morei por vários anos no exterior (esse imenso e estranho lugar que inclui são paulo, os estados unidos e marte), mas finalmente consegui voltar ao rio de janeiro. hoje, vivo em copacabana.
quando o escritor luiz biajoni, paulista de americana, teve receio de escrever o romance elvis e madona, ambientado no bairro, sem conhecer nada dele, eu o tranquilizei. copacabana é como paris ou nova iorque: ela é plástica, mutável, literária. a copacabana de verdade não existe. a copacabana inventada é que é a real.
de copacabana, eu esperava, e ainda espero, tudo. o melhor e o pior que podem oferecer cento e cinquenta mil seres humanos apertados entre o mar e as montanhas.
o que não esperava é que fosse um bairro tão gentil.
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antes de me mudar, fui a uma agência de banco perto da minha futura casa tentar resolver um daqueles típicos e infernais problemas bancários de quem volta a morar no brasil.
quando cheguei, a gerente estava atendendo, com infinita paciência e muito tato, uma velhinha surda e grosseira que não entendia o funcionamento do cheque especial e nem tinha noção de como estava gritando. depois, na minha vez, com uma boa vontade que me comoveu, ficou quase duas horas comigo, que nem era correntista daquela agência, resolvendo um problema exótico e raro.
só por causa dela, transferi minha conta para lá, pensando:
essa moça é a melhor gerente de banco do mundo!
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meu prédio tem dez andares e cerca de quarenta apartamentos por andar. é uma pequena cidade, habitada por recém-casados, garotas de programa, velhinhos ranzinzas, estrangeiros deslumbrados… e eu.
o porteiro-chefe e sua equipe fizeram toda a reforma de quatro meses do meu apartamento, que basicamente teve que ser refeito do chão ao teto. enquanto lidava com os mil e um problemas que surgem em qualquer obra, ele era constantemente abordado, abusado, às vezes quase agredido por moradores grossos e impacientes, velhinhos com tempo livre demais nas mãos e controle de menos nos nervos.
ele respondia a todos com enorme paciência e infalível sorriso, sempre bonachão, calmo, tranquilo. e eu pensava:
esse homem é o melhor porteiro do mundo!
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tem uma biblioteca municipal a um quarteirão do meu prédio. é onde estou agora escrevendo. venho muito trabalhar aqui.
a biblioteca tem duas coisas que não disponho em casa e que às vezes fazem falta: mesas e cadeiras, e ausência de internet. meus livros estão expostos na estante de lançamentos e é gostoso ver que nunca param quietos, a fileira de carimbos nos cartões só aumentando.
tecnicamente, é uma biblioteca infantil, mas estamos em copacabana: 90% do público é de velhinhos. e eles não querem nem ler jornal, nem olhar as estantes: exigem serviço! quais são as novidades? onde estão os lançamentos? rápido! rápido! e por que pararam de abrir sábado, hein?
e, incrivelmente, a bibliotecária, uma funcionária pública com estabilidade no emprego, não manda todos tomarem no cu. pelo contrário, demonstra imenso carinho, sabe seus nomes, conhece seus gostos, lembra seus hábitos: chegou o novo mário prata, a senhora não queria o último do joão ubaldo?, saiu um livro sobre a revolução francesa. às vezes, empurra até os meus: esse romance é daquele moço que está ali.
e eu, tentando escrever textos como esse que você está lendo e prestando atenção em tudo, pensava:
essa moça é a melhor bibliotecária do mundo!
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até que finalmente caiu a ficha, né?
sem querer desmerecer os três profissionais citados acima, todos também moradores de copacabana, eles não são os únicos. poderia falar o mesmo de garçons e atendentes, caixas de supermercado e barbeiros. imagino que os profissionais que não tenham uma paciência especial para lidar com velhos rudes e sem noção acabam naturalmente saindo do bairro e aceitando outros empregos.
sobra então a força de trabalho mais gentil do mundo.
quando decidi que iria morar em copacabana, nunca imaginei que a melhor coisa do bairro fosse ser justamente… a gentileza.
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uma amiga leu a primeira versão desse artigo e comentou:
“alex, você é muito engraçado mesmo. percebe que escreveu esse texto todo pra dizer que copacabana é o lugar mais gentil do mundo, mas o texto serviria igualmente dizer que é o lugar mais grosseiro? afinal, em cada história que você contou, além do profissional agindo de forma paciente e gentil, existem outras pessoas sendo rudes e exigentes. por que não escrever um texto dizendo que em nenhum outro lugar você viu tantos velhos mal-educados destratando as pessoas atenciosas que os serviam?”
e lembrei de uma pintora que foi estuprada três vezes ao longo de sua vida. quando perguntaram como ela se recuperou e o que fez para voltar a ter relações saudáveis com homens, ela respondeu:
“em um dado momento, temos que escolher quem permitimos que nos influencie. eu poderia me permitir ser influenciada pelos três homens que me foderam contra a vontade, ou podia escolher ser influenciada por van gogh. escolhi van gogh.”
pois bem. escolho a gentileza.
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tirada em 29 de novembro de 2013, do caminho dos pescadores, no leme. ao fundo, o morro dois irmãos, a pedra da gávea, o corcovado. clique para ver em tamanho maior. outros textos meus sobre copacabana.
Uma resposta em “gentileza em copacabana”
Muito bom texto.