Categorias
entrevistas

Alex Castro: Escritor e Mindfucker

Entrevista concedida a Ismar Tirelli Neto, do Portal Literal.

Há pouco mais de um mês, o escritor Alex Castro lançou o agilíssimo romance Mulher de um homem só (Os Viralata, 2009), cuja impressão foi inteiramente custeada por leitores já familiarizados com seu trabalho. “Cidadão virtual” dos mais atuantes, Alex arrebanhou um público considerável através de seu blog e de seus e-books, e foi o esquema de “compras por antecedência” por ele bolado que acabou viabilizando o salto ao impresso.

Quanto à entrevista: os trabalhos começam comigo não pescando muito bem os dados biográficos ao fim do romance. Na edição que me foi entregue, consta que o autor é um médico vegano residente no interior de São Paulo; todas as informações googladas contradizem essa bio crassamente. Alex ““ neste momento já estamos sentados num Hiper Matte desses de Botafogo ““ me mostra, então, a edição vindoura de “Mulher…”, que termina com uma minibio completamente outra, situando o autor em Santarém, onde estaria morando com o marido. Bastante alheio à etiqueta da reportagem, exclamo nosso convidado de “mindfucker”, que é a expressão em inglês para “alguém que se compraz em zoar com a tua cabeça”. É nesse momento que começamos a entrevista propriamente dita, e mais uma vez não consigo fazer com que o gravador engate de primeira (ao que Alex comenta, pacificador: “Todo gravador é ruim, só que de maneiras diferentes. Que nem o fax. Uma tecnologia que nunca ficou boa de verdade”)

Alex Castro: … esse negócio de mindfucker tem tudo a ver com pedagogia. Eu não consigo não ser professor, estou sempre tentando ensinar alguma coisa. Principalmente quando estou te sacaneando, quando estou mexendo com a sua cabeça. É sempre pra ensinar alguma coisa; nem que seja a não confiar num idiota como eu. Também tem a ver com filosofia Zen, coisa que eu gosto muito. A filosofia Zen é mestre sacaneando discípulo até o discípulo aprender a sacanear de volta. Só depois disso que o discípulo muda de fase. A grande função da literatura é mostrar que as coisas são mais complicadas do que parecem. A gente vive num mundo muito simples, só conversamos com gente de opinião parecida com a nossa ““ basicamente, todo o mundo vive uma vida em que todos os seus inputs confirmam aquilo que você já achava. A novela confirma seus valores, a namorada pensa como você: essa é a vida normal das pessoas. A gente busca quem pensa como a gente ““ o que, aliás, é um problema quando você fica meio conhecido. Você acaba convivendo muito mais com pessoas que gostam de você do que o contrário. Se eu tenho um leitor que gosta do que escrevo e quer me pagar um jantar, é muito mais provável que eu jante com ele do que com meu primo que me enche o saco. Óbvio. Mesmo eu que não sou ninguém, às vezes chego nisso: começo a conviver com tanta gente que acha que eu mando bem que passo a acreditar. Vira um círculo vicioso, onde as pessoas com quem você anda só fazem confirmar o que você já pensava. É foda, isso. Todo o mundo, de um modo ou de outro, está preso nesse esquema. E a arte serve pra quebrar isso. Qualquer arte boa serve pra mostrar que aquilo que você achava certo talvez não seja, que aquele cara que você achava equivocado talvez tenha razão ““ basicamente, que talvez as coisas não sejam assim. E talvez seja essa a grande diferença entre a “boa literatura” e a literatura thriller, policial, entretenimento, auto-ajuda. Martela-se muito nisso, mas na verdade é uma questão muito simples: um livro de literatura não é intrinsecamente melhor do que um livro policial. Eu adoro policiais, até auto-ajuda eu leio. Mas tudo tem o seu momento: é que nem comparar um tartelette com uma picanha. Mas a grande diferença da literatura que se pretende arte é o desejo de te questionar. A literatura thriller, a literatura policial, os livros de espionagem, os livros de auto-ajuda, são cheios de peripécias ““ mas essas peripécias não questionam sua visão de mundo. Pelo contrário, são formulaicas. Não é dizer que sejam ruins, mas ler Agatha Christie não muda a vida de ninguém. Você lê Christie e tem uma fórmula lá, que você conhece e gosta, e você quer voltar para aquele mundo familiar. Você quer passar mais algum tempo com o Poirot, com o Hastings, você sabe que no último capítulo vai aparecer o primo do mordomo e que ele é o bandido, e é divertido pra caralho, mas não muda sua visão de mundo. Outra coisa que eu também falo às vezes sobre literatura é que nós estamos no business de mudar a vida das pessoas. Não no sentido auto-ajudesco, porque, como já disse, auto-ajuda não muda nada. Você pega um Paulo Coelho, por exemplo, e são livros legaizinhos de ler…

