Categorias
entrevistas

“é tudo mentira”, uma entrevista

a melhor entrevista que já dei. para os fofoqueiros que querem saber tudo da minha vida. para quem quer saber algumas das minhas ideias sobre isso e sobre aqui.

talvez minha melhor entrevista.

concedida a felipe nascimento, do blog voo subterrâneo.

* * *

como disse krishnamurti, filósofo indiano do século passado, não é sinal de saúde estar adaptado a uma sociedade doente. mas, para os deslocados, as pessoas que não encontram eco dentro dos valores estabelecidos nas esferas da família, religião, sexualidade, trabalho e tantas outras, nem sempre é fácil sentir-se saudável tendo ideias e comportamentos respeitados por poucos. entretanto, há quem trabalhe para tentar desconstruir as verdades estabelecidas, questionar os valores sociais cristalizadas, dialogar sobre outras formas de convívio e comportamento. são esses os interlocutores das “ovelhas negras”, e entre eles está alex castro.

escritor, alexandre moraes de castro e silva é carioca, nascido em 1974. em seus textos, é recorrente a abordagem de temas como feminismo, racismo, identidades de gênero, relacionamentos não monogâmicos, ego, narcisismo. ele escreve regularmente em seu blog e no papo de homem, e como literatura publicou o livro de contos “onde perdemos tudo” e o romance “mulher de um homem só”. além de escrever, também trabalha promovendo encontros chamado “as prisões”, no qual se reúne com grupos de pessoas para discutir temas como monogamia, dinheiro, família, regilião, ego, felicidade, etc. ele também foi um dos co-fundadores do tumblr classe média sofre.

procurado pelo voo subterrâneo, que realiza entrevistas gravadas em áudio, alex castro optou por responder as perguntas por e-mail, para  ter “tempo de refletir e pensar em cada resposta, com calma e tranquilidade”. confira, abaixo, a entrevista.

* * *

se tornando escritor

o que fez você decidir, com 12 anos de idade, que iria ser escritor?

até os 12 anos, eu desenhava quadrinhos, que xerocava e vendia entre os amigos de escola. então, passei um mês com um amigo da família que era desenhista profissional, gutemberg monteiro, o goot, que na época desenhava a tirinha do tom & jerry. essa temporada com o goot me fez ver que desenho era muito mais complicado do que eu imaginava. percebi que minha paixão era contar histórias e que o desenho era somente um meio (muito complicado e trabalhoso) de fazer isso. então, aposentei os materiais de desenho e decidi que seria escritor.

coloquei uma mesa e uma máquina de escrever elétrica ibm no meu quarto, daquelas verdes e enormes, com esferas metálicas, e comecei a trabalhar todo dia. nesse ano, meu primeiro exercício foi inventar um detetive e reescrever contos policiais de outros personagens mas agora estrelados pelo meu. sem a pressão de precisar criar um enredo, eu podia treinar desenvolver o meu próprio personagem.

e assim, comecei. esperando não parar até morrer, como disse whitman.

em algum momento essa convicção tua foi abalada?

não sei bem se era uma convicção, nem se era sólida ao ponto de ser abalada. digamos que era gelatinosa. o que é gelatinoso não se abala, pois se tremer já é da sua natureza. mas, certamente, desde então, nunca quis ser nenhuma outra coisa a não ser isso: escritor.

quais foram as pessoas que mais inflenciaram suas ideias e seu jeito de ser?

vou citar só os escritores, pois se falasse das pessoas de carne-e-osso do meu dia-a-doa, não acabaria nunca mais.

