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A literatura, a internet e um papo com Alex Castro

Entrevista concedida a Luis Eduardo Matta, no Digestivo Cultural, de 20 de março de 2007.

A internet, queiramos ou não, é uma realidade para a literatura, sobretudo a fértil literatura que vem surgindo da pena (ou seria do teclado?), de jovens escritores, muitos dos quais talentosos e com bom domínio da escrita e que, por razões variadas, não se aventuraram pelo mercado editorial tradicional.

Resistente no começo, o establishment cultural começa a reconhecer o potencial da internet e a levar em conta os trabalhos nela publicados. Recentemente, o prestigiado suplemento literário “Prosa & Verso” do jornal O Globo, começou a dedicar espaço para resenhar livros publicados exclusivamente na Web. Um dos primeiros autores a ser agraciado com essa iniciativa foi Alex Castro, titular do popular blog Liberal ““ Libertário ““ Libertino e escritor carioca atualmente residindo nos Estados Unidos, que teve o seu livro de contos Onde perdemos tudo resenhado pelo renomado crítico e escritor Miguel Sanches Neto, na edição de 11 de novembro passado. Alex Castro é, também, autor do romance Mulher de um homem só, que já foi baixado trinta mil vezes, durante os três anos em que esteve disponível gratuitamente na internet. Uma marca, aliás, que muitos escritores com livros publicados não consegue atingir.

Se a literatura e a internet farão um casamento duradouro ““ ou até mesmo eterno ““ ou se não passa de uma fase, isso ainda é uma incógnita. Eu, pessoalmente, tenho sérias dúvidas sobre se o livro de papel tal qual conhecemos irá desaparecer, como muitos prevêem; o que, naturalmente, não impede que um suporte eletrônico de leitura se consolide e ambos possam conviver sem atritos.

Na entrevista abaixo, Alex Castro nos fala sobre a sua experiência literária na internet, sua obra e sua visão sobre a literatura contemporânea, aproveitando para contar um pouco sobre a sua vida, o que poderá surpreender vários dos leitores do seu blog e, até mesmo, da sua literatura.

1. Alex, você escreveu um romance Mulher de um homem só e, agora, aventurou-se, também, pelos contos, com Onde perdemos tudo. Quais seriam as semelhanças entre esses dois trabalhos? Quais foram as suas intenções ao escrevê-los (se as houve)?

São dois projetos bem distintos. O livro de contos Onde perdemos tudo reúne contos unidos pelo tema comum de perda. Eu nunca gostei muito de livros de contos sem um projeto unificador. Parece que o autor simplesmente passou a limpa na gaveta.

O romance, Mulher de um homem só, desenvolve o tema de um dos contos: se é possível haver uma amizade de verdade, não-sexual, digamos, entre homem e mulher, e como inserir isso dentro do seu casamento. Em outras palavras, como conciliar sua melhor amiga e sua esposa. Mas essa é só a premissa básica, claro. Como bom romance literário, foi escrito para poder ser lido em camadas. Para quem só quiser isso, pode ser um romance sobre amizade homem-mulher. Para quem quiser, ou puder, ir mais fundo, espero que o romance ofereça muito mais.

2. Você mantém um blog muito popular na internet. A sua experiência na rede inspirou-o ou auxiliou-o na sua atividade literária? Gostaria que falasse um pouco a respeito.

Tanto Onde perdemos tudo quanto Mulher de um homem só foram escritos antes que eu ouvisse falar de blogs, quando eu mal tinha e-mail. Acho engraçado as pessoas que lêem esses livros e fazem análises complexas sobre sua linguagem web! Mas, enfim, cada leitor lê como quer, não há leitura certa.

Meu blog foi criado em função de um outro projeto, ainda em andamento, de um livro de ensaios sobre as prisões que acorrentam o pensamento do homem, como religião, monogamia, heterossexualidade, preconceito, patriotismo, ambição, medo, verdade, etc. Como são ensaios polêmicos, achei que seria interessante testá-los antes na internet para ver que tipo de recepção teriam. E, bem, é isso que ainda estou fazendo. Só mais tarde aproveitei a plataforma web para também divulgar esses outros trabalhos que já estavam prontos.

Aprendi muitíssimo com a experiência. Hoje, já acho imprescindível esse contato de um escritor com seu público que a internet permite. O escritor que não usa desse recurso está se limitando e se isolando, está se comportando como um surdo que não quer ouvir seu público.

Por outro lado, acho importante acabar com essa idéia de “escritor-blogueiro”. Antigamente, os poetas mimeografavam suas poesias e iam de bar em bar distribuindo-as, e ninguém os chamava de “poetas-mimeografeiros”. Eu distribuo meus livros em formato PDF e não sou um “escritor-pedeefeiro”. As pessoas confundem meio com mensagem. A internet é somente mais um meio, uma plataforma, que permite que a literatura seja melhor distribuída, mas ainda é a mesma literatura de sempre.

