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Cavalheirismo é machismo

Só pode existir cavalheirismo em uma sociedade já profundamente, inerentemente machista. Não é possível ser cavalheiro sem ser machista.

Só pode existir cavalheirismo em uma sociedade já profundamente, inerentemente machista. Não é possível ser cavalheiro sem ser machista.

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Vamos começar definindo: Cavalheirismo é ser gentil com mulheres. Andar entre sua mulher e a rua, caso passe um caminhão por cima de uma poça. Abrir a porta para as damas. Se oferecer para ajudar quando vê uma moça carregando uma mala pesada. Pagar a conta do restaurante e, especialmente, a do motel. O machismo reside justamente em só fazer essas coisas pelas mulheres. O machismo é você ver um moço com dificuldade de carregar uma mala pesada… e nunca nem te ocorrer ir lá se oferecer pra ajudar.

Objeção nº1: “Alex, você está confundindo machismo com gentileza! Ajudo as mulheres porque são mais fracas!”

Muita gente fala que cavalheirismo é só gentileza. Que é gentileza com alguém que é mais fraco. Mas não é verdade. Se você é gentil com todo mundo, e não só com as mulheres, então você não é cavalheiro: você é gentil.

Alguns homens me respondem que “o cavalheirismo ajuda preferencialmente mulheres porque elas são mais fracas” mas isso

  • É machismo, justamente por presumir que as mulheres são sempre mais fracas, e
  • É mentira, porque vejo esses mesmos homens ajudando mulheres que não são fracas e deixando de ajudar homens que são sim mais fracos.

Se o cavalheirismo fosse realmente um código de conduta que pregasse que, em qualquer situação, a pessoa mais forte e mais capaz e mais apta deve sempre ajudar a pessoa menos forte, menos capaz e menos apta, de qualquer sexo e de qualquer gênero, então, ele seria uma das coisas mais lindas e revolucionárias da história da humanidade e meu texto perderia totalmente a razão de ser. Além disso, se cavalheirismo significasse só “ajudar a pessoa mais fraca”, então não teria porque não dividir a conta do motel ou do restaurante. Ou, então, a conta seria sempre paga pelo “mais forte”, ou seja, por quem ganhasse mais, independente do gênero.

Só que não é assim. Segundo o rígido código de conduta do cavalheirismo, o homem tem sempre que pagar a conta ganhando mais ou menos, tem sempre que carregar as malas sendo mais fraco ou mais forte. Sempre.

Porque o grande problema do cavalheirismo é justamente partir da premissa que a mulher sempre vai ser a parte fisicamente, economicamente, emocionalmente mais fraca. O cavalheirismo jamais teria surgido, jamais seria nem conceitualmente possível, a não ser em uma sociedade que já tivesse como auto-evidente a submissão, a fraqueza, a inferioridade das mulheres. E, a cada ato cavalheiresco nosso, estamos mantendo vivas essas ideias detestáveis. Esse é o problema.

(Apesar disso, claro, toda relação homem-mulher é sempre assimétrica, mas esse é outro assunto, que trato aqui.)

Objeção nº2: “Alex, as mulheres são as maiores machistas! Elas é que exigem o cavalheirismo!”

Ao ler textos como esse, muitos homens ficam extremamente defensivos. Dizem que as mulheres é que são “as maiores machistas”. Que as mulheres com quem saem esperam que eles paguem a conta do restaurante, que paguem a conta do motel. Essas regras foram gravadas tão profundamente em nossas almas que, para muitos homens, é simplesmente impensável e intolerável sair romanticamente com uma mulher, ou levá-la ao motel, e não pagar tudo. Para ele, ser homem é fazer essas coisas e, portanto, ao não fazê-las, de maneira bem concreta e real, ele não seria mais homem.

Infelizmente, muitas mulheres também introjetaram os preconceitos da cultura machista e são prisioneiras do cavalheirismo, dessa definição tão mesquinha e limitante do que é “ser homem” e do que é “ser mulher”.