ninguém lê do mesmo jeito depois de ler borges. clarice lispector e lobo antunes me ensinaram que eu podia fazer muito mais com a língua portuguesa do que imaginava possível. a bíblia e “declínio e queda do império romano”, de gibbon, me ensinaram tudo o que sei sobre a arte de contar histórias. henry miller, apesar do sexismo galopante, e walt whitman me ensinaram um amor pela vida além de todas as fronteiras e de toda a lógica. thoreau e conrad me ensinaram, pelo contrário, um certo autocontrole e uma sobriedade que são tão importantes quanto. “cecília valdés”, de cirilo villaverde, me mostrou como os horrores da escravidão podem virar grande literatura. “a hora da estrela”, de novo da clarice, “os miseráveis”, de victor hugo, e “memórias de um caçador”, de turgeniev, e tudo de lima barreto, me ensinaram como escrever e como abordar as histórias das pessoas humildes e marginalizadas. machado me ensinou o valor da sutileza, que tudo pode ser dito indiretamente, discretamente, e o texto não é menos contundente por causa disso. por fim, tchecov me ensinou que não se pode escrever ficção sem uma gigantesca empatia por tudo que seja humano.

esses são meus mestres.

relação com as causas sociais

quais as principais dificuldades que você encontrou ao longo de sua vida e como você vem superando elas?

tive uma vida privilegiada. sou homem, branco, hétero, cis, classe média alta. em um país como o nosso, tão cruel com suas mulheres, com suas pessoas negras, com suas pessoas homossexuais, com suas pessoas trans*, chega a ser ofensivo uma pessoa como eu falar em dificuldades. eu só tive facilidades. minha maior dificuldade talvez tenha sido justamente superar os preconceitos de classe oriundos da minha vida ó-tão-fácil, me dar conta de que o mundo não girava em torno do meu umbigo e, finalmente, reconhecer meus muitos privilégios. só então pude virar uma pessoa menos detestável. é um longo processo. falta muito ainda.

quando e como surgiu em você suas preocupações com as causas sociais, femininas, raciais, etc?

morar no exterior e ver o brasil de fora me fez desnaturalizar algumas convicções. ver que havia outras maneiras de resolver os mesmos problemas. que o nosso jeito não era um “destino” ou uma “obrigatoriedade”, mas nossa escolha enquanto sociedade. e o que é escolhido pode ser des-escolhido.

essa escolha que você diz você se refere a escolha de todos ou dos que têm o poder de escolha? é questão de des-escolher ou de mudar quem escolhe?

existem duas esferas aí.

na esfera das pessoas individuais, o mundo hoje é claramente dividido entre as pessoas que têm todas as escolhas e pessoas que têm escolhas bastante limitadas. na verdade, meritocracia e liberdade de escolha são dois dos grandes mitos da nossa direita. para as pessoas privilegiadas, é sempre muito fácil esquecer que nem todas as pessoas tiveram as mesmas possibilidades de escolha que elas, e então, apontar para as pessoas oprimidas e exploradas… e afirmar que elas são oprimidas e exploradas porque escolheram ser assim!

a outra esfera é a social: a nossa sociedade como um todo, de forma coletiva, impulsionada por seus membros, democraticamente, pela ação política, pela opinião pública, pode sim escolher mudar de rumo. como um transatlântico, que muda de rumo bem devagar, mas muda.

as prisões

o que o motivou a escever sua série de textos sobre as prisões?

sempre fui um leitor voraz. tinha curiosidade sobre tudo. absorvia conhecimento febrilmente. então, um dia, comecei a me questionar. e fui percebendo que era tudo mentira. que apesar de suas melhores intenções, meus pais tinham me ensinado várias coisas que simplesmente não eram verdade. e não só eles: meus professores, meus amigos, meus parentes, meus escritores favoritos. e comecei a desconstruir todas essas lições. des-conhecer todo esse conhecimento. des-aprender todo esse aprendizado. em um dado momento, passei a questionar a própria noção de verdade. e daí que não é tudo verdade? hoje, acho que “sabemos” coisas demais. há mais de dez anos que meu foco é saber menos coisas. desaprender. todo dia extirpar mais um conhecimento inútil da minha cabeça, mais uma certeza errada, mais um preconceito adquirido. fora, fora, fora. “as prisões” é como chamo esse processo de des-aprendizado.

como foi esse processo de transformar esses textos em temas da palestras?