Mesmo os ensaios das prisões, que foram escritos depois de eu ter experiência com web e blogs, não têm nada a ver com a estética, agilidade, vocabulário ou concisão da internet. São ensaios longos, complexos, refletidos. Não foram escritos para serem lidos em cinco minutos, por alguém desatento, que está batendo papo no MSN e checando e-mail ao mesmo tempo. Exigem um leitor crítico e pensante.

3. Há elementos autobiográficos nos seus livros ou estes são apenas produto de uma mente criadora?

Eu acho que não há nada mais tedioso, lugar-comum e narcisista do que esses escritores cujos protagonistas são sempre o alter ego deles mesmos, esses escritores que escrevem livros para falar de si mesmos ou para exorcizar seus demônios.

Fiz isso só uma vez, no último conto de Onde perdemos tudo, que é um conto humorístico, pra quebrar um pouco o clima deprê do livro. É a história de um escritor chamado Alexandre que está pra lançar seu livro de contos Onde perdemos tudo quando descobre um conto igual em outro livro escrito cinqüenta anos antes. A grande brincadeira é mostrar, entre outras coisas, o ridículo desse negócio de escrever sobre escritores escrevendo sobre escritores. Jurei que nunca mais faço isso, a não ser que tenha um bom motivo.

Olha, meus demônios eu exorcizo na terapia. Eu já me conheço, não preciso usar ficção pra isso. Para mim, literatura é para criar gente, pra eu entrar na cabeça de outras pessoas, pra eu tentar criar empatia com esses personagens tão diferentes de mim, para eu tentar descobrir como essas pessoas reagiriam a determinadas situações. Se for pra falar de mim mesmo, qual é a graça? Eu já sei quem eu sou. Eu já sei o que eu faria. Melhor escrever não-ficção.

Então, não: meu trabalho, além de não ser autobiográfico, é anti-autobiográfico. Às vezes, só o fato de um personagem ser parecido comigo já me corta o tesão. Meu romance, Mulher de um homem só, ficou parado por muito tempo, porque ele deveria logicamente ser escrito do ponto de vista do Murilo ou da Júlia, que são personagens um pouco parecidos comigo. E eu nunca começava o romance porque, bem, eu já conhecia esses personagens, não tinha interesse em mergulhar neles, faltava tesão. Só quando uma amiga me sugeriu que o romance fosse narrado pela esposa é que a coisa deslanchou. Eu não sabia quem era aquela mulher, ela não tinha um grande papel na trama, ela não era nada parecida comigo. Escrevi Mulher de um homem só, então, para conhecer a Carla, para saber que tipo de pessoa ela era, para compreender por que ela fez as coisas que fez e aturou as coisas que aturou.

E, por outro lado, claro, toda literatura é autobiográfica, de certo modo, porque a matéria-prima da literatura é a vida. O escritor rouba pedaços de vida de todo mundo que ele conhece, e mais ainda de si mesmo. Então, todos os personagens de um escritor são repletos de coisinhas dele, de coisas que aconteceram com ele, de manias que ele tem ““ mas também das coisinhas e manias dos seus amigos e parentes. Então, apesar dos meus personagens terem várias experiências em comum comigo ou com pessoas que conheço, eles não são nem eu nem essas pessoas. Se não achasse que são indivíduos independentes, nem teria mostrado o texto pra ninguém, aliás.

4. Como blogueiro consagrado, como você vê o papel da internet no campo da cultura, da informação e do entretenimento hoje em dia? Você acredita que a internet vai substituir a imprensa e o suporte livro tal qual nós conhecemos hoje?

Blogueiro consagrado? Ha ha. Quando me dizem isso eu sempre lembro de uma amiga que definiu com precisão: ser um “blogueiro famoso” é como ser “miss minissaia do festival das flores de Lambari, ou seja, nada.”

Enfim, eu não sou contra ler na tela per se. Eu tenho um laptop e leio muito nele. Tem pessoas que falam que o papel sempre será superior porque podem ler num parque, encostados numa árvore, ao ar-livre, e eu acho uma certa graça porque eu faço tudo isso com meu laptop! Mas, realmente, ler romances ou poesia sempre vai ser melhor no papel.