Já ouvi uma vez de uma moça: “Pois é, Alex, achei que você estava interessado em mim quando me chamou pra sair, mas então, quando não se ofereceu para pagar a conta e dividimos igualmente, concluí que éramos somente amigos.” Ela até tinha razão. Fiquei sim brevemente interessado e, por isso, a chamei para sair. Mas meu interesse implodiu no momento em que fez esse comentário tão machista. Entendo bem quais são os motivos estruturais e culturais que levam uma mulher a introjetar assim os piores pressupostos e preconceitos machistas, e tenho empatia por ela, e tento ajudá-la na medida da minha capacidade, mas eu não conseguiria me relacionar romanticamente com uma pessoa que acha que o homem “simboliza seu interesse pagando a conta”.

Ouvi de outra moça: “Por que eu sairia com um homem se ele não me pagar tudo? Eu hein! Se for pra sair e dividir a conta, saio com as minhas amigas.” E eu, estupefato, perguntei: “Mas e se você gostar dele?” E ela: “Eu só gosto de homem de verdade, Alex, homem que me trata como eu mereço!” Ou seja, como um prêmio ou como uma mercadoria.

Por fim, uma outra amiga, liberada e independente, me confessou: “Eu já tive que transar no carro, porque ele não tinha dinheiro pro motel e não admitia que eu pagasse. Mas eu queria, então… Ou seja, machismo dá dor nas costas!” Se o cara tivesse perdido a transa por causa dessa palhaçada, talvez começasse a reconsiderar seus preconceitos.

Então, quando os homens afirmam que agem de forma cavalheiresca (leia-se: machista) porque as mulheres exigem o cavalheirismo (leia-se: o machismo), eu tenho que admitir que sim, muitas mulheres de fato compraram o pacote completo da ideologia machista.

Mas e daí? Se a mulher é uma vítima da ideologia machista que domina nossa sociedade, se ela acabou não resistindo e internalizou seu status de inferioridade, de objeto, de mercadoria, se ela realmente acredita que só merece as migalhas que o sistema machista lhe oferece… isso é justificativa para que eu a trate como um ser inferior, como um objeto, como uma mercadoria? Sou obrigado a pisar em alguém só porque essa pessoa voluntariamente se deitou no chão?

Objeção nº3: “Alex, cavalheirismo é como as mulheres chamam a parte do machismo que lhes convém!”

Alguns dos escandalosos números da violência sobre a mulher já foram dados no meu texto Feminismo para homens. Se os homens pensam que abrir uma porta ou carregar uma mala bastam para compensar esse circo dos horrores, estão muito enganados.

Sexo não se dá, se compartilha

 Em toda a minha vida, eu fui ao motel uma única vez com uma mulher que se recusou a dividir a conta. E aquilo me deixou um gosto ruim na boca. Senti que estava comprando seu corpo por meia diária de motel. Que eu deveria estar grato por ela ir comigo ao motel, mas que o oposto não era necessariamente verdadeiro. Mas eu não queria que ela “consentisse” no sexo, desde que eu pagasse o táxi e o motel. Não tenho interesse nessa sensação caçadora de ter “conquistado” uma “presa valiosa”. Eu queria uma mulher adulta e independente, que desejasse transar comigo tanto quanto eu desejava transar com ela, e que dividisse igualmente os custos necessários para que isso acontecesse.

Naturalmente, se um dos dois não pode pagar, dá-se um jeito. Cada caso é um caso: paga mais quem tem mais condições. O cavalheirismo é machista justamente porque, independente das circunstâncias, impõe a um tipo de pessoa o ônus de sempre pagar e a outro, o bônus (na verdade, também um ônus, como prova a minha amiga que teve que transar no carro) de não poder pagar nunca.

