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fetiche de entendimento

Depois de Mulher de Um Homem Só, algumas leitoras gostam de dizer que eu “entendo muito de mulher”. Meu ego ronrona, as namoradas riem (“quem não te conhece que te compre, Alex”) e fica tudo por isso mesmo, mas o elogio desmascara um pouco do nosso fetiche de entendimento.

Elogiar alguém por “entender de mulher”, por exemplo, significa sugerir que existe uma “essência intrínseca de mulheritude” que está disponível para ser observada, apreendida, compreendida, definida, nomeada e passada adiante. Mas temos mais de três bilhões de mulheres no mundo, de todas as cores e tamanhos, profissões e temperamentos, culturas e idiomas. O que podem ter em comum?

Já seria temerário tentar entender grupos pequenos e limitados, como alguém poderia entender “as mulheres”? Meia humanidade? Como alguém poderia achar isso possível? Como alguém poderia achar isso desejável? Será mesmo que entender alguém é o melhor que podemos fazer por essa pessoa?

Não, eu não entendo nada de mulher. Até porque eu não entendo ninguém. Não entendo nem a mim mesmo. Mais importante, não acho que entender seja desejável. Para que desejamos tanto entender? O que fazemos de bom com tanto entendimento?

Essa nossa ânsia por entender tem o mesmo ímpeto autoritário de outras ânsias, como definir, nomear, buscar a verdade.

Entender X nada mais é do que uma tentativa de simplificar X ao seu mais básico denominador comum, de modo a poder defini-lo e nomeá-lo e, assim, chegar à verdade sobre X. Mas esse processo de simplificação é, por definição, redutor e autoritário: você lança o seu olhar sobre X, ignora inúmeros aspectos relevantes (praticamente qualquer objeto é mais complexo do que sua explicação), constrói uma narrativa explicativa baseada somente nos aspectos específicos sobre os quais você decidiu se concentrar, e, por fim, crava-lhe um rótulo autoritativo, dizendo “A verdade sobre X é isso!”

Entender, definir, nomear e buscar ou articular uma verdade são todas operações autoritárias demais pra minha cabeça. Entender é reduzir, definir é matar, nomear é controlar.

Eu não tento entender ninguém. Eu observo, eu escuto, eu aceito. Tento me colocar na posição da outra pessoa e ver o mundo como ela vê.

Entender é um gesto de dominação e redução. Aceitar é um gesto de amor e generosidade.

* * *

De vez em quando, em conversa com namoradas, elas dizem, exasperadas:

“Ai, Alex, você não me entende!”

E minha resposta é sempre mais exasperante ainda:

“É, não entendo mesmo. Não entendo a mim. Não entendo o mundo. Não entendo as prioridades dos meus amigos, que fazem sacrifícios que eu jamais faria pra poder comprar coisas que eu jamais compraria. Não entendo nada. Vou entender logo você? Você teve outra vida. Tem outro temperamento. Outro corpo. Outros desejos. Você é um outro universo. Mas eu te aceito, eu te amo e estou aqui do seu lado.”

17 respostas em “fetiche de entendimento”

Vi agora o comentário que fiz há quase um ano… Sem notar que tinha sido eu, pensei até “que comentário espertinho!”.

Mas.

Participo desse jeito de ver, que não admite uma “essência intrínseca das coisas que está aí para ser entendida” e muitas vezes acabo sem ter opinião sobre nada, porque tudo é vazio.

E essa sensação “dá uma angústia do diabo…”

Oi Alex,

adorei seu texto e até me emocionei!!!! principalmente com essa parte: “Eu observo, eu escuto, eu aceito. Tento me colocar na posição da outra pessoa e ver o mundo como ela vê.

Entender é um gesto de dominação e redução. Aceitar é um gesto de amor e generosidade.”

várias pessoas já me chamaram de doida por isso exatamente… observar e aceitar!!! não aceitam q eu aceite, é isso!

Alex, é muito frustante ler os seus textos (por que ainda leio? faça pergunta mais fácil…).

