farmácia, tarde da noite.
vou até o balcão no fundo, onde o único atendente está conferindo a receita de um freguês. eu espero.
a senhora que estava no caixa percebe e vem correndo, ansiosa, como se me atender fosse a coisa mais legal do mundo, e pergunta o que estou procurando.
plasil, eu digo.
ela faz uma cara de que nunca ouviu falar daquele nome, mas vai procurar pela farmácia mesmo assim. daqui a pouco, ela retorna, dessa vez com uma nova expressão no rosto: sinto tanto, mas tanto por não ter podido ajudá-lo. jê suí dessolê!
e eu penso: plasil é um remédio muito comum, como pode não conhecer?
dentro de mim, sinto os primeiros tremores do velho alex acordando, o alex-godzilla, o alex-mr-hyde, o alex que dizia coisas como, “cara, eu aguento tudo, só não tolero gente incompetente!”
verdadeiro diabinho, o alex-que-eu-era sabe exatamente o que eu deveria dizer para a atendente da farmácia:
“a senhora poderia ir buscar alguém que saiba o que está fazendo, por favor?”
mas o velho alex era um babaca e eu não faço mais o que ele manda.
sorrio para a atendente e agradeço muito. continuo olhando coisas aleatórias pela farmácia até ela se afastar um pouco e, então, sem que ela escute, pergunto ao moço que está atrás do balcão:
por favor, plasil é aí dentro ou cá fora?
ocupado e ranzinza, ele faz um gesto impaciente na minha direção e grita:
dona maria, PLASIL!
ela se aproxima novamente:
eu já procurei, não tem.
ele aumenta o tom:
tem sim, caceta. tá ALI!
imperturbável e sorridente, dona maria se abaixa, encontra o plasil e entrega na minha mão:
aqui está, filho.
e ela me leva até o caixa, onde passa a minha compra.
* * *
aqui dentro de mim, no meu ó-tão-incrível ego, eu continuo sendo aquele horrível menino-criado-feito-um-reizinho cujo primeiro instinto teria sido destratar a dona maria.
quase sempre, consigo me controlar.
às vezes, falo coisas horríveis.
é como o alcoolismo: nunca se está realmente curado.
praticar ser a pessoa-que-queremos-ser nunca é fácil.
* * *
na saída da farmácia, seguro as duas mãos de dona maria e digo:
obrigado, viu? a senhora foi muito, muito gentil.