não sou filósofo. só o que sei fazer é escrever sobre coisas que nunca aconteceram a pessoas que nunca existiram. criei meu primeiro blog na internet, em 2003, justamente para publicar as primeiras prisões. porque já pressentia que esse era um daqueles poucos projetos literários que não poderia ser escrito em uma cabana isolada. que para conseguir aclarar e desenvolver essas ideias, eu precisaria de um contato, de um confronto, de um debate com um público ansioso, curioso, revoltado, reativo, os encontros que tenho realizado a partir de 2013 são parte desse processo: não dá pra exagerar como o contato com esse público tem ajudado a desenvolver, refinar, jogar fora, recriar minhas ideias. um escritor sem as pessoas que o leem não é ninguém.

quais das prisões são as que mais te aprisionam atualmente?

quase tudo o que faço é por vaidade. quase tudo que não faço é por preguiça. essas são minhas duas maiores prisões. e luto contra elas todo dia. como sou preguiçoso, não luto com tanto afinco assim. como sou vaidoso, criei uma série de textos para me gabar publicamente dessa minha luta. ou seja, de novo, ainda falta um longo caminho pela frente.

escrita e transformação social

meus textos buscam desmontar as verdades compulsórias que nos enfiam goela abaixo.

vivo em um mundo onde as cenas cotidianas que mais me enchem de horror são vistas com normalidade por quase todas as pessoas a minha volta. a exploração, a desigualdade, o racismo, a transfobia. tudo aceitável e dentro dos padrões do bom funcionamento da sociedade.

então, sinto que estou sempre escrevendo textos de horror.

talvez essa seja a melhor definição de arte engajada: tornar contagioso o horror.

li em uma entrevista que o classe média sofre é seu único trabalho que te deixou orgulhoso. por que ele te orgulha e por que você não sente isso em relação a seus outros trabalhos?

orgulho é uma coisa meio babaca, né? afinal, pra que serve o orgulho? em um dado momento, eu me orgulhei do classe média sofre, sim, por causa do pequeno impacto concreto que ele teve: muita gente estava sinceramente auto-censurando algumas das piores barbaridades elitistas que talvez dissessem por medo de aparecer no classe média sofre. mas, no fim das contas, e daí? o mundo mudou? ficou um lugar melhor, mais justo, mais igual por causa disso? não, né? então, me corrijo: não sinto orgulho de nada que fiz.

até que ponto você acredita que seus trabalhos são capazes de transformar a realidade?

não são.

mas você escreve querendo isso, pelo menos é a impressão que dá nos textos que saem no papo de homem…

entre o que as pessoas querem e o que é efetivamente possível existe uma distância infinita.

há quem fale que se o próprio trabalho provocou uma mudança positiva em uma pessoa já valeu a pena. não é esse o caso? existe algo ou alguém que consegue de forma rápida uma mudança social profunda?

só a revolução. encontro vocês lá embaixo com o fuzil.

“é tudo mentira”

há um aviso, no papo de homem e no seu site, que todos os seus textos são ficcionais. o que faz seus textos opinativos/argumentativos serem ficcionais? qualquer texto desse gênero, independente de quem escreva, são ficcionais?

tudo é ficção. a verdade não existe. tem coisa mais ficcional do que o jornal nacional, do que um livro de história do brasil, do que uma biografia de celebridade? as pessoas ainda acreditam no que leem e isso me choca todo dia. por isso, bato sempre nessa mesma tecla: é tudo mentira. tudo. o tempo todo. especialmente as coisas que batem no peito pra se afirmar verdades verdadeiras.

seu único livro de contos até hoje fala sobre perdas. por que seu interesse em escrever e publicar sobre esse tema?

pura curiosidade intelectual. na prática, na verdade verdadeira, nunca perdi nada. todos os meus livros são maneiras de sair de mim mesmo. para falar de mim, tenho meu blog, minha terapia, meu diário. já a ficção é para brincarmos de ser pessoas que não existem, fazendo o que nunca fizemos, sentindo o que nunca sentimos.

li em entrevistas que no livro mulher de um homem só você optou por escolher como narradora a personagem menos parecida contigo, porque achava chato falar de si mesmo na literatura. como leitor seu, creio que seria mais interessante fazer o contrário, por seu estilo de vida e ideias serem mais singulares, enquanto carla é uma personagem mais próxima do senso comum. qual sua opinião sobre isso?

talvez o que me faça uma pessoa de estilo de vida e ideias “singulares”, como você falou, seja o fato de eu achar mais interessante dar vida à carla (a narradora de “mulher de um homem só”) e tentar descobrir o que motiva uma pessoa como ela, e o que a lavagem cerebral do senso-comum faz com a cabeça de alguém, do que falar de mim, da minha individualidade borbulhante e da minha vida pretensamente singular. minha vida não tem nada de especial. nem a da carla, aliás.

