Dom Casmurro, romance publicado por Machado de Assis em 1899, conta a história de um adultério. Ou não.
Capitu é casada com Bentinho, cujo melhor amigo é Escobar. Um belo dia, Escobar morre e, poucos meses depois, Capitu dá a luz a um filho que é a cara do falecido. E aí?
Durante mais de meio século, leu-se como um romance de adultério. Nunca houve dúvida quanto à infidelidade da sem-vergonha Capitu. Somente em 1960, em , Helen Caldwell levantou publicamente a questão: mas será que era? (Não por acaso, a primeira pessoa a levantar essa possibilidade era não somente mulher, mas uma estrangeira.)
Trinta anos depois, quando li Dom Casmurro no Ensino Médio, nossa professora fez o tradicional julgamento de Capitu. A maior parte da turma a considerava inocente (inclusive a professora) e um grupo menor defendia sua culpa. Sobrei eu pra ser juiz, o único que não tinha opinião formada.
Meu papel era somente julgar qual dos lados tinha levantado mais fatos e argumentos para provar sua opinião. As discussões foram acaloradas. Quase perdi amigas. Houve gente me acusando nos corredores de “anti-Capitu (ou pró-Capitu) desde criancinha”. Foi fascinante ver tantas pessoas adolescentes com tantas leituras tão divergentes e tão apaixonadas do mesmo livro.
Anos e anos depois, já no doutorado, lemos Dom Casmurro de novo. Dessa vez, o tom foi outro. Ninguém achou que Capitu era uma adúltera — imagina! De um modo bem real, a discussão em minha escola foi bem mais rica: mais gente participou, mais pontos de vista diferentes foram levantados, ninguém teve medo de dizer que Capitu era uma adúltera, o falocentrismo da literatura canônica não foi nem mencionado.
Um comentário que se ouviu bastante no doutorado foram variações de:
“Como tanta gente pôde ler esse livro tão errado tanto tempo? É óbvio que o livro é sobre o ciume louco e obssessivo de Bentinho, não sobre uma traição (que nunca existiu) da pobre Capitu! É tão óbvia a reticência do autor quanto à traição rio de Capitu que é simplesmente impossível ler o romance como um simples livro sobre adultério!”
Pronto: o pêndulo agora girou para o outro lado. E lá fui eu ser do contra mais uma vez.
Oras, se durante sessenta anos duas gerações de pessoas leitoras viram o adultério de Capitu como auto-evidente, então é óbvio que o livro permite essa interpretação. Dizer o contrário é muita arrogância: é imputar uma cegueira imbecil às leitoras do passado. Equivale a dizer: pôxa, se não fôssemos nós, as leitoras inteligentes de hoje, o segredo de Capitu estaria tão enterrado quanto Tutankamon antes de Lorde Carnavon. Somos o máximo!
(Dalton Trevisan, autor de Capitu Sou Eu, em entrevista a FSP, 23/5/92: “Até você, cara – o enigma de Capitu? Essa, não: Capitu inocente? Começa que enigma não há: o livro, de 1900 (sic), foi publicado em vida do autor — e até sua morte, oito anos depois, um único leitor ou critico negou o adultério?”)
O lindo de Dom Casmurro é que não há saída para o enigma. Nunca vai haver resposta certa, por mais que ideólogas de ambos os lados dêem soquinhos histéricos no chão e gritem suas verdades. Cada argumento sempre corta para os dois lados.
Por exemplo, as defensoras de Capitu alegam em seu favor a reticência de Bentinho: se houvesse realmente alguma prova concreta do adultério, ele teria dito e feito fanfarra. Se não fala nada, é porque não há o que dizer.
