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sou ateu porque preciso

confesso: acredito viver no melhor universo possível.

não suportaria existir em um universo regido por uma força divina misteriosa e caprichosa.

não suportaria saber que minha alma viverá eternamente, em eterno prazer ou eterno sofrimento, baseado no que fiz ou deixei de fazer nesses poucos anos terrenos, de acordo critérios inescrutáveis definidos por um ser para o qual sou menos que uma ameba.

se existe deus, então todos os esforços da humanidade para se entender e se auto-gerir, toda a ciência e toda a filosofia, de nada valem. se existe deus, então não existe ética ou moralidade: somente adequação ou não às regras impostas por essa divindade.

se existe deus e temos o livre-arbítrio, então o arbítrio de livre não tem nada, é uma dádiva da qual só desfrutamos porque nos foi concedida e pode ser tirada tão facilmente quanto.

se existe deus, então a vida não tem nenhum sentido. quem tem sentido é deus e o nosso sentido provém dele. não somos mais do que suas cobaias, manipuladas daqui pra lá, correndo como hamsters em rodinhas, ignorantes de seus verdadeiros propósitos. ao seu bel-prazer, somos mortas, escravizadas, santificadas, até mesmo afogadas em massa, quando falha o experimento.

se deus não existe e o universo é aleatório e sem sentido, a humanidade está livre para criar, através de suas ações e de seus pensamentos, de suas obras e de suas vontades, dia a dia, século a século, o seu próprio sentido.

por outro lado, se deus existe, o universo já tem sentido, um único sentido, o sentido que vem de deus, o sentido que está dado, e só cabe a nós descobrir esse sentido e viver de acordo com ele.

se deus existe, não há criação de sentido possível. não temos como ressignificar o mundo, a humanidade, o cosmos. não temos como dar sentido nem a um botão de rosa.

para mim, esse sim é um universo no qual não valeria a pena nem sair da cama.

* * *

talvez deus realmente exista. talvez sejamos todas somente marionetes em seu projeto cósmico.

mas, ainda assim, prefiro inverter a aposta de pascal. se não tenho a liberdade de dar sentido à minha vida, melhor então a ilusão da liberdade do que nada.

* * *

sou ateu não por ter concluído, após cuidadosa análise das evidências empíricas, que não existe base factual para sustentar a existência de deus.

sou ateu porque eu só poderia existir e funcionar como ser humano em um universo sem deus.

sou ateu porque preciso.

a gente não acredita no que quer, a gente acredita no que pode.

* * *

algumas pessoas às vezes me perguntam:

“então, você está vivo para quê?”

“para nada,” eu respondo. “para absolutamente nada. só estou vivo. não basta?”

a pessoa insiste:

“qual é o sentido da sua vida, então?”

“nenhum”, eu respondo. “absolutamente nenhum. só estou vivo. não basta?”

algumas vezes, a pessoa desafia:

“então, por que não se mata?”

além de ser uma pergunta agressiva e mal-educada, confesso que nunca entendi bem essa provocação. é como se eu estivesse gostosamente me balançando em uma rede e alguém perguntasse:

“se você sabe que vai ter que levantar daí inevitavelmente, por que não se levanta agora?”

mas a resposta me parece simples e auto-evidente:

“eu não me levanto agora porque agora estou muito bem aqui me balançando na rede.”

então, não me mato agora porque agora estou muito bem aqui vivo, comendo pipoca e me masturbando, indo à praia e lendo freud, essas coisas que uma pessoa faz quando está viva. não me mato porque quero ler o próximo romance do lobo antunes e ver o próximo filme do almodovar. não me mato porque tenho pelo menos umas quatro peças de teatro e uns cinco romances na cabeça que ainda quero escrever.

mesmo em um universo aleatório e sem deus, por que essas prosaicas razões não deveriam ser suficientes para uma pessoa não se matar?

quando chegar a hora de levantar, eu levanto. quando chegar a hora de morrer, eu morro.

até lá, aproveito.

* * *

uma amiga me perguntou:

“como alguém, um ser humano, consegue suportar a ideia de que, a qualquer sopro malfadado do destino, pode morrer e simplesmente sumir? nunca mais sentir, amar, sorrir, brigar, pensar, existir? … para a minha pobre consciência simplesmente e inadmissível deixar de existir.”

mas… se tudo acaba, se até mesmo o sol vai acabar, por que seria justamente eu a não acabar nunca? por que eu seria tão importante assim? aliás, por que a questão da minha existência seria minimamente importante? por que eu deixar de existir é mais ou menos dramático do que um coelho deixar de existir?

passei a existir no momento no tempo que convencionamos chamar de 1974 mas, antes disso, eu não-existi por um período literalmente infinito. e não foi ruim. não doeu. não foi desagradável.

muito em breve, voltarei a não-existir por um período infinito de tempo. se não era ruim antes, por que seria ruim depois? por que ter medo de voltar a um estado que já experimentei e que não foi ruim?

na verdade, considerando o tempo que passamos existindo e o tempo que passamos não-existindo, nosso estado natural é a não-existência.

existir seria apenas um breve soluço, um glitch, um bug, dentro de uma perfeita, plena e eterna condição de não-existir.

somos todos seres inexistentes que, por um acaso, existem.

mas não por muito tempo.

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o porta-retratos sem retratos

dormi recentemente na casa de uma moça formada em letras. havia um porta-retratos vazio na estante.

em algum momento, presumo, a moça abriu o porta-retratos e retirou dali seja a foto antiga (amigo estremecido? ex-namorado?) ou foto genérica que veio da loja.

então, com o porta-retratos aberto em sua frente, ela poderia ter simplesmente já colocado uma nova foto (amiga recente? sobrinho recém-nascido?) ou guardado o porta-retratos em uma gaveta à espera de momentos recordáveis.

ao invés disso, ela fechou o porta-retratos sem retratos e o colocou, montado, de pé, em lugar de destaque em sua estante. para todo mundo ver o nada. como se fosse o próprio vazio aquele ente querido cuja imagem ela quer preservar, acarinhar, rever.

* * *

um dos livros mais importantes da minha vida é o mumonkan ou, em português, a porta sem porta.