11 de junho de 1865, nove da manhã. A Esquadra do Império Brasileiro, ancorada no rio Paraná perto da cidade argentina de Corrientes, é surpreendida, em pleno desjejum, pela Marinha Paraguaia em peso.
Estava para começar a batalha mais decisiva do maior conflito do nosso continente.
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Estudei História Militar por achar que eram nos momentos-limites, como guerras, que os povos mais se revelavam.
Pois a Batalha de Riachuelo mostra com clareza tudo o que o brasileiro tem de melhor e pior.
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Difícil dizer quando começa a Guerra do Paraguai. Depende de que lado você está.
Explico a situação aos meus alunos do Ensino Médio do seguinte modo. Quem começa uma briga: o valentão que desenha uma linha no chão e diz que quem passar da linha, apanha, ou o outro valentão que vai e passa?
Foi mais ou menos isso que aconteceu.
O Paraguai declarou considerar a independência do Uruguai estratégica e que uma invasão brasileira do Uruguai seria uma declaração de guerra.
Dom Pedro II cagou e invadiu assim mesmo.
E então, quem começou a guerra? Você pode argumentar que o Brasil não tinha direito de invadir ninguém. Você pode argumentar que o Paraguai não tinha direito de determinar quem pode ou não ser invadido.
Imediatamente, o Paraguai fechou o rio Paraná e invadiu o Mato Grosso, o Rio Grande do Sul e a província argentina de Corrientes.
Por seis meses, enquanto os aliados organizavam suas forças, López era dono da iniciativa e fez o que quis.
Em breve, a Tríplice Aliança foi consolidada, entre Brasil, Argentina e Uruguai. Em uma das muitas ironias da guerra, López, que iniciou o conflito ostensivamente para proteger o Uruguai, acabou lutando contra o próprio Uruguai. Naturalmente, o governo uruguaio que se uniu à Aliança foi o governo instalado pelo Brasil – o governo anterior, sumariamente derrubado, apoiava López.
Os aliados combatem os paraguaios em Corrientes e no Rio Grande do Sul, enquanto a Esquadra Imperial, moderna e numerosa, vai subindo o rio, em direção ao Paraguai.
Sempre ousado, López decide apostar todas as suas fichas em uma batalha decisiva: enviar sua Marinha inteira rio abaixo para tomar a armada brasileira.
Era tudo ou nada. Se ganhasse, o Paraguai teria acesso ao mar e poderia receber armas e suprimentos para continuar a luta. Se perdesse, não teria nem navios para tentar de novo. O Paraguai estaria ilhado.
Tudo favorecia o Brasil. Ninguém na Marinha Paraguaia tinha qualquer experiência guerreira ou naval. Só havia um navio de guerra. Os outros eram mercantes convertidos, a maioria apresada do Brasil nos primeiros dias da guerra.
Já o Brasil possuía um corpo de oficiais treinados em uma Escola Naval considerada completa pelos padrões europeus; navios de última geração, tanto encouraçados quanto adaptados para combate em rio; e, talvez o mais importante, muita experiência em guerra naval.
A geração dos almirantes brasileiros dessa guerra, nascidos por volta de 1800 e sessentões, tinham combatido portugueses na Guerra de Independência (1822-23); argentinos na Guerra Cisplatina (1825-1828); cabanos, farrapos e todo tipo de rebeldes nas lagoas, mares e rios do Brasil durante as agitações da Regência; mais uma vez, argentinos durante as Guerras contra Rosas (1850-1851) e, por fim, uruguaios na guerra imediatamente anterior (1864).
Nunca houve (nem, espero, nunca haverá) uma geração tão guerreira quanto essa no Brasil.
O espanto é terem quase perdido o raio da batalha.
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Como pode uma esquadra em território inimigo, numa manhã ensolarada, ser surpreendida com as calças na mão? Só isso já era pra ter dado corte marcial pra todo mundo.
