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A paixão segundo A.C.

Tenho usado sempre as escadas do meu prédio. Faz bem pra saúde. Me sinto melhor. Mais ativo, mais leve, mais alegre.

Uma semana atrás, apareceu uma barata morta entre o segundo e o terceiro andar. Tomei cuidado para não pisar nela, coitadinha.

No dia seguinte, a barata ainda estava lá. No outro dia, também. Comecei a ficar irritado:

“Mas será que não limpam esse prédio? Tenho que falar com o porteiro!”

Mais um dia e me irritei de novo:

“Caramba, não é coincidência, ninguém cuida mesmo dessas escadas! Hoje eu reclamo com o síndico!”

Com o passar dos dias, a barata sempre lá, fui sentindo emoções cada vez piores em relação aos funcionários do prédio. Raiva dos porteiros, ódio da equipe de limpeza, desprezo por todos os preguiçosos do Brasil que não sabem fazer seu trabalho direito:

“Nos Estados Unidos, isso não estaria acontecendo!”

Daqui a pouco, o ódio, a raiva, o desprezo começaram a ser direcionados em minha própria direção:

“Caralho, Alex, você é muito burro! Tá há uma semana pra falar com o porteiro e nunca fala! Lembra da barata morta quando vê mas depois esquece! Parece um peixinho dourado, capaz só de registrar o que está na frente dos olhos!”

E, naturalmente, eu não era o único culpado, mas todos os outros como eu:

“É foda isso. Brasileiro não sabe reclamar, não sabe exigir seus direitos, é por isso que esse país tá assim!”

Um dia, o Oliver, meu cachorro, decidiu cheirar a barata morta e eu puxei tão forte que ele quase caiu da escada:

“Idiota! Não vê que essa barata tá aí há dias?! Por que você tem que cheirar tudo de podre?!”

A caminhada pela escada, teoricamente para melhorar minha saúde, para me fazer sentir bem, tinha se tornado uma fonte de estresse.

Já estragava o meu dia logo de cara.

* * *

A história poderia continuar ad infinitum.

O próximo passo seria reclamar com o porteiro mas, depois de tanto tempo de emoções reprimidas, a reclamação quase certamente acabaria em escândalo, descompasso, rudeza. Talvez o porteiro se ofendesse, engolisse calado o insulto mas passasse a me boicotar no prédio, esconder minhas cartas, sonegar recados. Talvez o porteiro levantasse a voz no mesmo tom, escalasse o confronto, e acabasse despedido, um pai de família sem sustento. Talvez a questão terminasse envolvendo o síndico, o administrador, outros porteiros, a dona do imóvel. Talvez deflagrasse a terceira guerra mundial. Não é inconcebível.

Nada disso aconteceu.

No quarto ou quinto dia, quando vi que ninguém catava a falecida, eu voltei em casa, peguei uma folha de papel toalha e dei à barata morta um funeral apropriado.

* * *

Assim que escrevi esse texto, eu o mostrei à Sonia, minha anfitriã nessa casa e nesse prédio. No dia seguinte, ela veio falar comigo:

“Alex, tem uma barata morta na escada entre o segundo e terceiro andar.”

“Eu sei, Sonia.”

“Você não catou?”

“Não, Sonia.”

“Por quê?”

“Porque assim como eu não me irritei com a barata morta ao ponto de querer ir reclamar com o porteiro, eu também não me irritei com a barata morta ao ponto de catá-la do chão. Ela não me incomoda em nada e ainda me serviu de ponto de partida para essa crônica. A barata morta é real, todo o resto é invenção. Inclusive esse diálogo, que nunca aconteceu.”

“Você é um hóspede difícil, Alex.”

* * *

Originalmente publicado na Revista Pequena Morte, edição 23, setembro de 2011.

4 respostas em “A paixão segundo A.C.”

Brasileiro é tudo folgado mesmo, faz de conta que não acha ruim pra não catar a barata e ainda passa um tempão pensando sobre o assunto em vez de ir lá e resolver o problema, fingindo que não se importa. É o paternalismo do governo federal chegando até as baratas. MALDITA EDUCAÇÃO PÚBLICA COMUNISTA!!!

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