“só faz sentido escrever se for para ser do contra.

muitos de seus textos têm uma linguagem que pode soar violenta, autoritária, para quem não concorda com suas ideias. há quem procure escrever de forma a evitar o máximo que quem tenha opiniões contrárias se sintam ofendidas. queria que você contasse sobre o estilo da sua escrita. você escreve esperando um tipo específico de reação? escreve apenas pensando na forma mais exata de se expressar?

tudo o que escrevo é sempre para sacudir. jamais escreveria para afagar o ego e as certezas da pessoa leitora. de que serviria isso?

de vez em quando me perguntam: você é sempre do contra? não, claro que não. a maioria das minhas opiniões é igual à opinião da maioria das pessoas. mas de que serve escrever sobre isso? se saiu o filme x e ele é uma unanimidade de crítica e público, todo mundo adorando o filme, e eu também adorando o filme… de que adianta eu escrever mais um texto dizendo que o filme é lindo e reforçando o que todo mundo já sabe e já acha?

então, não é que sou sempre do contra, mas que acho que só faz sentido escrever se for para ser do contra. se for para mostrar à leitora um novo ângulo. se for para sacudir suas certezas. para questionar suas ideias.

tudo o que escrevo é para desmontar certezas. (às vezes, as minhas.) tudo o que escrevo é para sacudir. tomo o maior cuidado para nunca criticar pessoas vivas, para nunca acusar ninguém de nada, para nunca apontar dedos, mas é natural que algumas pessoas se sintam atacadas.

nesse caso, digo a elas: o texto não era sobre você, mas se você vestiu a carapuça e se sentiu atacada… então, é porque era.

uma frase sua: “não se muda o mundo respeitando a opinião de quem te oprime”. qual sua opinião sobre as ideias religiosas de amor incondicional, o que se aplica ao opressor, seria isso contrário à transformação social?

muitas das ideias religiosas são ótimas. a bíblia é meu livro preferido; jesus, uma pessoa excepcional; e sua mensagem, revolucionária e subversiva. o mais incrível do novo testamento é ver as epístolas paulinas desmentindo todo o evangelho que veio antes, transformando aquela linda mensagem revolucionária na fundação de um império conservador. é como se adam smith tivesse escrito o posfácio ao manifesto comunista afirmando que marx na verdade amava o livre-mercado e a mão invisível. jesus é o chê, paulo é fidel. um fala bonito e morre cedo, o outro administra o dia-a-dia do pós-revolução. enfim, meu problema não são as ideias religiosas, mas sua aplicação.

público que o acompanha

quais os perfis das pessoas que entram em contato contigo, que se correspondem com você e vão nas suas palestras? quais os maiores sofrimentos das pessoas que te procuram?

em geral, eu atraio ovelhas negras. as pessoas que vêm até mim tendem a ser aquelas que se sentem sozinhas, deslocadas. as malucas dos seus grupos. buscando por interlocutores. em um encontro meu, uma moça disse: “acho que é a primeira vez que estou em um grupo de pessoas e ninguém pensa que sou a excêntrica.”

na sua visão, qual é causa para que haja tanto sofrimento humano?

a ignorância e a cegueira. o mal está naquilo que a gente não vê, naquilo que não enxergamos, no fato de que nossos olhos naturalmente não reconhecem alguns locais, algumas pessoas, alguns problemas. o romance que estou escrevendo pelos últimos seis anos, “cria da casa: histórias de empregadas & escravos”, é todo sobre isso: a nossa cegueira constitutiva. os cantos para onde nunca olhamos e o que está acontecendo por lá.