Naturalmente, o brasileiro já é meio preguiçoso e negligente. Quando ele acha que tem uma enorme superioridade material e que está invandindo o país de um bando de índio ignorante, mais ainda.
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Os paraguaios já chegaram atirando antes mesmo que as âncoras fossem levantadas. Pior, durante a noite, os paraguaios também tinham guarnecido as margens do rio com homens e canhões.
Tinham pensado em tudo, menos em uma coisa: ninguém lembrou de trazer ganchos de abordagem.
O objetivo da batalha não era destruir a esquadra imperial. De que adiantaria isso? Os aliados mandariam mais navios.
O grande objetivo da batalha era capturar a marinha brasileira e já aproveitá-la para descer o rio barbarizando.
Mas como, sem ganchos de abordagem?
Pra quem nunca viu filme de pirata, ganchos de abordagem são aqueles ganchos que seguram os navios juntos, lado a lado, para os atacantes possam pular de um barco pro outro.
(Abaixo, exemplo de uma abordagem naval.)
A esquadra paraguaia havia saído de Assunção em festa, López presente e tudo, uma operação cuidadosamente planejada. E esqueceram os ganchos!
Essa eu juro que nunca engoli. Pesquisei muito. Investiguei arquivos. Falei com experts. Mas não encontrei nenhuma outra explicação além de um fortuito esquecimento.
Algum dia escreverei um romance sobre o agente secreto imperial que se infiltrou na esquadra paraguaia, jogou os ganchos ao rio e ganhou a guerra.
Pois ganhou mesmo.
Os navios paraguaios passaram várias vezes ao lado dos brasileiros e tudo o que podiam fazer era atirar com munição de pequeno calibre. Um ou outro soldado conseguia pular para dentro dos navios brasileiros, mas não fazia muito estrago.
Com os ganchos, a abordagem teria sido imediata. A batalha não duraria nem meia hora.
Se foi mesmo só esquecimento, então brasileiro é um bicho muito sortudo.
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Com os ganchos, a batalha teria sido paraguaia, com certeza. Mas, sem os ganchos, ela também não estava nem um pouco decidida.
Pega de surpresa, entre dois fogos, a esquadra brasileira manobrou mal. Em mais uma mostra de incompetência ou negligência, nos primeiros momentos de reação caótica, vários navios brasileiros simplesmente encalharam nos bancos de areia.
Ora, uma esquadra navegando em um rio inimigo tem que ter práticos que conheçam bem as águas.
Imediatamente, os navios encalhados viraram alvos tanto das baterias em terra, como dos navios paraguaios. Na falta dos fatídicos ganchos, os paraguaios tinham que vir nadando das margens, ou pulavam dos navios em movimento, para abordar os encalhados.
Um dos meus antepassados era tenente em um desses navios. Vocês conseguem se imaginar no passadiço inclinado de um navio encalhado, lutando de espada em punho, o dia todo, de nove às cinco, contra um número interminável e incansável de inimigos tentando tomar o seu navio?
Brasileiro é um bicho arretado: apesar da extrema exaustão física das tripulações, nenhum dos navios brasileiros encalhados foi tomado. Nem perdido.
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Por fim, mesmo com tanta negligência, incompetência e bravura, Riachuelo foi ganha no jeitinho, na malandragem. E quer coisa mais característica do que nossa maior batalha brasileira ter sido decidida na improvisação?
O almirante no comando da esquadra, Barroso, português de nascimento mas, claramente, brasileiro de coração, viu que as coisas não iam nada bem e teve um estalo genial: ressuscitou, fora do nada, uma tática naval em desuso há quase 400 anos, que nem era mais ensinada ou estudada.
Nas guerras navais da antiguidade, usava-se flechas para diminuir o número de soldados ou remadores a bordo, mas o único modo de realmente afundar um inimigo era por abalroamento. Ou seja, um navio enfiava sua proa (seu bico) a toda velocidade contra o costado (o lado) do navio inimigo, literalmente cortando-o ao meio.