Por outro lado, jornais, enciclopédias, atlas e dicionários já estão totalmente obsoletos, as pessoas só ainda não sabem disso. Hoje em dia, quem ainda gasta R$2 mil numa Enciclopédia Britânica? Dou aulas pra muitos jovens e nenhum deles lê jornal-papel. A geração que está virando gente hoje lê jornais na Web. Eu mesmo não entendo o que leva alguém a comprar um jornal às onze da manhã, sabendo que ele foi fechado às vezes mais de doze horas antes e está completamente desatualizado. Além de que suja as mãos, é difícil de dobrar e mata arvorezinhas. Sim, muita gente diz que gosta justamente dessa liturgia ritual do dobrar e desdobrar, das pontas dos dedos sujos, mas são porque associam o gestual ao ato de se informar, porque cresceram assim. Enquanto essas pessoas viverem, haverá jornal. O problema é que, como os jornais não estão adquirindo novos leitores, quando morrer essa geração, o jornal acaba. Do meu ponto de vista, aliás, faria mais sentido dar de graça os jornais impressos desatualizados e depois cobrar para o leitor entrar no site e ler as notícias atualizadas. Mas eu sempre vejo tudo ao contrário.

Já a literatura acho que não tem nada a temer da internet.

5. Tanto Mulher de um homem só quanto Onde perdemos tudo foram publicados na internet. Como é essa experiência de publicar unicamente no mundo virtual? Você se sente gratificado? Como é o retorno dos leitores? Como tem sido a receptividade dos livros junto aos internautas?

Lancei Onde perdemos tudo na internet em setembro de 2006, já vendi cerca de 60 cópias (o que parece pouco) mas ganhei líquidos R$700, o que é muito, ainda mais pra um livro de contos de um desconhecido. Se o livro tivesse saído por uma editora tradicional e eu ganhasse os tradicionais 5% do preço de capa, eu teria que vender mais de mil exemplares pra ganhar a mesma coisa.

Mulher de um homem só foi distribuído gratuitamente na rede por 3 anos, sendo baixado mais de 30 mil vezes. Graças ao romance e ao blog, um professor universitário brasileiro nos Estados Unidos me convidou para vir fazer doutorado em Literatura em Nova Orleans, e é onde estou agora, vivendo de bolsa. O blog rende em média R$500 por mês só em comissões do Submarino e do Google. Parece pouco, mas pra um blog que nunca achei que daria nada? O dinheiro fica acumulando na minha conta corrente no Brasil e, quando volto pra casa, vivo por conta dessa grana, o que é uma sensação bem gostosa.

Na verdade, para mim, como escritor de literatura, a internet já me deu BEM mais leitores e BEM mais dinheiro do que eu conseguiria publicando por uma editora tradicional. Só falta mesmo o reconhecimento dos meus pares ““ outros escritores, professores de letras, jornalistas culturais, os literatos em geral. Como ainda não passei por esse ritual de passagem do livro impresso, ainda não sou escritor, sou “blogueiro”. Veja bem: não estou dizendo que as uvas estão verdes. Eu quero passar pelo ritual de passagem, quero sair em livro impresso, quero ser aceito como um igual pelos membros da minha tribo, mas a internet me fez ver o verdadeiro valor disso. Tornou-se apenas um ritual, de valor simbólico. Leitores e dinheiro, que são o que há de mais concreto, eu sei que consigo mais através da internet.

6. Como você enxerga a nova literatura contemporânea brasileira? Você tem contato com escritores da chamada “nova geração” e/ou com seus livros e textos? Você percebe características comuns nos trabalhos destes jovens autores e nas suas propostas literárias? Pode-se distinguir uma voz e uma fisionomia predominantes nesta nova literatura? E como você situaria o seu trabalho dentro dela?

Pode parecer incrível para quem me vê como um blogueiro tecnófilo do século XXI, mas eu sou um homem do século XIX. É lá que eu passo a maior parte do tempo, é lá que eu trabalho, é de lá que são os livros que eu leio. Meu maior interesse intelectual, por dez anos, foram as guerras do Prata, desde a conquista final do Uruguai, em 1816, até o final da Guerra do Paraguai.

Agora, meu tema principal de pesquisa são as representações da escravidão na literatura brasileira do século XIX, com ênfase no processo de canonização literária. Será que escravidão foi abordada de forma diferente nos romances que foram consagrados e nos que foram esquecidos? Será que a abordagem de um tema polêmico e desagradável desses não influiu no processo de canonização? Ou seja, não é nem que a escravidão foi ignorada, mas que o establishment ignorou os livros que falaram dela. E qual a relação disso com o processo de formação de uma identidade nacional através da literatura? Será que, nesse momento de decidir quem éramos, queríamos ser um país caracterizado pela escravidão? A coisa também passa por questões de teoria e estética da recepção. Afinal, como esses livros, tanto canônicos quanto não-canônicos, eram lidos? Quem os lia?

