Só existe um “Outro” que pode ser excluído porque existe uma normalidade intolerante que o define fora dela.
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A origem da “normalidade”
A ideia da “normalidade” nos parece tão normal ao ponto de ter sempre existido, mas ela não é tão normal assim.
Na língua inglesa, a palavra “normal” somente passa a ter a acepção de
“constituting, conforming to, not deviating or different from, the common type or standard, regular, usual”
por volta de 1840. Na nossa língua, o dicionário Houaiss registra a data de 1836 e define “normal” como
“conforme a norma, a regra; regular; que é usual, comum; natural; sem defeitos ou problemas físicos ou mentais; cujo comportamento é considerado aceitável e comum (diz-se de pessoa)”.
O conceito de “normal” tem a mesma idade do trem e da fotografia. E, assim como a humanidade viveu muito bem obrigado por milhares de anos sem andar de trem e sem tirar fotos, viveu também sem a ideia da normalidade.
Antes de 1840, “normal” significava “perpendicular”. A partir desse momento, com a ascensão da estatística e da eugenia, “normal” começa a se aproximar do conceito de “média estatística”.
Para isso, o primeiro passo é presumir que uma população humana possa ser normatizada, ou seja, que a maior parte dessa população seria de alguma maneira parte de uma “norma”, que estaria na média ou em torno dessa média. (Em consequência, se existe uma população padrão, na média, normal, então é porque necessariamente existe uma população abaixo do padrão, fora da média, anormal.)
Essa ideia, tristemente óbvia para nós que vivemos oprimidos por ela há um século e meio, não faz muito tempo era radical e revolucionária. E, em breve, deu dois filhotes importantíssimos.
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Eugenia: o racismo científico e institucionalizado
Em primeiro lugar, a eugenia social e sua principal ferramenta prática, a antropometria.
Sem a noção de normalidade estatística, não faria sentido mensurar antropometricamente todo o corpo humano em busca das dimensões ideais, do nariz perfeito, do crânio mais simétrico.
A partir do momento em que se determina quais são as dimensões ideais no nariz humano mais perfeito, quanto mais um indivíduo ou grupo étnico se afasta desse ideal, mais involuído, imperfeito e anormal ele é.
Naturalmente, essas medições não eram neutras. Os cientistas brancos europeus naturalmente concluiram que as suas medidas eram as medidas do homem ideal e que as medidas dos homens que eles já oprimiam e exploravam nos trópicos eram as medidas dos homens involuídos que precisavam ser tutelados.
Antes de ser levada às últimas consequências pelos nazistas e então descreditada, a eugenia passou cem anos sendo amplamente aceita no ocidente.
Por exemplo, em “O Carbúnculo Azul“, Sherlock Holmes deduz que uma pessoa é intelectual somente pelo tamanho do seu crânio. Aqui, no Brasil do século XIX, fazíamos cálculos complexos de quantos imigrantes europeus teríamos que receber por ano para nos tornarmos um país branco até 1950 ou até o ano 2000.
Tudo isso parece muito legal e muito inócuo, até que os nazistas começaram a decidir quem era homem-superior e quem era escória-humana-pra-ser-exterminada com base nessas teorias, com base em quem tinha o nariz assim e o lóbulo da orelha assado.
Aí acabou a graça.
(Sobre eugenia, leia: “Eugenia, a biologia como farsa“.)
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Psicanálise freudiana e a busca pela fugidia sexualidade normal
Como pensar o século XX sem a psicanálise freudiana e a ideia de que existe um desenvolvimento psicossexual normal do ser humano? Não vou repisar aqui o terreno já bem carpinado por Foucault: o conceito de normalidade em psicanálise é uma das forças mais opressoras da humanidade em todos os tempos.
Pensem comigo: é relativamente fácil determinar qual é o funcionamento normal, ou seja, correto, adequado, de acordo com os parâmetros, de um rim ou de um coração e, consequentemente, saber quando um rim não está funcionando direito e precisa ser consertado, retificado, normalizado.
Mas como determinar o que é um estado mental normal? O que é uma sexualidade normal?
O que é um comportamento social normal?
(Sobre psicanálise e normalidade, gosto muito, muito mesmo, desse artigo: A patologização da normalidade. É verdade que, no fim da vida, Freud começou a fugir desse conceito de normalidade, como explicado em O normal e o patológico em Freud.)
