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o dom da leitura

existe gente que “leva jeito” para ler?

existe gente que “leva jeito” para ler?

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gosto de ler livros densos, argumentativos, cheios de ideias, que refletem sobre nossa história, sobre nossos desejos, sobre nossa civilização. a grande conversa, enfim.

ler livros assim é como exercitar um músculo ou como aprender uma língua: quanto mais você faz, mais fácil fica.

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quando eu tinha 20 anos e li foucault pela primeira vez, seu estilo me pareceu difícil, palavroso, cabeçudo.

quando eu tinha 41 anos e li ou reli quatro livros do foucault, seu estilo já me pareceu fácil, fluente, gostoso.

(depois de ter encontrado o que eu estava procurando, ainda li mais dois livros dele por puro prazer.)

mudei eu ou mudei foucault?

ninguém “leva jeito” ou “tem o dom” de ler foucault: existem pessoas que escolhem consistentemente ler textos como os de foucault até o ponto que a leitura e absorção desses textos se torna não apenas mais fácil, como inclusive prazeirosa.

(hoje, outros autores me parecem difíceis, palavrosos, cabeçudos: derrida, lacan, jung. estarei lendo jung por prazer daqui a vinte anos?)

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fui professor, em sala de aula, durante 18 anos, em cursos particulares, escolas do ensino médio e universidades, em dois países, ensinando três disciplinas, em três idiomas, para pessoas de dezenas de nacionalidades, de todas as classes sociais.

e nunca encontrei a tal mítica pessoa que “leva jeito”, “que tem o dom”, etc.

até acredito que ela exista. que nem todas nós conseguiríamos jogar bola como pelé, ou calcular raiz quadrada de cabeça como o menino que ganhou a olimpíada de matemática.

mas também acredito que:

1) se a pessoa decidir dedicar o seu tempo a isso, que qualquer uma de nós pode jogar futebol ou calcular raiz quadrada, cozinhar ou cerzir, decentemente bem.

(e isso não tem nada a ver com formulinhas bestas tipo a das dez mil horas.)

2) escolher dedicar-se a ler livros densos em ideias não é significativamente diferente, melhor ou mais útil, do que escolher dedicar-se a jogar bola ou calcular raiz quadrada, a cozinhar ou acerzir.

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dei aulas de inglês, espanhol, português, sempre como língua estrangeira.

como parte das aulas, eu estimulava as alunas a escolherem um livro de um tema que realmente gostassem, que não estivesse disponível em suas próprias línguas e que tentassem lê-lo na língua que estavam aprendendo.

e elas diziam:

“ah, mas eu não entendo nada. não adianta!”

e eu respondia:

“nunca vai chegar o dia em que você vai abrir o seu primeiro livro em uma língua estrangeira e magicamente entender tudo. o primeiro livro que você tentar ler em uma língua estrangeira talvez você só entenda 20% e lhe custe muito esforço. mas, graças a esse livro, talvez você consiga entender 30% do livro seguinte, e assim por diante. não tem atalho. não tem dia mágico. é um processo lento, um esforço consciente, uma escolha diária.”

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em outras palavras, não é foucault que é cabeçudo: você é que não leu um número suficiente de livros densos em ideias como os de foucault, porque escolheu não dedicar o seu tempo a essas leituras, e sim a outras coisas, e não tem nada de errado nisso, mas também não venha criticar foucault, pois ele não tem nada a ver com as suas escolhas.

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um adendo: meus primeiros livros

o primeiro livro inteiro, de texto corrido, que li em português foi “o pequeno nicolau”, aos 7 anos, edição da artenova, comprado na malasartes do shopping gávea.

o primeiro livro inteiro que eu li em inglês se chamava “fletch too”, e era o último volume em uma série policial que eu adorava. alguns livros tinham saído em português, mas esse não. comprei numa livraria da ataulfo de paiva, no leblon, quase em frente ao meu colégio. eu tinha 15 anos e estava louco para saber o que ia acontecer quando fletch encontrasse seu pai no quênia. (puro anticlímax: é o pior livro da série.)

o primeiro livro inteiro que eu li em espanhol foi mais ambicioso: “cem anos de solidão”. eu tinha 22 anos e estava passando o mês em buenos aires, na casa de uma amiga. demorei aquele mês inteiro e mais outros cinco para terminar. (ainda é um dos meus romances preferidos, talvez um dos romances mais perfeitos de todos os tempos.)