(eu faço uma cara esquisita)

Alex (prosseguindo): Não são livros horríveis, tem historinha e tal; só não é Kafka. Você lê e aquilo confirma tuas idéias, teus valores, a noção que você tem do que era pra ser. A literatura que se pretende arte visa te mostrar que as coisas não são assim, que o mundo não é como parece, visa questionar um pouco teus valores e mudar, de fato, a tua vida. A questão da linguagem também tem parte nisso (de nada ser tão simples quanto parece). Por exemplo, o Biajoni, que escreveu Sexo anal (Os Viralata, 2007) e é um grande amigo meu, escreve uns livros meio pulp, com uma linguagem bem do dia-a-dia. São livros incríveis, mas eu acho que tem muito lugar-comum. E ele fala exatamente o contrário do meu livro: adora, mas acha que a Carla ““ a narradora/protagonista ““ não fala como uma “dentista”, ela usa uma linguagem diferente. E isso é parte integrante do meu projeto estético. O livro não é para ser realista. Ela já está falando mil lugares-comuns; que a linguagem não o seja também. Que a linguagem lembre a você o tempo inteiro que você está num livro. Houve um esforço de depurar da Carla tudo o que ela não falaria; todos os intelectualismos. A maioria dos neologismos, por exemplo, nasceram lugares-comuns. Eu sublinhava cada lugar-comum que ela falava e ia mudando. Por exemplo, em dado momento ela fala que “família é tudo farinha do mesmo saco”, e eu troquei por “família é esgoto do mesmo cano”. Eu fiquei um ano retorcendo a linguagem, tirando tudo o que me soava como expressão feita. É a diferença da pintura para uma foto: quando você vê um quadro pintado de uma maçã, tudo ali é encarado como escolha. Mas quando você vê uma foto de uma maçã, é muito mais fácil se distrair e atravessar a foto, vendo só o objeto. Você esquece que a maçã não está ali por ato divino; ela foi escolhida, assim como o ângulo. O fotógrafo fez praticamente todas as escolhas do pintor, só que elas não estão evidentes. A foto é documentário, e documentário é a coisa mais traiçoeira do mundo. Você esquece que a foto é uma construção humana e artística. Uma pessoa distraída pode tomar aquilo como verdade, como acontecido. O quadro não permite isso, porque ele se força como quadro, como construção. A mesma coisa vale para a linguagem literária, e é essa a discussão que eu tenho com o Biajoni. A linguagem literária, quando é muito natural, torna o livro transparente: você vê os personagens como se estivessem vivos. Eu não quero isso; eles não existem, nunca existiram, nunca vão existir. Existe o livro; uma coisa una, fechada. E cada notinha, cada biografia, tudo faz parte do livro. E se você se vê forçado a questionar até a biografia do autor, ou até o aviso de que o livro foi baseado em fatos reais, então aumentam as chances de você questionar a Carla, e de questionar a sua vida. A obra de arte exige ser vista como uma coisa só. Ela não deixa você passar batido por ela. Isso só para falar do objeto-romance, sem nem entrar na intriga. Uma coisa que eu acho sensacional é que, grande parte dos elogios que me fazem são calcados no realismo: que Carla é muito real. E eu sempre pergunto: “mas isso é bom?”. Usar isso como elogio presume que a função da literatura é ser real, e quanto melhor você recria a realidade, melhor é o livro. Mas não é isso.