Nada mais cavalheiro do que reconhecer o próprio machismo

Um cavalheirismo mais verdadeiro não seria apenas abrir a porta e carregar a mala. Um cavalheirismo de verdade seria saber ouvir e respeitar as mulheres. Quando elas reclamam de ter sido violentadas, inferiorizadas, controladas, o verdadeiro cavalheiro saberia ouvir, saberia se colocar no lugar delas, saberia exercer sua empatia, saberia não minimizar a dor que elas sofreram. Em outras palavras, o cavalheiro de verdade… seria pró-feminista. Mas aí, claro, ele já não seria mais um cavalheiro.

Não existe almoço grátis

O homem-cavalheiro-que-tudo-paga, do motel ao jantar, como se estivesse comprando um serviço, e a mulher-dama-que-tudo-aceita, como se o seu sexo fosse uma coisa que vende em troca da melhor oferta, já embarcaram em uma relação comercial faz tempo, quer saibam, quer não. O homem-cavalheiro-que-tudo-paga é o mesmo que acha que a mulher-dama-que-tudo-aceitou tem a obrigação de lhe oferecer o serviço anunciado. E, quando esse homem é frustrado em suas intenções, ele ou a estupra ou sai dizendo que homem bonzinho só se fode, que foi colocado no friendzone, que as mulheres são canalhas e interesseiras. (Na prática, o primeiro é somente mais predisposto à violência que o segundo, mas a lógica que os motiva é idêntica.) O homem cavalheiro e o homem machista são o mesmo homem.

O homem verdadeiramente gentil não é cavalheiro: ele é só gentil. Com todos. E não espera nada em troca.

Sempre chega a conta

Recentemente, uma leitora perguntou à psicóloga e sexóloga Regina Navarro Lins:

“Sempre tive uma relação muito boa com o meu namorado, mas isso está se modificando… Desde o início me agradou a cortesia dele, sua atitude de super cavalheiro, que nunca me deixou botar a mão na carteira, sempre pagou tudo e sempre impediu que eu fizesse qualquer esforço. Ele se adianta para abrir as portas ou qualquer outra atividade que possa fazer por mim. Mas, após seis meses de namoro, começo a notar que ele se coloca numa posição de superioridade em relação a mim. Qualquer opinião que eu tenha sobre assuntos gerais, ele não leva em consideração, faz até cara de deboche. Fui prestando a atenção em sua postura e estou certa de que ele mantém uma atitude dúbia comigo: me mantém confortável e ao mesmo tempo me despreza.”

Pois é. Sempre chega a conta. O homem que faz o seu imposto de renda pra você “não preocupar sua cabecinha linda com isso” é o mesmo que não está interessado nas suas opiniões… porque ele sinceramente te acha uma idiota! Ele não se transformou de príncipe em canalha da noite pro dia. Ele te achava uma idiota quando galantemente se ofereceu para fazer seu imposto de renda. Aliás, ele provavelmente se ofereceu para fazer seu imposto de renda porque te achava uma idiota incapaz de fazer isso tão bem quanto ele.

A fantasia de muitas mulheres, que quase nunca se realiza e muitas vezes tem consequências trágicas, é conseguir o-príncipe-que-faz-seu-imposto-de-renda sem levar junto o-canalha-que-não-se-interessa-por-suas-opiniões-porque-te-acha-uma-idiota. Infelizmente, quase sempre, eles não só vêm juntos, mas são o mesmo. Uno e indivisível.

Citando a Regina Navarro Lins:

“Cavalheirismo … [t]raz, de forma subliminar, a ideia de que a mulher é frágil e necessita do homem para protegê-la, até nas coisas mais simples como abrir uma porta. … [A]lgo que parece tão inocente pode ser profundamente prejudicial por reforçar inconscientemente ideias que já deveriam ter sido reformuladas. … Que tipo de homem deseja proteger uma mulher? Certamente não seria um que a vê como uma igual, que a encara como um par. Mas aquele que se sente superior a ela. E como disse a atriz americana Mae West em um dos seus filmes: “todo homem que encontro quer me proteger… não posso imaginar do quê.””