Vc descreveu uma das coisas que eu considero mais admiráveis, uma daquelas coisas que faz a vida mais tolerável, como algo ruim, “autoritário”…

Do que estou falando? falo do desejo, da curiosidade de tentar apreender “a realidade”, aquela sensação, quase pueril, de excitamento diante da descoberta da “verdade”… enfim, a vontade de entender, não importa o que seja…

Até entendo que há perguntas tão mal formuladas que não faz sentido tentar encontrar uma resposta… e que todo processo de entendimento, por óbvio, encerra uma simplificação, mas o que vc quer? verdades absolutas? certezas totais? claro que não, imagino.

Todo cientista ou filósofo sabe que quando ele tenta entender o mundo, ele o faz por meio de modelos mentais sempre passíveis de ajustes e correções… Mas isso é o melhor que podemos fazer, e isso deveria bastar. Não se trata de autoritarismo, muito pelo contrário. Trata-se de uma tentativa humilde e honesta de entender “a realidade”.

Abraços,
Adriano

Praticamente perfeito, caro Alex, exceto pelo fato de tentar se colocar na posição do outro é também uma redução drástica e perigosa e que, não leva a entendimento algum, apenas talvez a verossimilhanças, se estas forem possíveis.
Abraços!

Como disse ao mestre Shunryu Suzuki: “As soon as you see something, you already start to intellectualize it. As soon as you intellectualize something, it is no longer what you saw.”

Oi Fábio

Não entendi bem o exemplo. Que diferença pode fazer a opinião de uma única pessoa, nem que seja o Foucault, para alguém que defenda direitos iguais aos homossexuais?

Alex,
Esse é o tipo de coisa que me preocupa muito em discussões sobre preconceito. Muitas pessoas, geralmente com visões polarizadas sobre certo assunto, dão opiniões firmes como se soubessem tudo sobre o assunto. E, não raro, pessoas que pertencem ao grupo em questão lançam uma opinião, que muitos daqueles do grupo não gostariam de ouvir, como se fosse a posição “oficial” do grupo. Isso lembra uma palestra em que contaram que Foucault era absolutamente contra o casamento gay, pois ele, “leather”, achava um “retrocesso careta”.

Adorei esse texto. Já repassei nas redes. Repasso de novo. Aceitar é o que as pessoas não querem. E não querem mesmo. Elas querem “entender”, “convencer”, “discutir”, “argumentar”. E não que eu seja melhor do que ninguém, mas buscar aceitar já é parte do caminho andado. Não me arrisco a dizer quanto. Mas parte.

Penso que tentar entender não é somente um ato de poder, mas uma necessidade da razão; sem ela, não teríamos inventado nem uma machadinha, nem a usar uma corda, inventar a roda ou a escada. O poder conjugado com o saber é que é um perversão comum, uma conjugação não necessária, mas imposta depois de milênios de construção de argumentos dispostos pela humanidade na forma de linguagem, cuja precisão, sempre muito distante, pode ter engendrado, com o acúmulo de erros, distorções que nos trouxeram ao atual estado de coisas, que não expressa nenhuma natureza humana, seja de homem, seja de mulher, seja até do cão que te olha talvez tentando te entender, mas aí o abismo é ainda maior.

Entender o universo feminino? Tarefa inglória, heim? Muitas vezes nem eu me entendo. E é como você disse… a diversidade. Não há duas mulheres iguais – assim como não há dois homens iguais. Isso são tentativas de simplificação, codificação, classificação… Mas o ser humano nunca será assim tão matemático…

Agora, não acharia a sua resposta exasperante não. Acharia bem reconfortante, aliás.

Ah Eu gosto de entender o outro e assim evitar conflitos com essa pessoa, pois entender um pouco como o outro pensa ajuda na hora de uma briguinha por causa de um velho hábito que a outra pessoa tem ou que nós mesmos temos. Melhor do que entender é conhecer os outros e a si mesmo. Eu acho interessante conhecer e entender. Mas acredito que cada um tem seu ponto de vista e respeitar isso é o caminho.

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