Já as primeiras leitoras do livro talvez pensassem o mesmo que José Veríssimo, um dos principais críticos literários da época, na História da Literatura Brasileira (1915):
“Era impossível em história de um adultério levar mais longe a arte de apenas insinuar, advertir o fato sem jamais indicá-lo. Machado de Assis é, com a justa dose de sensualismo estético indispensável, um autor extremamente decente. Não por afetação de moralidade, ou por vulgar pudicícia, mas em respeito da sua arte. Bastava-lhe saber que a obscenidade, a pornografia, seriam um chamariz aos seus livros, para evitar esse baixo recurso de sucesso, ainda que a fidalguia nativa dos seus sentimentos não repulsasse tais processos.”
E então, pergunto eu, Bentinho silencia porque nunca houve adultério e não havia o que dizer, ou porque Machado é um “autor extremamente decente” e não havia porque dizer com todas as letras o que já era tão óbvio que tinha acontecido?
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Para manter as coisas em perspectiva, algumas opiniões de alguns dos primeiros críticos de Dom Casmurro, gente (sempre vale a pena lembrar) tão inteligente e observadora quanto nós, mas filhos de outra época. Primeiro, mais José Veríssimo:
“Dom Casmurro é exemplo desta sua superior faculdade de romancista, comprovada aliás em toda a sua obra. É o caso de um homem inteligente, sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que ainda menina amara, que o enfeitiçara com a sua faceirice calculada, com a sua profunda ciência congênita de dissimulação, a quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento pacato. Ela o enganara com o seu melhor amigo, também um velho amigo de infância, também um dissimulado, sem que ele jamais o percebesse ou desconfiasse.”
Augusto Meyer, Ensaios Escolhidos, c.1940:
“Capitu mente como transpira, por necessidade orgânica. (…) fêmea feita de desejo e de volúpia, de energia livre, sem desfalecimentos morais (que) não sabe o que seja o senso de culpa e do pecado.” [gente, que livro que esse homem leu?! Juro que só pode ter sido uma cópia diferente da minha!]
Barreto Filho, 1947:
“Essa infidelidade (de Capitu) excede o conflito moral que os romances exploram no adultério. O livro não tem semelhante vulgaridade. É uma falha mais radical, uma traição à infância, uma negação da poesia da vida, tanto mais dura, quanto se tem a impressão de que tinha de ser assim./…/ Infiel é a vida. Capitu é a imagem da vida.”
Por fim, um mais recente, Millor Fernandes:
Eu, porém, ao contrário dos erúditos, não tenho hipótese. Capitu deu pra Escobar. O narrador da história, Bentinho/Machado, só não coloca até o DNA de seu (do Escobar, claro) filho porque ainda não havia DNA, que atualmente está acabando com o romance “policial” e a novela passional.
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Defendo a ambiguidade. Eu não sei.
Vai ver nem o próprio Machado sabia. O romance não é nem sobre uma adúltera safada que trai um pobre burguesinho (a certeza do adultério), nem sobre um homem obcecado por ciúmes que persegue sua inocente esposa (a certeza do não-adultério).
O romance é sobre a dúvida. Se você chega em Dom Casmurro com certezas, já começou errado.
Mais interessante do que tentar adivinhar o que se passava na cabeça do autor é estudar como essas duas leituras tão óbvias e tão distintas refletem diferentes momentos da cultura brasileira.
O livro continua o mesmo há 118 anos: quem mudou fomos nós.
Uma história das leituras de Dom Casmurro é a própria história cultural do Brasil.
3 respostas em “Dom Casmurro”
[…] bem lembra o Alex Castro: até a análise de uma crítica mulher e estrangeira (Helen Caldwell), mais de 50 anos depois da […]
Ora direis ouvir estrelas! Leia o livro. Tenha certeza. Depois releia, e já começa a semear a dúvida, e na terceira repassada, a dúvida se instala com certeza. Este é o encanto supremo do livro. Sem julgamentos, sem veredicto…
Continuo a dizer – opinião sujeita a discordâncias, claro – que nem Machado de Assis sabia se Capitu era ou não adúltera. Seu barato era jogar com o ciume de Bentinho, cujo ponto de vista era a única versão a que tínhamos acesso.