As batalhas navais eram verdadeiros números de dança: centenas de navios tentando se colocar na melhor posição para abalroar alguém, ao mesmo tempo em que tentavam evitar de ser abalroados.
O abalroamento, entretanto, não era usado desde Lepanto, em 1570, onde Cervantes perdeu um braço e os turcos foram expulsos do Mediterrâneo. A razão era simples: com o advento dos grandes canhões, era possível (e recomendável!) afundar navios inimigos de longe. Ninguém mais chegava perto o suficiente do inimigo para sequer pensar em abalroamento.
(Na imagem abaixo, um abalroamento durante a Batalha Naval de Salamina, entre atenienses e persas, em 480 aEC.)
Qualquer um sabe seguir o manual. Gênio é quem faz associações inesperadas no momento de maior necessidade.
Barroso era um lobo do mar à moda antiga. Nunca tinha nem cursado Escola Naval. Aprendeu seu ofício combatendo no mar durante 50 anos. Era péssimo com burocracias, políticas, frescuras e papeladas.
Um oficial responsável, que seguisse procedimentos à risca, jamais teria sido pego assim, com as calças na mão em território inimigo.
Por outro lado, esse oficial responsável e certinho também jamais teria conseguido, na hora de maior necessidade, puxar da cartola o abalroamento.
Finalmente, o oficial cuidadoso nunca teria se metido na sinuca em que Barroso se meteu.
Em suma, nada poderia ser mais brasileiro do que o final de Riachuelo.
Antes mesmo que os paraguaios se dessem conta do que estava acontecendo, o Amazonas, capitânea de Barroso, afundou rapidamente os três principais navios inimigos. Sabendo que seriam os próximos, os outros fugiram rio acima. Em poucos minutos, tudo estava encerrado.
A esquadra brasileira preferiu não persegui-los: foi lamber suas feridas e desencalhar seus navios.
Era o fim da tarde de 11 de junho de 1865.
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Barroso merecia uma corte-marcial, mas ninguém pune o herói da maior batalha naval da história nacional.
Circularam boatos de que ele se escondera no banheiro durante o grosso da ação e que a idéia do abalroamento e a condução do navio tinham ficado a cargo do prático. Mas não há prova alguma disso.
Barroso participou de dezenas de batalhas, algumas mais desesperadoras e perigosas, embora nenhuma mais decisiva, que Riachuelo. Não há razão para supor, ainda mais sem evidências, que depois de 50 anos de combates ele teria entrado em pânico logo nesse momento.
Os poucos navios paraguaios que sobraram nunca mais enfrentaram a esquadra brasileira. Subindo o rio, as únicas ameaças ao avanço aliado eram as fortalezas fluviais como Humaitá e Curupaiti.
Em Riachuelo, López perdeu algo muito mais importante do que o acesso ao mar e o controle do rio: perdeu a iniciativa.
O Exército Paraguaio no Rio Grande do Sul se rendeu ao Imperador em Uruguaiana, e os paraguaios no Mato Grosso voltaram para defender a pátria. Depois de Riachuelo, seriam os aliados a ditar o ritmo das operações. Dali em diante, a guerra seria travada no próprio Paraguai.
Vários fatores fizeram com que a guerra ainda durasse cinco anos: os aliados foram excessivamente tímidos enquanto os paraguaios, excessivamente bravos e Dom Pedro não abriu mão da cabeça de López enquanto López não abriu mão da Presidência.
Mas era favam contadas.
Depois de Riachuelo, o Paraguai não tinha mais como ganhar. A única pergunta era quando perderia.
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Para quem quiser saber mais, recomendo Maldita Guerra, de Francisco Doratioto, melhor livro brasileiro sobre a Guerra do Paraguai.
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Originalmente publicado a 11 de junho de 2004, em meu velho blog.