Além disso, para fins de comparação, estou mergulhando fundo na literatura abolicionista cubana, um país bem parecido com o Brasil em muitas coisas mas com uma literatura completamente diferente, com romances abordando de frente os dilemas mais duros da escravidão, problematizando questões que nenhum escritor brasileiro ousou nem levantar. Por quê? Por que tamanha diferença? Por que os escritores cubanos ousaram atacar literariamente a escravidão enquanto os brasileiros fugiram da raia e fingiram que não viram o problema?

Em suma, sei que fugi da pergunta mas já volto. Eu queria dizer que meus interesses intelectuais e literários me prendem tanto ao século XIX que, sinceramente, não tenho tempo nem saco pro XX nem pro XXI. O século XX foi um século chato e sangrento. Não me atrai.

Li pouquíssimos autores contemporâneos e gosto de menos ainda. Tenho todos os Livros do Mal e acho que os Daniéis, Galera e Pellizzari, ainda vão muito longe, mas que nem começaram a dar tudo o que podem dar. O Biajoni, que escreveu o ainda não publicado Sexo Anal, um dia vai ser visto como o gênio da nossa geração. Dos meus contemporâneos, acho que os melhores são o Alexandre Soares Silva e a Daniela Abade. A Coisa Não-Deus e Crônicos são romances simplesmente sensacionais, criativos, poderosos, que fogem à estética vigente, que ousam, arriscam. Me entristece ver que ambos não são nem um pouco badalados e que estão sempre parecendo que vão parar, enquanto que semi-analfabetos vivem saindo nas primeiras páginas de cadernos literários. Outro grande livro contemporâneo foi Aqueles Cães Malditos de Arquelau, de Isaías Pessotti, que ganhou o Jabuti em 1995, publicou outros dois livros praticamente iguais ao primeiro e depois sumiu. Por fim, o grande lançamento do ano passado foi o tour-de-force da Ana Maria Gonçalves, Um Defeito de Cor, um tijolão maravilhoso de mil páginas, no melhor estilo dos romances do século XIX que eu amo, contando 80 anos de vida de uma escrava africana no Brasil. Ainda vai ser um clássico. De resto, ou não li ou não gostei.

A nossa literatura contemporânea tem uma série de cacoetes que me incomodam. Um deles é essa mania de escritor escrever livros sobre escritores malditos, bebendo, fumando e falando palavrão, andando por uma cidade suja e sem nome, mostrando como a vida é tediosa e sem sentido, como não significa nada, blá blá blá. Bukowski já fez isso. Rubem Fonseca já fez isso. Até Camus já fez isso. Essa estética do maldito é muito chata. Não que eu seja contra per se, mas que é algo que já foi feito à exaustão. Estorvo, do Chico, pra mim é emblemático desse processo, um livro que reúne todas as piores características desse “gênero”.

E o pior é que esses escritores se chamam, na maior cara dura, de malditos, rebeldes e ousados. Ora, gostando-se ou não, “maldito, rebelde e ousado” (ele iria odiar a classificação) é A Coisa Não-Deus, do Alexandre Soares Silva, um livro que é diferente de tudo o que é publicado por aí, ambientado em um céu povoado pelos grandes gênios da humanidade! Veja bem, não estou nem falando de qualidade, muita gente pra quem emprestei A Coisa Não-Deus odiou, o que só prova que meu gosto é o inverso do senso comum. Mas, independente da qualidade do produto final, não há ousadia ou rebeldia alguma em se publicar mais um romance sobre sexo, drogas e rock’n’roll, sobre narradores apáticos em uma cidade violenta, sobre narradores que são um pastiche, voluntário ou não, dos piores livros de Rubem Fonseca e João Gilberto Noll. Alguns desses romances são melhores, outros são piores, mas há pencas deles nas livrarias. Qual é a ousadia nisso? Ousadia é escrever um livro debochado ambientado no céu. Você pode até gostar do livro ou não, mas tem que reconhecer que é ousado.

Assim como ousado é o Bia, que escreveu um livro chamado Sexo Anal, sobre uma moça que adora, bem, sexo anal, e é um livro engraçado, sensível, feminino, lindo. Esse é tão ousado que já passou por tudo quanto é editora e nenhuma teve culhão de publicar. Ousado também é você, Luis, com o seu projeto maravilhoso e quixotesco de criar uma literatura de entretenimento no Brasil, porque nem sempre a gente quer um romance transcendental, às vezes a gente quer só umas perseguições e explosões, e sem um mercado editorial saudável mantido por livros de entretenimento que vendam bem, também não se tem uma boa literatura.

Então, eu acho que a fisionomia, a voz dessa nossa nova literatura é a voz dos narradores apáticos, beberrões, drogados, insensíveis, violentos, em suma, chatos, chatos de doer. Eu tento ao máximo me situar fora disso.

Mas, como eu disse, sou mesmo um filho do século XIX.

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