando o outro tem a liberdade e a intimidade de brincar de volta, ou de te mandar pro inferno. Brincadeira de cima pra baixo tem outro nome: humilhação.
Ela colocou a fatia de volta e se afastou em silêncio. Estava coberta de razão em não querer sentar comigo.
Comi a pizza inteira sozinho e, naquele dia e por muitos e muitos dias e anos depois disso, talvez até hoje, continuei sendo uma pessoa muito, muito ruim.
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O cavalheirismo é um machismo
Só pode existir cavalheirismo em uma sociedade já profundamente, inerentemente machista.
O cavalheirismo jamais teria surgido, jamais seria nem conceitualmente possível, a não ser em uma sociedade que já tivesse como auto-evidente a submissão, a fraqueza, a inferioridade das mulheres. E, a cada ato cavalheiresco nosso, estamos mantendo vivas essas ideias detestáveis.
Pior, o cavalheirismo quase sempre também é racista e classista:
O cavalheiro que se oferece para carregar a mala pesada de uma “dama” (ou seja, da mulher que considera merecedora de seu cavalheirismo) quase sempre é o mesmo que não se oferece para ajudar a faxineira que está fazendo serviços pesados. Afinal, “elas são fortes”, “esse é o trabalho delas”, “é pra isso que estou pagando”, e tantas outras justificativas outrofóbicas, racistas e elitistas. O cavalheiro que daria seu lugar no metrô para uma gestante da sua cor e classe é o mesmo que não se levantaria para uma trabalhadora negra com dois bebês no colo, “porque essa gente só sabe fazer filho”, etc etc.
(Desenvolvo mais esse tema no meu texto Cavalheirismo é machismo.)
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No caso do moço em questão, naturalmente, sua cavalheiresca oferta de ajuda teve o mérito adicional de transcender a barreira de classe social.
Entretanto, mesmo assim, foi recusada.
Por quê?
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Nesse ponto, posso imaginar a seguinte objeção:
“Ok, Alex, toda interação entre homem e mulher é mesmo assimétrica, mas, nesses dois exemplos que você deu, a moça do garrafão e a moça da pizza, a assimetria era socioeconômica, não de gênero.”
É verdade, mas também havia um funcionário homem na pousada, fazendo serviços gerais no jardim, e ninguém pensou em lhe oferecer ajuda.
Estamos aqui agora, eu escrevendo sobre isso e você lendo, somente porque a pessoa carregando o garrafão d’água era uma mulher em um mundo machista.
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A moça do garrafão d’água
Voltamos então à minha imersão “As Prisões” e ao moço que gentilmente se ofereceu para carregar um garrafão de água para a funcionária da pousada.
Não há problema algum nem na oferta dele, nem na recusa dela.
A única coisa que faltou ao moço foi compreensão de que seu galanteio propunha a ela entrar em uma interação que, embora para ele não oferecesse riscos, para ela trazia vários.
Do ponto de vista dele:
a. Ou ela aceitava a ajuda, e ele colocava o garrafão no filtro com um mínimo de esforço e saía todo feliz, se dando tapinhas nas costas por ser tão solícito e tão bonzinho;
b. Ou ela não aceitava a ajuda, e ele fazia um muxoxo de incompreensão (“quem entende as mulheres?!”) e, ainda assim, saía feliz, se dando tapinhas nas costas por ser tão solícito e tão bonzinho.
Em ambos os cenários, sua vida prosseguiria rigorosamente igual.
Para ela, posso imaginar vários cenários negativos, cuja probabilidade depende de fatores que eu não tenho como medir — mas ela sim, e, talvez por isso, tenha negado o favor:
1. A dona da pousada, ao ver um hóspede pagante carregando o garrafão, lhe dá um esporro: “Onde já se viu hóspede carregando água, menina! Eu te pago pra quê, sua folgada? etc”
2. Ao tentar passar o garrafão para o moço, ele cai no chão e se arrebenta. A patroa não diz nada ao moço (“imagina, o senhor estava apenas querendo ser gentil, mas não precisa fazer isso aqui na nossa pousada, não, viu?”) mas dá um esporro na empregada: “Nada disso teria acontecido se você não tivesse passado seu serviço pros hóspedes, sua abusada! Saiba que esse garrafão vai sair do seu salário e lamba os beiços por não ser demitida!”
3. A patroa pode olhar, não falar nada e simplesmente decidir demiti-la.
4. A patroa pode olhar, ficar bastante insatisfeita e não fazer nem falar nada, mas acabar demitindo a moça em um próximo vacilo — que não teria tido nenhuma consequência se não fosse por esse episódio anterior.
