Você é uma pessoa boa? Você gosta de ajudar os menos favorecidos? Você tem consciência social? Então, o filme espanhol Até a chuva, de 2010, foi feito pra você.
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O texto abaixo está repleto de spoilers. Leia por sua conta e risco. Mas tudo bem: Até a chuva não é um filme que se veja pelas reviravoltas do enredo. Aliás, vamos a ele.
Na Bolívia de inícios dos anos 2000, uma equipe de espanhóis está produzindo um filme sobre a chegada de Colombo na América. Eles são idealistas e politicamente engajados (“gente do bem, assim como nós”, pensa o espectador) e querem realizar o filme para denunciar o cruel imperialismo europeu sobre o Novo Mundo.
Mas por que na Bolívia, tão longe do Caribe, tão longe do próprio mar? Simples. Essa pergunta quem responde é o produtor do filme, o único capitalista mercenário não-idealista do grupo: na Bolívia, tudo é muito mais barato, inclusive (e mais importante) a mão-de-obra. Afinal, por que contratar uma equipe de animação digital pra criar uma multidão de índios quando, por uma merreca, você consegue de fato contratar milhares de figurantes indígenas?
Para marcar ainda mais a distinção, o diretor idealista e gênio criador do filme é interpretado por Gael Garcia Bernal, tão belo, tão fofo, tão pequenininho, tão sensível!, enquanto o produtor pragmático é interpretado por Luis Tovar, alto, careca, de sobrancelhas grossas, uma figura ó tão ameaçadora e, ao mesmo tempo, com cabelo de menos e cabelo de mais.
Lugar e época não são por acaso. A produção do filme cai de paraquedas em plena “Guerra da Água“, onde civis bolivianos entraram em conflito armado contra as autoridades do país contra aumentos abusivos nas tarifas de água, decorrentes da privatização do sistema. (Clique nos links desse parágrafo para saber mais e veja também o videozinho.)
Então, o que pode acontecer quando uma equipe de cineastas idealistas, querendo denunciar a exploração social do passado, se vê no meio de um conflito de verdade contra a exploração social do presente?
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O significado da água
No começo do filme, o bem-intencionado ator que interpreta Bartolomeu de las Casas pergunta a uma garçonete nativa o significado de algumas palavras em quéchua. Uma delas, “água”— água essa que será o motor do conflito iminente. Nesse momento, o ator que interpreta Cristóvão Colombo, chato e iconoclasta, interrompe:
“Por quanto tempo você vai se lembrar que água se diz ‘yaku’?”
Naturalmente, como tudo nesse filme, a interpelação é ao espectador:
“E você, que está aí vendo esse filme num cinema confortável, você vai se lembrar que água se diz ‘yaku’? Você vai se importar?”
No final do filme, bem na última cena, aparece de novo a palavra “yaku”, dessa vez sem tradução. Quem lembrar, lembrou.
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Minha motivação é alimentar meus filhos
Fazendo o making of do filme, a simpática e bonita assistente de produção pergunta ao índio boliviano recém-contratado o que o tinha atraído ao seu papel:
“Pode me dizer o que lhe motivou a participar do filme? O que mais gosta no seu personagem?”
O homem não era ator profissional e jamais tinha atuado. Vive em extrema pobreza e estava na fila dos figurantes quando foi “descoberto”. Naturalmente, ele nem mesmo entende a pergunta.
O filme poderia ter parado por aí, mas fez questão de soletrar. Um dos outros figurantes diz, aos risos:
“Ele só quer saber do dinheiro e nada mais!”
Até a chuva tem ocasionalmente essa mão pesada. Eu entendo. Sou professor. Alguns alunos precisam mesmo que você explique duas vezes.
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Sou a voz de Cristo no deserto dessa ilha
Ao longo do filme, são feitas inúmeras referências a um célebre discurso do frade dominicano espanhol Antonio Montesinos, supostamente a primeira vez que um espanhol erguera a voz para defender os índios das Américas. Mais tarde descobrimos até que foi esse discurso a inspirar o diretor a realizar o filme.