O cavalheirismo é como o machismo premia as mulheres que “sabem o seu lugar”

O sexismo benevolente (leia-se “cavalheirismo”) e o sexismo hostil (leia-se “masculinismo”) são duas faces da mesma moeda: ambos só poderiam nascer e se manter em um contexto cultural machista. Por um lado, o sexismo benevolente parece ser uma coisa linda e fofa, portas são abertas e contas são pagas, etc etc. Entretanto, esse tipo específico de benevolência sexual só pode nascer em uma cultura que vê as mulheres como inerentemente mais frágeis e incapazes, seres que sempre vão precisar da ajuda dos homens, ó-tão-mais fortes e ó-tão-mais capazes. Então, as crenças que dão suporte e possibilitam o sexismo benevolente são as mesmas que dão suporte e possibilitam o sexismo hostil: um não poderia existir sem o outro.

O indivíduo cavalheiro, que trata sua mãe e sua noiva de maneira gentil e benevolente (porque “elas merecem”, porque são “dignas”, “direitas”, “honestas”) é o mesmo que vai exercer sua dominância e seu machismo hostil sobre as mulheres ditas não-direitas, sobre as “vadias” e sobre as “vagabundas”, sobre qualquer uma que não conforme ao ideal tradicional de mulher. Quem é considerada “fácil” provavelmente não vai merecer as benesses do cavalherismo.

Mais ainda, o cavalheirismo é como o machismo premia as mulheres que são da cor certa e da classe social certa. O cavalheiro que se oferece para carregar a mala pesada de uma “dama” (ou seja, da mulher que considera merecedora de seu cavalheirismo) quase sempre é o mesmo que não se oferece para ajudar a faxineira que está fazendo serviços pesados. Afinal, “elas são fortes”, “esse é o trabalho delas“, “é pra isso que estou pagando”, e tantas outras justificativas outrofóbicas, racistas e elitistas. O cavalheiro que daria seu lugar no metrô para uma gestante da sua cor e classe é o mesmo que não se levantaria para uma trabalhadora negra com dois bebês no colo, “porque essa gente só sabe fazer filho”, etc etc.

Não por acaso, uma das conclusões de uma pesquisa sobre o assunto foi que os países e culturas que mais reforçam o sexismo benevolente também são os que mais praticam o sexismo hostil. Em outras palavras, os mais cavalheiros são os mais machistas:

“O sexismo benevolente “recompensa” mulheres quando elas desempenham papeis tradicionais, enquanto o hostil pune as mulheres que não se comportam de acordo com os padrões ideais machistas.

As flores do marido abusivo

Nenhum marido abusivo é abusivo todo dia, o dia todo. O homem que hoje bate na sua cara amanhã traz flores. Essas flores são o cavalheirismo. O cavalheirismo é dizer:

“Desculpa eu te dominar há milênios, te impedir acesso ao mercado de trabalho, controlar seu corpo e te estuprar. Mas, ó, estou carregando sua mala, e ainda pago a conta do motel. Com todas essas vantagens, pôxa, você não tem do que reclamar!”

Notas de leitura

Obrigado à Bárbara Lopes, que, durante uma conversa na lista das Blogueiras Feministas, me chamou atenção para o aspecto socioeconômico do cavalheirismo. As citações da Regina Navarro Lins são dos artigos “Ele é super gentil….mas me despreza.” Se eu fosse você…… e O cavalheirismo é nocivo às mulheres! A pesquisa citada ao final é de Peter Glick e Susan T. Fiske e está no artigo “’Benevolent sexism’ is not an oxymoron and has insidious consequences for women, experts argue”.

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Texto originalmente publicado no site PapodeHomem em 2013. Depois republicado no meu livro Outrofobia, de 2015. Reescrito em 2019.

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