* * *

nessa parte da entrevista, vou falar algumas palavras e gostaria que você desse a concepção, o entendimento que você tem sobre elas. a primeira é literatura:

literatura

linguagem carregada de sentido.

qual tua relação com as outras artes? vi que você gosta muito de teatro…

teatro é sensacional. é literatura em movimento, cinestésica, com cheiro, suor. gostaria muito de trabalhar em teatro, mas não sei se conseguiria funcionar bem em grupo. talvez por isso mesmo devesse tentar. aliás, vou. acabei de escrever meu primeiro texto teatral e tenho outros cinco planejados.

trabalho

escrever.

você diz que as pessoas não precisam necessariamente trabahar com aquilo que amam, que às vezes é melhor que isso nem aconteça. como isso se aplica no seu caso? existe algum tipo de trabalho que você goste mais do que escrever?

essa doutrina de que temos que amar o nosso trabalho, que temos que trabalhar no que amamos, etc, é muito elitista e hipócrita. essa possibilidade está aberta para pouquíssimas pessoas. a enorme maioria da população humana, todas pessoas tão incríveis e complexas como eu e você aí lendo isso, com um cérebro poderoso e subjetividade profunda, estão fadadas a trabalhar em empregos chatos e repetitivos, entregando cartas, dobrando roupas, atendendo telefones. a questão não é se amamos ou não essas atividades remuneradas que executamos, mas se o salário que nos pagam em troca das horas de trabalho é maior do que tudo que esse emprego toma de nós em termos de tempo e energia vital. a questão é se temos tempo e energia para viver nossas vidas plenas de pessoas humanas quando não estamos entregando cartas, dobrando roupas, atendendo telefones.

quanto a mim, só sei escrever, mas tenho pensado seriamente em abandonar a escrita profissional. o raduan nassar, quando largou a literatura, disse que não havia criação literária que se comparasse a uma criação de galinhas. penso muito nisso. se não é mais digno, mais honesto, mais humano, em vez de receber dinheiro para escrever textos que eu normalmente não escreveria, receber dinheiro para cuidar, passear, dar banho, tosar cachorros, e só escrever aquelas coisas que eu realmente escreveria de graça.

o que o motivou a trabalhar de forma totalmente independente hoje, sem nenhum vínculo com alguma instituição? você considera essa tua forma ideal de trabalhar?

eu trabalho da única maneira que seria possível para mim. sou uma pessoa solitária, como imagino que são a maioria das pessoas que escolhem essa vida. sou temperamentalmente incapaz de fazer parte de grupos, empresas, instituições. em muitas carreiras, como nas ciências, por exemplo, só se consegue produzir tecnologia de ponta trabalhando em grupo. já a grande literatura, muitas vezes, é produzida por misantropos isolados em cabanas distantes. por isso, quase sempre, quem escolhe a literatura é por ter uma certa aversão a trabalhar em grupo. pelo menos eu tenho.

liberdade

uma excelente desculpa. como fim último, é um objetivo vazio. ser livre pra quê?

quando você diz que quer se livrar das mentiras impostas socialmente, isso não se refere a ter uma liberdade mental? nesse caso, a liberdade não seria, além de somente uma postura individual, uma postura coletiva no sentido de querer se livrar dos preconceitos, dos ideais individualistas do capitalismo, etc?

liberdade e felicidade são dois conceitos bem interessantes. assim, por alto, eles parecem lindos, unânimes, desejáveis. entretanto, quando você começa a olhar de perto, eles se desfazem.

existe ou poderia existir felicidade? essa felicidade plena, linda, pura? se você disser que não, que a felicidade são momentos, então, bem, a gente já está limitando mais e mais a definição, não? quais momentos? quantos momentos?

idem com a liberdade. existe isso de liberdade? alguém já teve essa liberdade plena, linda pura? é teoricamente possível? não, né? então, ok, todos temos liberdades bem restritas. podemos votar, mas não podemos deixar de votar. podemos chamar a polícia, mas não podemos passar a mão na bunda do guarda. podemos falar que uma peça é uma merda mas não podemos gritar fogo no teatro lotado.