5. Ela aceita a gentileza e, depois, o hóspede começa a dar em cima dela. (No capítulo 4 do livro que salvou minha vida e que toda mulher deveria ler, Gavin de Becker chama essa tática de “agiotagem”: o homem faz um favor não-solicitado, criando uma falsa dívida. Quando a mulher nega seus avanços, é porque é “ingrata”. Essa tática é tão comum que muitas mulheres já preferem não aceitar gentilezas de homens.)
Etc, etc.
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As moças estavam certas de não sentar à mesa com um sinhozinho ou de não aceitar o gesto cavalheiro de um hóspede: só elas sabem os riscos verdadeiros que corriam.
A nós, homens em um mundo que oprime mulheres; pessoas brancas em um mundo que oprime pessoas negras; pessoas de classe alta em um mundo que oprime pessoas pobres; “pessoas privilegiadas de bom coração”…
A nós cabe nos esforçar para sairmos um pouco de nós mesmos, buscar saber quais são os riscos que nossa interferência (mesmo bem-intencionada) acarreta e tentar agir de acordo.
Não digo que não devemos oferecer ajuda: digo apenas que devemos tentar entender a situação através do ponto de vista da pessoa que estamos nos propondo ajudar e perceber as limitações sob as quais elas operam.
Se não quiserem nossa ajuda, paciência.
Talvez porque havia maneiras melhores de ajudar.
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No final da imersão, o moço deu cem reais de gorjeta para as duas funcionárias da pousada, em agradecimento ao bom serviço.
Ambas ficaram muito felizes, se sentiram valorizadas em seu trabalho e, presumo, fizeram bom uso do dinheiro.
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O privilégio é um contínuo
A Caminhada do Privilégio, exercício que estávamos discutindo quando surgiu a história do garrafão, tem como objetivo mostrar como os privilégios da nossa sociedade são um contínuo, não uma hierarquia.
Em uma hierarquia, como a militar, não existe sutileza: capitão está sempre acima de tenente, general sempre acima de major. Sem exceções.
No contínuo de privilégios, tudo é mais complicado: ok, uma pessoa branca é privilegiada em relação a uma negra, um homem é privilegiado em relação a uma mulher, uma pessoa rica é privilegiada em relação a uma mais pobre, etc.
Mas ninguém é apenas um desses rótulos: somos grandes, largas, complexas.
Entre uma mulher branca e um homem negro, quem é a pessoa menos privilegiada? Nossa sociedade outrófobica é mais machista ou mais racista? E se uma delas for homossexual mas a outra morar na periferia? E se uma for cadeirante mas a outra estiver acima do peso?
Proponho essas comparações só para demonstrar como não fazem nenhum sentido.
A verdade é que, nesse contínuo de privilégios, todas as pessoas continuam donas dos seus e, aliás, quanto menos privilégios tiverem, mais vão se agarrar a eles: a hipotética mulher branca sempre poderá enquadrar o homem negro com sua branquitude, enquanto que o homem negro sempre poderá dar carteirada de macho com seu falo.
A cantada de rua, por exemplo, muitas vezes se revela como um confronto entre dois privilégios, onde um homem, muitas vezes negro ou pobre, quebra sua invisibilidade social e tenta estabelecer algum tipo de dominância sobre o lado mais fraco do status quo, a mulher branca.
Por trás da cantada, o que ele de fato está gritando é:
“Sou pobre, sou negro, mas sou homem!”
Já a mulher, humilhada e objetificada no espaço público, poderia responder, em voz alta ou para si mesma, como consolo:
“Sou mulher, mas sou branca e sou rica, não sou pro seu bico!”
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Por fim, uma última objeção:
“Ok, Alex, toda relação homem-mulher é assimétrica, mas isso é só porque toda relação humana é assimétrica. Onde já se viu relação humana simétrica?”
É verdade, mas existem algumas relações humanas que são sempre (ou quase sempre) assimétricas para o mesmo lado.
Por exemplo, existem muitos casamentos interraciais no Brasil mas, na enorme maioria deles (5 em 6), a cônjuge negra tem status socioeconômico superior. Na prática, é como se estivessem compensando seu status racial (percebido como inferior em nossa sociedade racista) por um status socioeconômico superior: sua raça já seria uma desvantagem tão grande que precisariam de muitas outras vantagens compensatórias (maior escolaridade, maior renda, etc) para competir em pé de igualdade no mercado matrimonial.
(Desenvolvo esse tema mais a fundo no artigo Racismo, miscigenação e casamentos interraciais no Brasil.)
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Na prática, portanto, em uma sociedade racista, machista e classista como a nossa, não só toda relação homem-mulher é assimétrica:
Toda relação entre pessoa negra e pessoa branca, entre pessoa rica e pessoa pobre, também é assimétrica.
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O baralho viciado
Nossa sociedade não se organizou sozinha, nem caiu pronta do céu: foi organizada por muitos homens, ao longo de muitos séculos, e obedece, em larga medida, aos interesses de quem a organizou – interesses muitas vezes conflitantes e contraditórios, pois a sociedade é fruto não de uma “conspiração a portas fechadas”, mas de um longo processo social e político.
