conversando com uma amiga sobre homofobia, ela de repente me sai com essa:
“alex, falar essas coisas que você fala é muito fácil! na prática, na verdade, diz aí: você preferia ter uma filha gay ou uma filha ladra?”
quando finalmente parei de rir, respondi que “gay”, claro, mas por pouco.
afinal, por um lado, não consigo imaginar nenhum problema possível ou imaginário em ter uma filha gay.
e, por outro, como nunca tive nenhum amor pela propriedade privada, não vejo “ser ladra” como algo tão horrível assim. mas faltaria explicar muita coisa: como assim, “ladra”? existe isso de “ser ladra” como categoria ontológica definidora do indivíduo? ela rouba por compulsão? porque precisa pra alimentar as filhas? por diversão? por ideologia anti-capitalista? ela consegue se abster de roubar se for necessário? ela rouba com violência ou somente furta? ela rouba de quem pode absorver o prejuízo ou rouba as poupanças de velhinhas aposentadas?
naturalmente, minha amiga achou que eu estava de sacanagem. pra ela, nenhuma dessas distinções tinha nenhuma importância e, por motivos que sinceramente não consigo conceber, lhe era auto-evidente que ter uma filha gay destruía a felicidade de qualquer pessoa.
aliás, felicidade muito mequetrefe essa que se deixa destruir pela orientação sexual de terceiras.
* * *
talvez ela devesse ter me feito outras perguntas:
“alex, o que você prefere: uma filha homofóbica ou racista? conservadora cristã ou que usa uma camiseta 100% branca? que acha que são paulo leva o país nas costas ou que é membro da opus dei?”
mas o pior é que seriam falsas escolhas. porque a racista quase sempre é a homofóbica. a conservadora cristã quase sempre usaria a camiseta 100% branca. a membro da opus dei quase sempre acha que são paulo sustenta o brasil.
como separar? onde termina a loucura e começa a nojeira? onde termina a falta de empatia e começa a falta de caráter?
é por isso que nunca respondo perguntas hipotéticas.
* * *
talvez o mais interessante tenham sido as escolhas da minha amiga para “pior coisa que se pode querer para uma filha”:
“gay e ladra”.
não assassina e flamenguista. não freira e agressora doméstica. não libriana e corrupta. não anarquista e sonegadora. não pedófila e gamer.
mas sim “gay e ladra”. uma que vai contra a heteronormatividade e outra, contra a propriedade privada.
ou seja, o termo “heterocapitalista” deve ter sido inventado para descrever exatamente minha amiga.
na verdade, a palavra “heterocapitalismo” serve, antes de mais nada, para irritar as heterocapitalistas.
se eu digo que quero destruir o “heterocapitalismo” e você já fica puta, arranca os cabelos, diz que isso não existe… então, é você.
* * *
para chamar atenção para o sexismo da nossa língua, o texto acima usa o feminino como gênero neutro.