ou seja, nossa tal liberdade é limitada de mil maneiras diferentes, pela lei, pela sociedade, pelos costumes. mais ainda, essa liberdade também é cerceada pelos limites do nosso corpo, pela química do nosso cérebro. toda nossa evolução nos preparou para encontrarmos, consumirmos, acumularmos gordura e açúcar. então, o quanto somos realmente livres para abdicar dessas substâncias que todo nosso corpo deseja? o alcoolatra é realmente livre para não tomar o copo de vodca que lhe oferecem? somos livres para ir conta a programação do nosso cérebro?

então, se essa tal liberdade, pela qual eu deveria estar disposto a matar e morrer, é cerceada pelas leis, pela família, pela sociedade, por meu cérebro, por meus hormônios, etc etc, o quanto livre eu realmente sou? se não sobrou quase nada, se a minha liberdade acabou se reduzindo somente a esse quadradinho aqui, ainda faz sentido falar em liberdade? mais ainda, ainda faz sentido matar e morrer por essa liberdade? ainda faz sentido colocar essa liberdade como fim último da minha existência?

política

vida.

você acredita na viabilidade do socialismo? quais foram suas impressões sobre cuba, por exemplo?

não vou nunca desistir da ideia de que é possível algum tipo de socialismo verdadeiro e viável, mas com democracia. que não é necessário fechar as fronteiras e a imprensa para termos uma sociedade menos desigual. cuba é um lugar incrível, um celeiro de ideias brilhantes e de exemplos negativos mais brilhantes ainda. resta saber quais vamos adotar para nós.

dinheiro

um mal necessário. sem dinheiro, não há independência. sem dinheiro, seremos sempre escravos, dependentes, submetidos a outras pessoas. aliás, com dinheiro, também.

drogas

a droga de um é a religião do outro.

você escreve muito pouco sobre o tema. você acha que diz respeito a relação pessoal de cada um? acha que ela pode ser encarada como mais uma prisão?

quando me perguntam se o consumo de drogas causa violência, sempre respondo que a proibição das drogas é que causa violência. se algum alucinado inventasse de proibir o chocolate, também teríamos guerras para controlar a boca de diamante negro, também teríamos gente subindo o morro para compar sonho de valsa. as substâncias proibidas que hoje chamamos de drogas deveriam ser liberadas e legalizadas, no mesmo status que álcool e tabaco, pagando impostos e com restrições de venda e publicidade.

quanto a mim, já provei drogas, mas apenas socialmente. entendo seu valor para abrir a consciência e estimular a criatividade. mas eu, pessoalmente, prefiro não alterar minha percepção. tomo café até o meio-dia, chá verde à tarde, e vinho tinto a partir das seis. é o máximo que me permito de alteração química intencional.

deus

adesivo de parachoque: “eu, sem deus, sou eu. deus, sem mim, é só uma manifestação pueril do inconsciente coletivo.”

como foi sua aproximação com o budismo? você já teve contato com outras práticas religiosas?

não acredito em qualquer tipo de deus, espiritualidade, força, energia, tarô, astrologia, homeopatia, etc etc. leio e estudo religiões por toda a vida. fui a todas as cerimonias de todas as religiões que me convidaram. respeito, admiro, e em alguns casos lamento, as convicções religiosas das pessoas, mas não compartilho de nenhuma. eu pratico zen mas é só porque o zen não me pede nenhuma crença, não me oferece nada para acreditar. é uma prática, um caminho, não uma fé.

amor

claudia.

como foi esse processo de questionamento da monogamia?

eu amo muito. me apaixono, me entrego, me junto. adoro o amor, a cumplicidade, o carinho. gosto de ter uma companheira que caminha ao meu lado e ao lado de quem eu caminho. saber ser solteiro é necessário, e é muito bom, mas nada se compara à sensação de estar ao lado da pessoa que é acertada para nós naquele momento. você antes falou de orgulho e, talvez, a coisa que eu mais chegue perto de ter orgulho seja das pessoas incríveis, sensacionais, brilhantes que me deram o privilégio de compartilhar a cama comigo.

faltou você responder a pergunta… como foi o processo de questionamento da monogamia?