I: Não faz sentido, historicamente, um livro que faz-de-conta que não é livro.

Alex: Mas a maioria dos livros é assim, hoje em dia. As pessoas ainda estão numa mentalidade século XIX, em termos de narrativa, porque a maior parte dos livros consumidos são isso: historinhas. É Harry Potter. E eu acho o máximo, li os sete livros empolgado. Mas é uma narrativazinha linear século XIX ““ Dickens poderia ter escrito Harry Potter. Então, para a maioria das pessoas que não tem muita sofisticação literária ““ e falo disso não como um problema; a literatura é linda porque cada um lê o que pode, como quer e do jeito que quer ““ mas pra quem ainda está preso num modelo século XIX de literatura, só vai existir a historinha. Outros leitores mais “pós-modernos” conseguem ir um pouco mais fundo, desconstruir mais um pouco. O que eu acho importante, do ponto de vista literário e pedagógico, é o livro se permitir ser lido de maneiras diferentes. Ulisses [de James Joyce] é legal, mas é ilegível como historinha. Se você só quiser saber como foi o dia do Bloom, não vai encontrar isso lá. Para um livro ser mais acessível, e atingir mais pessoas, ele deve permitir uma leitura sem sofisticação. Um leitor que quer uma historinha com começo, meio e fim, ele vai passar pelo livro sem nem perceber que não viu alguma coisa; ele não vai se achar burro. É chato ler um livro mais esperto que você. Eu não quero que meu livro seja mais esperto que ninguém. Se você quiser uma historinha de triângulo amoroso, ela está lá no meu livro, e quase todo mundo vai ler assim mesmo. É imprescindível para mim que não seja só isso. Assim, o livro oferece mais a quem quer mais, a quem consegue ver mais. Nesse ponto, uma amiga minha falou que o Mulher… é um romance do não-dito, a história de verdade deve ser colhida pelas bordas. Mas voltando: a literatura de entretenimento visa a entreter, sem necessariamente mudar os teus valores. Mas num livro como o meu ““ que se pretende arte ““ a primeira coisa que se deve entender é que a ficção é mentira. É mentira o tempo todo. Mentira, mentira, mentira. E eu sou um mentiroso profissional. Não vou ser pego falando a verdade, e por questão de método, de princípio. Eu quero que o leitor veja que não se pode confiar na ficção. A ficção te livra da barreira do real, então você pode se concentrar na mensagem de modo mais puro ““ você não precisa ficar se perguntando se aquilo aconteceu de fato, nem como. Você pode se dar ao luxo de não questionar os fatos porque sabe que os fatos são mentirosos ““ você pode se concentrar na mensagem. Aquele negócio, cara: a Bíblia é meu livro preferido, mas pra mim é pura ficção. E não interessa. Aquela ficção da Bíblia passa mil mensagens geniais, mesmo pra quem é ateu como eu. Jesus é um puta personagem; Paulo é quem fode com Jesus. Aliás, o Novo Testamento é ridículo. Metade é Jesus sendo incrível e a outra é Paulo desmentindo tudo o que você acabou de ler, cara! O Paulo reinterpreta tudo!

I: Mas taí, a questão da ficção como algo muito pouco confiável por natureza. Entra o Paulo, e você tem toda uma outra versão dos fatos.