As palavras de Montesinos são poderosas:
Eu sou a voz de Cristo no deserto desta ilha. … Essa voz lhes diz que vocês estão todos em pecado mortal e nele vivem e morrem, pela crueldade e tirania que têm usado contra essa gente inocente. Com que direito e com que justiça mantém os índios em tão cruel e horrível escravidão? Com que autoridade travaram guerras tão detestáveis contra essas pessoas que estavam mansas e pacíficas em suas próprias terras, onde tão infinitas delas vocês consumiram com morte e estragos nunca antes vistos? … Não são eles homens? Não têm almas racionais? Não são vocês obrigados a amá-los como a si mesmos? Vocês não vêem? Não entendem? Como podem estar dormindo em sono tão profundo e letárgico?
O filme, entretanto, progressivamente mina todo o significado dessas palavras, ao repeti-las nos mais diversos contextos, nos mais diversos tons, muitas vezes jocosos e irônicos. Quando ouvimos essas palavras pela terceira ou quarta vez, seu significado já está completamente esvaziado.
Nem as mais belas e bem intencionadas palavras sobrevivem à uma prática torpe e egoísta. O que importa não é o que falamos.
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A importância da arte
Quando as atrizes indígenas se recusam a filmar uma cena onde afogariam seus próprios bebês, o diretor argumenta que foi assim que aconteceu na história e que eles precisam contar essa historia, que é muito importante para o filme.
E vem a resposta certeira:
“Existem coisas mais importantes que seu filme”.
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Uma pequena crítica estética e política
O filme contém um filme dentro do filme, sobre a conquista do Novo Mundo por Cristóvão Colombo.
No começo, acompanhamos as leituras do roteiro e os ensaios de muitas cenas. No final, entretanto, as cenas cruciais, inclusive a execução do cacique Hatuey, são mostradas como se estivéssemos em um filme de época. Ou seja, somos transportados diretamente para dentro da ação, sem “ver” que ela na verdade é um filme.
E eu, brechianamente, teria preferido que o realismo da cena tivesse sido corrompido. Que ao mesmo tempo em que víssemos Hatuey sendo queimado, víssemos também a movimentação da equipe, as câmeras em volta, a movimentação da indústria.
Ou seja, que o filme não nos transportasse nunca completamente ao século XVI, mas que se mantivesse firmemente ancorado no XXI. Que a ilusão nunca se desfizesse.
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Nós somos o que fazemos
O final é problemático.
Na primeira vez em que vi o filme, me pareceu um puta deus ex machina mão pesada, um improvável final feliz hollywoodeano, uma tremenda forçação de barra.
Quando a situação na Bolívia começa a ficar perigosa, a maioria da equipe (que passou o filme inteiro elogiando os espanhóis do passado que tinham tido a coragem de defender os índios do imperialismo espanhol) é a favor de ir embora – e já!
O diretor do filme, interpretado por Gael Garcia Bernal, retratado sempre como um bondoso idealista que teve a ideia para o filme ao ler o belo discurso de Montesinos, tenta impedir o produtor (até aquele momento a pessoa mais ambiciosa e “desalmada” do grupo) de se meter nos conflitos para salvar a vida de uma criança boliviana. Ele diz:
“Esse enfrentamento vai passar e vai se esquecer. Nosso filme vai ser pra sempre!”
Mas o produtor, para a surpresa de quem o via como o vilão ganancioso do filme, não escuta: ele abandona a própria equipe e, correndo risco de vida, se mete na zona do conflito para salvar a menina.
E eu, Alex, aqui fora do filme mas dentro da vida, me pergunto:
Quantos de nós, como os bondosos membros da equipe, admiramos os heróis do passado que desnudaram o peito na luta contra as injustiças e fazemos filmes e livros e passeatas lindas defendendo os direitos dos outros e sabemos até os nomes dos nossos porteiros (“olha como sou legal, gente!”), mas na hora H, quando os cassetetes começam a comer, não temos força moral para agir conforme nossas palavras?