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O normal daqui não é o normal dali
Se uma mulher leva um esporro do chefe e chora no meio do escritório, isso é visto como relativamente normal; afinal, mulheres são mais emotivas, mais sensíveis, blá blá. Se um funcionário homem chora depois da reprimenda, isso é muito mais grave, indica um distúrbio psicológico muito mais sério, essa pessoa está completamente sem controle emocional; afinal, homem não chora, blá blá.
Se um pai e um filho falam aos berros sempre no meio da rua, eles são uma família normal em Havana, onde todo mundo fala gritando pela rua, mas são elementos psicologicamente instáveis e perturbadores da ordem pública em Zurique, onde estão a um passo de ser forçosamente internados num hospícios pelos vizinhos.
Um homem branco que não consegue tolerar a ideia de usar um banheiro que foi usado por um negro é um cidadão normal na Atlanta de 1850 (aliás, na de 1950 também), mas tem uma patologia grave na Atlanta do ano 2000.
Ou seja, ao contrário do rim e do coração, nossos parâmetros de comportamento normal não podem ser separados de nossos preconceitos socialmente construídos, e que dependem do lugar e da época onde vivemos.
Chorar no escritório só nos parece mais grave e mais preocupante quando é um homem justamente por causa de nossas ideias pré-concebidas de como homens e mulheres devem se comportar no ambiente de trabalho.
Do mesmo modo, o comportamento normal em Havana é anormal em Zurique e, mais ainda, um comportamento sexual perfeitamente normal em 2012 poderia te levar preso em 1960, ou queimado em 1660.
Então, se o conceito de normal muda tanto, seja no tempo e no espaço, de um gênero para outro, de uma nacionalidade para outra, faz mesmo sentido falar em “normalidade”? Isso existe?
A normalidade serve pra alguma coisa?
(Um texto excelente sobre distúrbios psicológicos e conflitos culturais: “Do some cultures have their own ways of going mad?”)
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Os gays, esses anormais
Para não ir muito longe, durante décadas a ciência classificou a homossexualidade como uma perversão, uma doença, um distúrbio, uma condição anormal. Afinal, se o normal é homem gostar de mulher, então um homem que gosta de homem é anormal e o que é anormal tem que ser normatizado.
Foi só em 1973 que a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia fez o mesmo somente em 1985, e apenas em 1999 afirmou categoricamente que
“a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”
e que os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura da homossexualidade.
Enquanto isso, no ato em si, tudo permaneceu igual. Os gays hoje não enfiam pau no cu uns dos outros de maneira mais psicologicamente sadia e menos pervertida do que em 1960.
Foram só os tempos que mudaram. Ainda bem.
(Sobre a “anormalidade” dos gays, leia “Poder, anormalidade e homossexualidade: Aportes de Kinsey e Foucault“)
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A normalidade é tentadora, mas mortal
A ideia de normalidade nos parece muito natural, muito sedutora, muito “normal”. Várias vezes por dia, defendemos alguma coisa dizendo que “isso é que é o normal” ou criticamos algo dizendo que “isso não é normal”. Mas raramente pensamos como essa ideia é insidiosa, perversa, excludente, opressora, tirânica.
Afinal, todos também temos nosso lado anormal. Aquele lado que não podemos falar em voz alta. Que nos envergonha. Mas… E daí? Ser anormal é errado por definição?
Se quase todos os homens têm tesão em mulher mas alguns poucos homens têm tesão em homens, e daí? Por que isso seria errado somente por não ser “normal”? Por que não encarar com naturalidade nossas diferenças ao invés de tentar forçosamente enfiar o grosso da espécie humana em um entendimento estreito de normalidade que, por definição, exclui outros tantos infelizes? Quem gosta de uma coisa que pouca gente gosta é errado, estranho, anormal só por estar em minoria?
Poucas coisas são mais nocivas e perversas do que essa nossa ideia de “normal”. Quanto antes nos livrarmos dela, melhor.
Não pode ser normal vivermos assim oprimidos pelo normal.
(Muitas das observações acima são paráfrases do livro Enforcing Normalcy: Disability, Deafness, and the Body, de Lennard J. Davis, a partir de trechos selecionados pelo Fernando Serboncini.)