Alex: Bom, o Novo Testamento é o quê? Você tem os quatro evangelhos e os Atos dos Apóstolos. Esquece “verdade”. Esses 5 livros… como literatura, são sensacionais. Tem sangue, morte, sexo, é muito legal. Mas aí depois, entra o Paulo reinterpretando tudo aquilo com as cartas. O Paulo falava de casamento e família, mas Jesus mandava todo mundo largar tudo, não casar, mandar a mãe à merda (Jesus era super cavalo com Maria). É incrível. É uma aula de crítica literária. Você tem um livro foda, e depois do livro, você tem 20 apêndices em que um crítico literário de MÁ-FE reinterpreta aquilo tudo do avesso. Aí, no final, chega o Apocalipse e fica genial de novo. Mas voltando ao Mulher de um homem só, esses avisos estão presentes no livro, em parte, para fazer com que o leitor comece a questionar sua própria expectativa desde o início: inclusive, a expectativa de veracidade no que tange à biografia do autor. A biografia do autor é irrelevante. Cada edição do meu livro leva uma biografia diferente, e o livro é o mesmo. A mensagem do livro ““ se existe alguma ““ é a mesma; a qualidade do livro ““ se ela existe ““ é a mesma; então, foda-se se o autor é gay, de Santarém, negro, branco, casado. Eu tenho até feito dedicatórias apócrifas, inventando histórias para cada leitor. Por exemplo, “Ao Ismar, meu querido amigo, nunca esqueço aquela nossa virada no vôlei contra seus primos em Maricá. Foi sensacional! Abraço, Alex”. Não só é engraçado ““ e me manteve são durante a noite de autógrafos, porque foram umas duzentas dedicatórias ““ como mostra que é um livro de ficção. Nada é pra ser de verdade. E daí que não é verdade? Até a dedicatória é falsa. Tudo é falso.

I: Você fala em “História do livro” [pósfacio de Mulher de um homem só] que brincou alguns anos com a idéia de narrar a história ou pelo Murilo, personagem inspirado em você mesmo, ou pela Júlia, personagem inspirada por uma amiga sua muito próxima; mas acabou optando pela Carla como narradora porque os outros dois personagens já lhe eram bem próximos. A ficção é, de fato, “pra gente ser outras pessoas”?

Alex: Bom, essa é a graça. Eu sou psicanalisado…

I: Quanto tempo?

Alex: Nove anos.

I: Que delícia.

Alex: Recebi alta do Collor, em 90, desde então não voltei mais. Mas como eu dizia, eu sou bem tranqüilo com o que eu sou. Eu sou bem resolvido, sei o que eu quero. Eu atormento os outros. Mas não sinto necessidade de me retrabalhar na ficção. O blog é o espaço do Alex cidadão ““ mesmo sendo um pouco ficcional. Mas é lá que eu trato de mim mesmo. É uma escrita fácil, simples, rápida: uma escrita de momento. Em ficção, a graça ““ pra mim ““ é ser outra pessoa, senão não faz muito sentido. Via de regra, muita gente anda fazendo livro sobre si mesmo. Eu até acho possível que o leitor tenha interesse na minha vida ““ aliás, no blog, eu fico chocado com o quanto as pessoas querem saber da minha vida ““ mas eu não tenho. Se eu fosse escrever um livro sobre mim, eu certamente perderia o tesão no meio do caminho. Eu me conheço. Eu já estou razoavelmente tranqüilo com o que eu sou.

I: Isso deve irritar as pessoas um bocado.

Alex: Bastante, é insuportável. Mas é divertido, também. As pessoas levam a minha vida no pessoal. Mas voltando à ficção, ao passo que eu conhecia mais ou menos o Murilo e a Júlia, havia lá uma mulher que eu não conhecia. A Carla não é como ninguém que eu conheço. Ela foi criada. E esse processo é o mais legal: ir conhecendo a personagem aos poucos, compor uma voz, descobrir o tipo de reação que ela teria. Todo autor é narcisista, mas o meu narcisismo é um pouco diferente ““ eu estou no romance, um pouco no Murilo e um pouco na Júlia, mas esse olhar sobre mim é externo; é a Carla, que sacaneia mil coisas minhas que estão no Murilo e na Júlia. Então, é também um exercício em tentar imaginar como as pessoas me vêem. Ser outra pessoa, e ao mesmo tempo, entender como me vêem. O narcisismo autoral entra nesse momento. Mas o livro não é sobre mim; é sobre ela. Só que em algum momento ela olha pra mim e me dá umas cutucadas.

