Os monges foram os primeiros revolucionários e os monastérios, as primeiras utopias.
Em todas as sociedades, a maioria das pessoas vive no piloto automático, passivas e inconscientes, aceitando a narrativa hegemônica e jogando pelas regras do jogo, pensando pouco e questionando nada, mais preocupadas com o dia-a-dia cotidiano do que com as grandes questões existenciais e filosóficas.
O monge, pelo contrário, é a pessoa que pensou e questionou, que não aceitou a narrativa corrente e recusou as regras do jogo, que escolheu criar uma nova sociedade sob novas regras e adotar um estilo de vida mais deliberado e mais refletido.
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Uma vez, perguntaram ao monge beneditino John Main por que ele havia se tornado monge. Ele respondeu que foi por sua vontade de ser totalmente livre.
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Sou escritor. Quem vive de escrever sabe que as palavras não valem nada. Livros, textos, artigos, resenhas, manifestos são perfumaria. O papel aceita tudo. O que conta é o que a gente faz: nossa conduta, nossa postura, nosso exemplo. O que conta é onde colocamos nosso corpo.
Minha vida e meu corpo, minha existência e minha carne, são os únicos materiais brutos, verdadeiros, concretos que tenho para fazer arte, para colocar na mesa, para contribuir ao grupo, para apostar na roleta da História. Escolhi viver minha vida em público porque a vida de uma artista deve ser, antes de tudo, uma obra de arte.
Desde viver relações não-monogâmicas até abrir a casa para visitas, desde aceitar dinheiro das mecenas até dar gratuidades em meus encontros, desde escrever dedicatórias apócrifas até incluir biografias fictícias em meus livros, nada do que eu faço é natural ou espontâneo: cada um desses gestos é um ato de criação artística deliberado e consciente.
O objetivo de tanta evasão de privacidade em meus textos nunca foi me gabar ou convencer alguém de qualquer coisa, mas simplesmente mostrar que era possível viver outra vida, de outro jeito, com outras regras, pensando em cada escolha, com mais consciência, com mais reflexão.
Vivi e vivo minha vida em público, o que Deus sabe que é um sacrifício, porque foi a maneira que encontrei de comunicar às ovelhas negras, às pessoas perdidas e insensatas, que elas não estavam sozinhas.
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Diziam os Padres do Deserto que o Santo era uma farpa na carne da História.
Os monastérios também são farpas na carne da civilização, lembretes permanentes e incômodos, por sua própria existência e resistência, que nem todo mundo aceitou a narrativa hegemônica, que nem todo mundo está jogando esse mesmo jogo, que é possível uma outra vida, uma outra condição, uma outra liberdade.
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“Samvega”, um sentimento essencial que não tem tradução para o português:
“Uma sensação…
… de choque, ao perceber a falta de sentido e futilidade da vida como é vivida em nossa sociedade;
… de consternação, ao reconhecer como nos entregamos com tanta cegueira e complacência a esse estilo de vida;
… de urgência, em buscar uma saída desse ciclo nocivo que agora enxergarmos.”
Sem samvega, dizia o Buda, não é possível nenhum tipo de mudança pessoal, de autoconhecimento, de autoconstrução.
Sem samvega, também não existiriam monges nem monastérios.
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Shantideva agradecia aos seus desafetos, pois lhe ajudavam a cultivar sua samvega. Por outro lado:
“Elogios e louvores me atrapalham e me distraem:
aumentam minha segurança e minha complacência.
Ao me sentir menos insatisfeito e menos deslocado,
diminui minha urgência em percorrer o caminho.”
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Todas as pessoas que me acompanham, que leem meus textos, que vêm aos meus encontros, estão tomadas por diferentes graus de samvega.
Obrigada a todas vocês por estarem comigo nesse caminho.
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Afinal, ser uma pessoa bem-sucedida em um mundo canalha quase sempre é indicativo de nossa própria canalhice.
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A anedota de John Main está em seu livro, Meditação Cristã. “O santo é uma farpa” está em A montanha no oceano, de Jean Leloup, e ele não diz a fonte. O verso de Shantideva está no Caminho do Bodisatva, capítulo 6, estrofe 98. O terceiro e quarto versos são uma tradução adaptada para “sentir menos samvega”.