No caso do Brasil, nossa sociedade foi engendrada por uma elite machista, classista, hierarquizada, racista, paternalista, hipócrita e autoritária, e continuamos funcionando de acordo com esse paradigma outrofóbico até hoje, mesmo que sob o verniz da democracia e do estado de direito.
Então, se todas as pessoas brasileiras magicamente deixarem de ser outrofóbicas mas as estruturas e instituições permanecerem inalteradas, essa nossa hipotética sociedade sem machistas e sem racistas continuará intrinsecamente machista e racista, e marcada pela mais profunda outrofobia, pela mais crônica desigualdade racial e de gênero.
Acredito nos bons sentimentos de todo mundo, mas não deixo de achar incrível que, mesmo ninguém sendo machista ou racista nessa nossa sociedade tão linda, o resultado final é que as pessoas brasileiras do sexo feminino ou de pele mais escura (e gays e trans e etc e etc) sempre acabam se dando pior. A Outrofobia sempre vence.
O baralho que herdamos já está viciado para beneficiar sempre um tipo específico de jogador. Não basta que os jogadores beneficiados simplesmente não trapaceem – pois, mesmo assim, vão continuar magicamente ganhando todas as partidas.
É necessário trocar de baralho.
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Não à culpa, sim à responsabilidade
Nesse mundo criado pelos homens à sua imagem e semelhança, nenhuma relação homem-mulher poderia ser simétrica.
Na prática, de modo bem real, o mundo foi pensado para que homens e mulheres nunca cheguem em pé de igualdade à nenhuma situação: para as mulheres, os riscos sempre são maiores e, quando dá merda, as punições também.
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Nós, homens, não somos culpados por nossos privilégios: eles são resultados de ações tomadas muito antes de nascermos. Só devemos sentir culpa ou não por aquilo que de fato fazemos.
Nada poderia ser mais autocentrado do que a infinita masturbação mental de passar horas e horas girando em torno de nossos próprios egos, remoendo nossas falas e atos, e nos martirizando por privilégios que não criamos.
Ao invés de culpa, prefiro falar em responsabilidade.
Se a culpa é paralisante, a responsabilidade é energizante.
Nós, as pessoas privilegiadas, não somos culpadas dos crimes da nossa sociedade outrofóbica, machista, racista, elitista, homofóbica, transfóbica, intolerante.
Mas, como beneficiárias desses crimes, temos a responsabilidade de ajudar. De nos tornar parte da solução e não do problema.
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Mas a consciência de um problema só tem algum valor se levar à ação efetiva para a solução do problema.
Senão, se levar à autocomplacência, se nos fizer dar tapinhas em nossas próprias costas, então a consciência de um problema se torna parte do próprio problema, em uma perversa retroalimentação.
A pergunta mais importante sempre será:
O que estamos fazendo, hoje, agora, para resolver esse problema?
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A nós, homens tentando não ser canalhas, tentando não nos aproveitar da assimetria criada para nos beneficiar, cabe agir ativamente, interação a interação, para diminuir essa distância, para corrigir essa assimetria.
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Leia também: Feminismo para homens, um curso rápido
Ilustrações originais por Flávia Tótoli.
3 respostas em “Toda relação homem-mulher é assimétrica”
Caro Rodrigo, vc sabe como funcionam comentários? O comentário da Angela não é um “post-scriptum” q EU postei, mas um comentário que ela, pessoa que eu aliás não conheço, escreveu e postou, assim como você, pessoa que eu também não conheço, escreveu e postou o seu… Clique em outros posts e verá outros comentários escritos por outras pessoas. A parte q eu escrevi, e pela qual me responsabilizo, é pelos textos dos posts em si. Os comentários são de responsabilidade de seus autores…
Muito interessante o texto. E não tem um “mas” no meu comentário em relação a nada do que você escreveu. O mas sme parece direcionar um “tapinha nas costas” em si próprio ao postar o comentário post-escriptum (até justo, mas não vem ao caso) de uma mulher dizendo o quanto o seu texto representou o que ela mesma gostaria de ter dito e não pôde e que queria fazer o seu curso so para conhecê-lo e falar contigo. Para mim soou como se Chico Buarque andasse comentando como ele mesmo consegue escrever suas canções “do pobto de vista feminino”.
Creio que onautor caiu na armadilha que descreveu no texto, tornando-o ainda mais didático, principalmente para nós, homens.
Um abraço!
Esse texto disse tudo que eu sinto e penso e não soube verbalizar nos meus 58 anos. Muito impressionante que tenha sido escrito por um homem. Muito inteligente e sensivel. Ja me inscrevi na newsletter . Vou ler tudo! Acho que vou fazer um curso seu , so para te conhecer , ouvir e conversar.