I: O que acho incrível é que o discurso da Carla é violento, mas, ao mesmo tempo, totalmente senso comum. É um discurso de quem está completamente envolvido com as prisões que você ataca no seu blog: a heterossexualidade, a monogamia, a religião.

Alex: Sim, mas só me interessa porque não é meu. As pessoas que se conformam me fascinam; eu nunca consegui ser assim. Então, me interessa saber quem é essa pessoa, como é que alguém se torna isso. Se eu fosse escrever a história da minha vida, ia ficar mais ou menos como Trópico de Capricórnio [romance autobiográfico de Henry Miller, seqüência de Trópico de Câncer. Publicado em 1939, há uma edição recente no Brasil da José Olympio, de 2008], só que não tão bom. Quem quer ouvir mais um autor pseudomarginal, pobre, que fuma, que bebe, que transa… entendeu? É minha vida, mas não acho que seja boa literatura.

I: Você nota uma progressão na sua literatura, então, no sentido de estar cada vez mais externado de si mesmo, cada vez menos autobiográfico?

Alex: O blog me permitiu um espaço para falar da minha vida, e por causa disso, agora posso explorar coisas muito mais legais na minha ficção. Voltando ao senso comum da Carla ““ eu estou fazendo uma outra história agora protagonizada por uma mulher bem senso comum, e todas as pessoas para as quais mostrei o conto a odiaram. Mas a Carla, não. Há um grupo de leitores que incorpora totalmente o discurso da narradora.

I: “Compram sem nenhum questionamento”.

Alex: Sim, e acham que o romance é isso. Mas o romance foi feito para poder ser lido em camadas. O leitor tira o que quer, e isso é marca de uma literatura que se pretende arte. Um livro da Christie só pode ser lido de um jeito; não há três leituras possíveis de O assassinato no Expresso Oriente [de Agatha Christie, lançado em 1934]. O meu livro pode ser lido em vários níveis, dependendo do grau de sofisticação, de saco, de tempo. Uma leitura possível é essa: uma mulher fala a respeito duma cretina que invade seu casamento. Mas muita gente vai pro lado oposto, e pensa que Carla é uma mulher louca, obsessiva, doentiamente ciumenta. São pessoas que gostam de desconstruir a linguagem, e vão buscando os buracos no discurso. Pra mim, é muito interessante lidar com o discurso do senso comum, pelo fato de que a Carla nunca tem nada de muito concreto a dizer contra a personagem da Júlia: ela é só uma artistinha maluquete, como todo artista. Quando você pára e pensa, as críticas de Carla em relação à Júlia são todas muito vazias, não são nada de sério. O que eu tentei fazer foi um romance aberto para todas essas possibilidades de leitura.

I: Eu estou me reportando muito ao “História do livro”, porque eu achei muito interessante, além dum puta golpe de teatro, isso de terminar um livro com um histórico extremamente minucioso da feitura do mesmo. O que você pretende com essa abertura toda, e com essa tentativa tão sôfrega de diálogo com o leitor, se você trata toda a ficção como mentira… ? Não como mentira, bom…

Alex: Como ficção mesmo. Que é o nome chique pra mentira.

I: Eh, bom.

Alex: Sempre me chamam de fofoqueiro, e eu respondo: “eu prefiro o termo técnico: jornalista”.

