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Escritores e bonecas

A criança é o pai do homem: um texto sobre mulheres engenheiras e homens escritores, barbies e falcons, Kafka e Machado de Assis.

Amiga engenheira me conta um dos momentos mais definidores de sua vida:

“Então, eu tinha uma daquelas bonecas que fazia alguma coisa, sabe? Falava, mexia, não lembro. Aí, um dia, de repente, ela parou de funcionar. Eu era bem pequena ainda mas consegui abrir a boneca, dei uma fuçada lá dentro, mexi alguma coisa e, pimba, ela voltou a funcionar. Aquilo pra mim foi poderossíssimo. Eu tinha agência, eu tinha autonomia, eu tinha poder. Quando as coisas paravam de funcionar, paravam de agir como eu queria que agissem, eu tinha poder de intervir, de reparar, que moldar o mundo à minha vontade, por força do meu intelecto, da minha habilidade. Claro que eu não conseguia articular isso naquela idade, mas foi uma sensação fortíssima que nunca me abandonou, uma sensação que me sustentou na escola, em cinco anos de faculdade de engenharia onde eu era uma de cinco mulheres entre quinhentos homens e, bem ou mal, me sustenta profissionalmente até hoje.”

E respondi:

“Que história linda. E como são incríveis nossas diferenças! Quando eu era pequeno, aconteceu a mesma coisa comigo, um boneco parou de funcionar, e nunca, jamais, teria me ocorrido abrir o boneco e mexer lá dentro!”

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Perguntou minha amiga:

“O que você fez?”

E lá fui eu:

“Bem, eu cavei um buraco no jardim, depositei o boneco ali dentro e coloquei todos os meus outros bonecos de pé em volta do buraco. Então, cada um deles fez um elogio fúnebre do defunto. O Falcon (alguém lembra do Falcon, meu Deus?) relembrou uma batalha impossível onde o falecido tinha salvo sua vida. A Barbie relembrou seu namoro com o falecido, com quem apenas rompeu porque ele teve que ir a guerra com o Falcon e só por isso ela tinha conhecido o Ken. (“Ainda bem pela guerra”, disse ela, em voz baixa.) O Ursinho Carinhoso disse ter conhecido o falecido assim que voltou da guerra, transformado por suas experiências militares em um lutador incansável pela proteção do meio ambiente e dos animais. Etc etc. Naturalmente, várias narrativas entravam em conflito e se contradiziam. Uma boneca dizia: “O Fulano que eu conheci jamais faria isso!” E outra gritava: “Você não sabe de nada! Comigo fez muito pior!” E caíam se atracando em cima do cadáver do outro. Etc etc. O fato de um boneco ter parado de funcionar me deu a oportunidade de criar várias biografias possíveis para ele, e também de criar vários outros personagens, e todas as maneiras diferentes através das quais eles se conheciam e interagiam. Foi muito legal.”

E minha amiga engenheira, me olhando como se eu fosse um ET:

“De fato, somos muito muito diferentes!”

* * *

Outro dia, na sala de espera do Oftalmologista, me desfiz em lágrimas por causa do textinho abaixo, de Marcel Cohen, publicado na Revista Piauí de novembro de 2017:

“Dora Diamant, que viveu com Franz Kafka de setembro de 1923 até a morte do escritor, em 3 de junho de 1924, tratou de não omitir nenhum detalhe quando contou à filha a história da menina que tinha perdido sua boneca.

Uma menina estava chorando, sozinha num banco do parque Steglitz, em Berlim. Franz e Dora aproximam-se e lhe perguntam o que está acontecendo. Franz explica que a boneca não se perdeu, ao contrário do que pensa a menina. A prova? Ele acaba de receber uma carta da boneca. Mas é claro que não tem a carta consigo, pois não sabia que encontraria a menina.

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Mal volta para casa, Franz redige a carta que supostamente recebera e que lerá para a menina no dia seguinte. Na carta, a boneca explica que estava cansada de viver sempre com a mesma família. É bem verdade que amava a menina, mas queria respirar um pouco os ares do mundo. De todo modo, prometia escrever todos os dias.

A cada nova noite, e durante três semanas, Kafka redige a carta que lê no dia seguinte no parque Steglitz – a menina ainda não sabe ler. Ao longo das cartas, a boneca cresce, vai à escola, encontra uma porção de pessoas. É bem verdade que continua a amar a menina – explica a boneca –, mas agora está ocupada demais para pensar em retomar sua vida com ela.

Enquanto vai redigindo as cartas, Kafka medita sobre o final que, um dia, forçosamente, terá de inventar. E então ele acha a saída: a boneca encontra um rapaz. Franz descreve o pretendente, o noivado e a casa que escolheram para morar depois do casamento. Segundo Dora (as cartas de Franz se perderam), a boneca conclui assim a última carta: “Você logo entenderá que não temos como nos ver no futuro.”

E conclui: “Franz resolvera o pequeno conflito no coração da criança graças à arte, graças ao meio mais eficaz de que dispunha para restabelecer alguma ordem no mundo.”

Ah, esses escritores e suas bonecas.

* * *

O texto completo de Marcel Cohen:
Deus e o diabo estão nos detalhes: notas sobre a importância do desimportante

Um texto meu sobre Kafka:
Kafka, um autor traído

2 respostas em “Escritores e bonecas”

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