nunca precisei ativamente questionar e desmontar a monogamia dentro de mim, pois ela sempre me pareceu auto-evidentemente nociva e impraticável. a monogamia nunca me pareceu uma possibilidade.

morte

a coisa mais importante da vida. eu amo a minha morte. sem ela, eu não sairia da cama, não faria nada, ficando só comendo pizza, bebendo vinho, fumando, me masturbando, vendo filme. só o fato de que vou morrer, inapelavelmente e em breve, me faz sair da cama, aturar as pessoas, ser minimamente produtivo.

felicidade

a felicidade e a liberdade são os maiores engodos, as maiores quimeras da nossa geração. quando tudo na sociedade, as escolas, os anúncios, os pais, as comédias românticas, etc, quer nos convencer a buscar a liberdade e a felicidade, que esses devem ser os dois principais objetivos da vida de alguém, então é hora de parar e repensar tudo. afinal, por que quero tanto ser livre? por que quero tanto ser feliz? o mundo vai ser um lugar melhor se eu for livre e feliz? eu vou ser uma pessoa melhor se eu for livre e feliz?

realizações e decepções

quais as maiores decepções e realizações que você teve em sua vida?

tive várias decepções literárias. quase diariamente, aliás. até perceber que eram todas só o meu ego falando. que todas eram uma variação de “eu mereço x, por que não me deram x? eu sou y, por que ninguém diz que sou y?” etc etc. hoje, quando meu ego tenta dizer alguma dessas coisas, eu enfio a cabeça dele dentro d’água até pedir arrego. das minhas realizações, então, ele nem ousa falar: sabe que eu lhe daria um belo de um chute no saco. atualmente, minha maior decepção é quando me distraio e solto coisas como “minha obra” ou “meu dever de artista”. o ego tem que apanhar todo dia pra saber quem manda.

medo e saudade

quais são seus maiores medos?

tenho medo das grandes ironias da vida. de perder o arquivo do romance que acabei de escrever. de morrer de uma doença um ano antes de descobrirem a cura. desse tipo de coisa que acontece num universo aleatório e sem deus, onde tudo caminha em direção à entropia.

do que você tem saudade?

de nada. saudade é inútil e traiçoeira. faz a gente desprezar o presente, que é a única coisa que existe, concreta e pulsante, em prol de um passado mentiroso e seletivo, sempre muito melhor do que realmente foi.

sociedade ideal

você tem alguma concepção de uma sociedade ideal?

uma sociedade onde as pessoas tivessem nas estantes livros sobre como ser uma pessoa melhor, uma pessoa mais aberta, uma pessoa mais humana, e não livros sobre como ser mais feliz, mais rico, mais bonito.

planos

tem planos para o futuro?

evito fazer planos. um desejo que tenho é, um dia, morar em um barco.

citação e aprendizado

uma frase ou citação que você goste muito:

sim!

um aprendizado que você teve em sua vida e que quer compartilhar para os outros:

aprender a ser menos egocêntrico e egoísta. não existe paz possível para as pessoas egocêntricas e egoístas, sempre tão preocupadas com nossa própria felicidade, com o que as outras pessoas estão falando de nós, em como podemos usar essa ou aquela pessoa para nosso benefício, em como devemos nos afastar dessa ou daquela pessoa porque ela não tem nada a nos oferecer, etc. é minha grande batalha diária. um aprendizado que não tem fim.

entrevistas como essas, aliás, só atrapalham. o fato de alguém ter interesse no que tenho a dizer só confirma algumas das piores pretensões do meu ego.

entretanto, eu sou escritor e vivo disso. se não por entrevistas assim, as pessoas não vão me conhecer, não me ler e não vou ter como ganhar a vida. (o horror, o horror!)

esse é o meu grande dilema pessoal (aliás, bem egocêntrico, como todo “dilema pessoal”): como ser um artista trabalhando em público e evitar ser egocêntrico e egoísta?

claramente, não sei responder essa pergunta.

talvez cuidar de cachorros.

* * *

leia outras entrevistas de felipe nascimento no site voo subterrâneo: monja coen, eduardo marinho, claudio assis, helio leites.

* * *

calendário completo de eventos de alex castro em 2014.