(risos)

Alex: Bom, pra começar, tem dois escritores ““ o Stephen King e o Isaac Asimov ““ que eu amo e que faziam isso. Foi algo importante na minha formação porque permitia uma visão por dentro do método. Nos livros desses autores, quase sempre você encontra um prefácio, ou posfácio, ou apêndice, alguma coisa em que eles falam sobre como fizeram o livro, contando mil histórias ótimas ““ não só sobre a criação da história, mas sobre como a história se inseria em sua vida pessoal. Pra mim, como adolescente que queria escrever, isso era muito importante; porque me dava um insight na vida “real” das pessoas. Ou pelo menos na vida que elas queriam passar para os leitores; eu não acredito em nada, mas também não desacredito. Acho isso importante. Você nunca vai me ouvir dizendo “isso é mentira”, mas isso não significa que eu esteja comprando. Eu escuto, pronto. Acho que a língua perde por não ter um verbo que signifique “nem acreditar, nem duvidar”. Eu ouço, eu registro, tá bom. A outra coisa que aconteceu ““ um efeito bem legal, causado pelo blog ““ foi uma certa proximidade. Eu me senti próximo dos leitores. A conversa no final do livro é quase como um segredo entre o autor e o leitor. O Asimov ““ bom, eu sou um cara frio, acho meio ridículo quando as pessoas se comovem quando morre uma celebridade que elas nem conheciam ““, mas até hoje, a morte que eu mais senti de alguém que eu não conhecia foi a do Asimov. Porque eu achava que o conhecia. Só quando ele morreu que eu percebi a enormidade da minha relação pessoal com o Asimov, construída ao longo de 10 anos lendo uma obra repleta de avisos autobiográficos. Isso foi importante, acho legal passar adiante. E o blog reforça isso. Mas é algo mais meu; tenho vários amigos que têm blogs muito famosos mas que não têm isso. Eu sofro isso porque meu blog é confessional. Então as pessoas acham que me conhecem. No blog, a verdade é editada, para não causar mortes, suicídios e assassinatos (o meu, principalmente). E as pessoas acham que me conhecem muito bem, que têm uma relação íntima e profunda comigo. E isso é ótimo. Não fosse por isso, meu livro não teria tido o sucesso que teve. Mas tem a contraparte, eu tenho que lidar com muito maluco. Sabe, eu me achava próximo do Asimov, mas se eu encontrasse com ele na rua, não me comportaria como se fôssemos amigos de infância. Algumas pessoas, só pela leitura do blog, passam a esperar que eu me comporte como amigo delas também, e começam a fazer cobranças do tipo “você nunca mais falou comigo”. Não é que eu não goste dessa pessoa, mas eu não a conheço, não tenho assunto. Se a pessoa quiser falar comigo, não tem problema. Meu telefone está no blog. Anteontem me ligou uma leitora de Salvador…

I: Meu Deus…

Alex: Mas é maravilhoso, isso! Ligou onze da noite, pra dizer que o livro chegou e ela leu correndo. Falou do envelope acolchoado, do marcador de página exclusivo. Ela se sentiu muito próxima, muito incluída. Mas essa coisa de fazer exigências que eu não posso cumprir, isso acontece com gente perturbada, que não consegue fazer esse jump; pessoas que não percebem que me conhecem mas eu não as conheço. Em suma, o objetivo desse posfácio é não só iluminar o método (isso eu falo como estudante de literatura), mas também porque o livro é um case de marketing interessante. Pode ser que outras pessoas queiram fazer igual, por isso é interessante explanar. Mas o que mais me interessa é abrir o diálogo, para que o leitor se sinta próximo a mim. Mostrar o método e criar uma ponte de diálogo com o leitor, para ele entender como funciona a fábrica de salsicha; e, de certo modo, para o leitor se achar mais íntimo, se lembrar mais de mim, e amanhã comprar outro livro. É todo um processo de criação de nome, criação de marca. Mesmo que o cara escute falar de você hoje e não compre, amanhã vai que ele se lembra? A prima leu, recomendou, por aí vai. É um processo lento, dura a vida inteira. Mas o que os leitores me falam um bocado, e que eu acho fascinante, é que eles me acham especial. Ora, ninguém se acha especial. Tem momentos que eu me acho foda, outros que eu me acho um merda ““ mas eu nunca me achei especial. Elas falam que eu me tornei especial para elas, e o livro também, porque elas já me acompanham, já me conheciam do blog. E todo esse método ““ de vender “ações” do livro pela internet, num esquema de mecenato ““ é uma coisa única, e elas queriam fazer parte desse único, queriam poder dizer “eu ajudei, eu comprei antes”. Eu fiquei muito fascinado, porque eu achava que as pessoas iriam me ajudar, pensando “bom, eu leio o Alex de graça todo dia, ele está lançando livro, posso descer dez reais e cooperar”. E outra coisa: se a pessoa vai comprar o livro de qualquer jeito, compra logo antes, para que eu não precise tirar do bolso um dinheiro que não tenho, senão eu fico com um problema de liquidez sério. Sabe como é a nossa vida, nunca tem dinheiro. Nunca tem mil reais dando sopa no banco.