Qual de nós, que falamos tão bonito por detrás dos nossos laptops, pode garantir que vai fazer a coisa certa no dia em que a vida de uma criança depender de arriscar sua própria? Pense bem.
(Sobre isso, recomendo um dos grandes romances de todos os tempos, Lord Jim, de Joseph Conrad.)
Pois bem. A equipe do filme não conseguiu. Se ausentaram, se omitiram, fugiram. Foram fracos. Antes do galo cantar, renunciaram os índios três vezes.
Já o produtor, que passou o filme inteiro só falando de dinheiro e explorando a pobreza desesperadora dos bolivianos, na hora H, não conseguiu se omitir: dá pra ver que ele tenta, com força, mas acaba admitindo que não se perdoaria se algo acontecesse com a menina.
E se mete de peito aberto na convulsão social.
Talvez o filme seja justamente sobre isso. A diferença entre o que falamos e o que fazemos. Ou, como eu já escrevi em outro texto, nós somos o que fazemos.
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O final é melhor do que parece
Na verdade, assistindo o filme pela segunda vez, as pistas da futura “conversão” do produtor vão se construindo sutilmente ao longo do filme, mas estão lá para todos verem. Nossa surpresa (ou a minha, sei lá) talvez seja fruto somente de nosso próprio cinismo.
São coisas pequenas. Depois de ser ouvido pelo intérprete do protagonista fazendo comentários preconceituosos sobre os índios, o produtor vai até sua casa pedir desculpas. (E podemos pensar: ah, deve ter sido só uma desculpa da boca pra fora! Afinal, ele precisa do ator!)
Mais tarde, quando as atrizes indígenas não querem filmar o afogamento dos bebês, é o diretor bem intencionado que se revolta e brada sobre a importância do filme, e é o produtor que, concordando com elas, manda deixar pra lá e filmar a próxima cena. (Outra vez, há uma explicação cínica: ele quer só é fazer o filme rodar!)
Quase no final, quando o intérprete do protagonista é preso logo após filmar a cena-chave do filme, graças a um acordo que o próprio produtor firmou com a polícia, ele observa tudo mortificado. Ao ver que a assistente está filmando a cena, ele derruba a câmera num gesto irritado. Em respeito pelo drama que está acontecendo ou por vergonha de sua cumplicidade? Sempre há uma explicação cínica.
Finalmente, quando o produtor larga sua equipe e arrisca a vida para salvar a menina boliviana, já não existem mais explicações cínicas: ele realmente se converteu, não consegue mais se omitir, mudou de lado.
Parece súbito, mas as pistas estavam lá o tempo todo.
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Esse filme é para você
Até a chuva não é um filme perfeito, tem inúmeros e enormes problemas, mas é um grande filme.
Henry Miller sempre dizia que seus livros preferidos eram os que tinham defeitos monumentais decorrentes de ambições monumentais: melhor e mais digno um tombo monumental da parte de um artista que tentou o Grande, que buscou o Transcendental, do que uma ideia pequena e mesquinha realizada à perfeição.
Talvez não seja um filme para qualquer um, mas é um filme para:
- Pessoas de países ricos que estudam países pobres – como meus colegas latino-americanistas nos Estados Unidos;
- Antropólogos e sociólogos que estudam pessoas em condições socioeconômicas mais baixas;
- Qualquer funcionário de ONG ou organização filantrópico-assistencialista;
- Leitores do Classe Média Sofre que leem e riem e acham que estão isentos de se tornarem o objeto do seu riso.
Enfim, a todos os bem-nascidos e bem-criados, a todos os membros da massa cheirosa e com bom coração, a todos que querem ajudar mas não sabem como.
Ajudar a quem tem menos é um pouco como ser pai. É impossível ser pai sem foder com a cabeça do seu filho. Se você não erra pra um lado, você erra para o outro. O máximo que podemos fazer é nos informar, manter nossas intenções honestas e, então, lidar com as consequências das nossas ações e estar sempre prontos para fazer o controle de danos da nossa bondade.
(Texto de 2011.)