algumas das memórias intelectuais mais intensas, mais vivas que eu tenho são do esforço mental que tive que fazer para ler esses livros. daquele avançar lentamente, linha por linha, lama até o joelho, me esforçando para não sucumbir à tentação traiçoeira de consultar o dicionário bilíngue, tentando deduzir o significado de cada palavra desconhecida pelo seu contexto.

tenho um enorme carinho por esses livros, pois me abriram as portas para duas línguas ricas, belíssimas, que por seu lado expandiram meu horizonte intelectual muito além do português.

reparem que não existe hierarquia de línguas. não existe língua mais bela ou mais feia, mais rica ou mais pobre. como medir essas coisas?

mas existem algumas medidas mais concretas e objetivas: o que é mais amplo não é o espanhol e o inglês em relação a português, mas o mercado editorial de cada uma, ou seja, a quantidade de obras traduzidas ou escritas nessas duas línguas, em comparação à quantidade de obras traduzidas ou escritas em português.

só na última semana, eu li duas obras do francês pascal bruckner. ele é sensacional, polêmico, cheio de tiradas incômodas. mas eu não leio francês e ele nunca foi traduzido para o português: li “perpetual euphoria” em inglês e “miseria de la prosperidad” em espanhol.

ano passado, a bielorussa svetlana alexievich ganhou o nobel de literatura. ela é incrível, de uma empatia de tirar o fôlego, criadora de um projeto literário único que já mudou a minha vida. mas escreve em russo e nunca foi traduzida para o português. eu li “voces de chernóbil” em espanhol e estou lendo “zinky boys” em inglês.

são só dois exemplos, dos últimos poucos meses. poderia citar centenas, ao longo dos últimos vinte anos.

hoje, quando leio qualquer obra em espanhol ou inglês com praticamente a mesma fluência que leio português, quando tenho acesso a obras que não leria se conhecesse apenas a nossa língua, eu agradeço um pouco a esses dois primeiros livros, que desbravaram a trilha e abriram a estrada por onde passaram todos os outros.

(também teve o primeiro e único livro que li inteiro em italiano, “o conformista”, do moravia. acabei achando que não havia um ganho de escala que justificasse o esforço adicional de aprender uma nova língua. mas me diverti muito com meu italiano: li as coleções completas dos fumettis “dylan dog”, “martin mystere” e “mister no”, até hoje, meus gibis favoritos.)

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outro adendo: dicionários bilíngues

conselho de professor de idiomas: nunca, nunca, nunca usem dicionários bilíngues. nunca dá certo. nunca acaba bem. eles sempre traem.

aí, as alunas perguntavam:

“mas, professor, e se na redação eu precisar muito usar uma palavra que eu não sei como é?”

e eu perguntava de volta:

“e se você estiver fugindo de bandidos, e tiver um helicóptero ali de boas, e você precisar muito usar o helicóptero para fugir, mas não souber nem ligar o helicóptero, o que você faz?”

“hã… aprender?”

“não dá tempo. os bandidos estão atrás de você. nos dez segundos que demorar pra você descobrir como liga, os bandidos já te alcançaram. então, o que você faz se precisa muito muito usar um helicoptero mas não sabe como usar um helicóptero?”

“hã… não usa o helicóptero?”

“exatamente. se você quiser muito muito muito usar a palavra “arquibancada” na sua redação, mas não sabe como é essa palavra na língua que está aprendendo, talvez essa palavra não devesse estar na sua redação.”

dicionários bilíngues podem não ser nocivos na hora de absorver conteúdo, como ler, embora eu ache uma melhor prática pedagógica tentar deduzir os significados das palavras pelo contexto.

na hora de produzir conteúdo, entretanto, como falar ou escrever, dicionários bilíngues só produzem catástrofes.

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último adendo: detalhes pessoais

como sei que alguém vai perguntar: 1993-2011; história, literatura, geografia; espanhol, inglês, português; brasil e eua; wizard, escola americana do rio de janeiro, tulane university.

quem sabe adicionemos mais alguns ítens a essa lista. estou considerando passar um ano aqui em cuba dando aulas de português para estrangeiros. (“vai pra cuba, alex!”) até pouquíssimo tempo atrás, eu já teria aceitado. hoje, não sei se tenho idade ou saúde, mas é tentador.

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