I: Nunca tem 10 reais.

(risos)

Alex: Então, tem isso. O apelo da conveniência, e a ajuda dos amigos. Não achei que fosse ter esse efeito. Eu não previ essa vontade que as pessoas tiveram de “fazer parte”. Como disse, nunca me imaginei um sujeito especial, não pensava que as pessoas achassem minha vida tão legal a ponto de querer fazer parte dela, pagar por uma ação desse empreendimento. Foi muito legal, talvez a coisa que mais me surpreendeu. As pessoas queriam se sentir incluídas no processo.

I: Bom, todo o mundo que te entrevista fala muito sobre sua relação com a internet. Eu não quero falar sobre isso.

Alex: Graças a Deus.

I (falando sobre isso): Mas no seu blog você parece exercitar uma verve mais polêmica, e tal.

Alex: Cara, pelo contrário. Eu nunca entro em polêmica. As pessoas falam besteira no blog e eu ignoro. Acho muito chato esse negócio de debater, nunca leva a lugar nenhum. Eu dou a minha opinião e pronto. Aí os leitores ficam se pegando, falando mil bobagens. O máximo que eu faço é voltar para fazer um esclarecimento. Mas eu nunca respondo, nunca contra-argumento, não leva a lugar nenhum.

I: E a sua atuação no meio acadêmico?

Alex: Acho o meio acadêmico muito chato. Não falo pra ninguém que faço doutorado.

I: Eu não vou editar isso. Compõe o personagem.

Alex: Pqp. Todo doutorando que eu conheço, via de regra, é mala. Eu só sou doutorando porque foi a única maneira que consegui de ganhar dinheiro com literatura. Ser pago para ler e escrever sobre literatura. Mas não acho que seja isso tudo. E como autor, é complicado você passar a vida escrevendo sobre o livro dos outros. Cada vez que escrevo sobre o livro de alguém, eu me sinto meio loser de não estar usando esse tempo para escrever o meu. Então, por um lado, é muito bom viver de literatura ““ olha que lindo, eu sou pago para ler romances, mandar voluntários ler romances, chegar de manhã cedo e discutir com esses voluntários, e se me der na telha, escrever alguma coisa sobre o romance. É bem gostoso pra mim, apesar de mil coisas pentelhas, como em qualquer trabalho. Agora o doutorado está acabando e eu não sei bem o que fazer. Não sei se sigo carreira acadêmica, se fico lá nos EUA, se volto para o Brasil definitivamente.

I: Mas a gente pode esperar novos livros, não?

Alex: Então, eu estou escrevendo um livro chamado Empregadas e escravos, fruto direto dessa minha ida para os EUA: vários episódios coordenados lidando com as nossas relações sociais escrotas. Outro que quero fazer se chama Rio: Cidade aberta. Que é sobre o estado do Rio ““ se tem salvação, se é melhor sair, se é melhor ficar. É uma coisa que todo carioca pensa muito. Quem vai, quem foi. Minha namorada tem um ditado ótimo, por exemplo: “São Paulo é como a morte. Um dia chega”. Todo carioca, em algum momento, arranja emprego em São Paulo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *