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O que é ideologia

Ideologia é como espinafre no dente: a gente só vê o dos outros.

Ideologia é como espinafre no dente: a gente só vê o dos outros.

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Muitos e muitos anos atrás, eu morava em Nova Orleans, dividindo uma casa com diversas pessoas, entre elas um chef de cozinha que tinha vindo lá do Kansas para trabalhar no melhor restaurante da cidade.

Um dia, foi demitido. (“O chef não gostou da minha salada de melancia…”, choramingou ele.)

Apesar do prestígio de fazer parte de um restaurante famoso em todo o mundo, as condições de trabalho eram péssimas. Não tinha carteira assinada, plano de saúde, férias. Precisava trazer seus próprios apetrechos: ia para o restaurante todo dia com uma malinha de caríssimas facas e panelas. O pior mesmo era ganhar por hora trabalhada e não ter horas fixas. Quando o movimento estava fraco, lhe mandavam de volta pra casa, às vezes por uma tarde, às vezes por vários dias, sempre sem receber. Quando o movimento estava bom, lhe faziam ficar até o último cliente. Resultado: nunca sabia quanto ganharia no final do mês, mas não podia se arriscar a pegar um segundo emprego em suas horas livres.

Eu, meio chocado com essas condições de emprego, que para um restaurante nos Estados Unidos eram até normais (ficar regulando relação entre empregadas e empregadoras é coisa de comunista, cruz credo!), lhe contei como funcionavam as leis trabalhistas no Brasil.

E ele, ali na varanda de nossa casa, fumando e bebendo compulsivamente, em um momento de absoluto desespero, rejeitado pelo emprego dos seus sonhos, sem saber para onde iria ou como pagaria o próximo aluguel, zerado de economias e cheio de dívidas estudantis, esse homem, nesse momento da sua vida, ouviu sobre o FGTS e automaticamente, instintivamente, sua primeira reação foi:

“Mas não fica muito caro contratar e demitir pessoas?”

Ideologia é isso.

* * *

A questão não é se meu colega de casa está certo ou errado, se FGTS é bom ou ruim, se as leis trabalhistas engessam ou não a economia. A questão é a ideologia que fundamenta e embasa nossa interpretação da realidade.

Esse menino do Kansas, nascido e criado no coração dos Estados Unidos, mesmo quando demitido de um emprego onde não tinha nenhum direito trabalhista, ainda assim vê, pensa, percebe, reflete, entende o mundo… do ponto de vista das classes empregadoras. Sua primeira reação foi se colocar não em seu próprio lugar (“poxa, se eu morasse num país como o Brasil, pelo menos ganharia um dinheirinho agora…”) mas no lugar do chefe que tinha acabado de despedi-lo.

Passo boa parte do meu tempo tentando fazer pessoas privilegiadas (homens, pessoas brancas, hétero, cis, classe média, etc) se identificarem com as desprivilegiadas (mulheres, negras, gays, trans*, etc). É uma tarefa muito, muito difícil.

Uma ideologia como a norte-americana, que consegue quebrar nossa tendência natural de puxar a sardinha para o nosso lado, só podia mesmo ser uma das mais bem-sucedidas do mundo.

Pena que, em vez de fazer as pessoas ricas se identificarem com as pobres, faz as pobres se identificarem com as ricas.

* * *

Nesse ponto, algumas pessoas leitoras, admiradoras da ideologia norte-americana, talvez estejam reclamando da ideologia esquerdista do meu texto.

Mas é impossível um texto não ter ideologia ou não estar totalmente imerso na ideologia da pessoa que o escreveu e da sociedade que a produziu. Quando você tem a ilusão de ler um texto que não é ideológico, isso simplesmente quer dizer que o texto tem a mesma ideologia que você: logo, que a ideologia do texto é invisível.

A pessoa que reclama de não aguentar mais “tanta ideologia” não é uma livre-pensadora, descompromissada e apolítica tentando formar suas próprias opiniões, mas sim uma pessoa mentalmente preguiçosa e de cabeça fechada, que só gosta de se expor às opiniões com as quais já concorda e que se sente extremamente incomodada quando exposta à opiniões diferentes.

Existem muitas ideologias. A ideologia desse meu texto, de achar que ideologia está em todo lugar, é uma delas.

A ideologia de se achar sem ideologia, por outro lado, é uma das ideologias mais disseminadas em nossa sociedade, especialmente entre as pessoas bem-nascidas de inclinação conservadora, que fazem desabafos como:

“Sou apenas um indivíduo livre, não tenho raça, não sou afiliado a partido, não tenho ideologia, não me meto em política! Quero só ficar aqui quietinho no meu canto, trabalhando duro, cuidando da minha família, viajando, curtindo meus livros, sendo feliz!”

Certo ou errado, o problema de quem fala essas coisas é não perceber a sua própria ideologia.

Ideologia é como espinafre no dente: a gente só vê o dos outros.

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Ideologia é o conjunto de ideias, saberes, preconceitos, etc, que permite que as pessoas se relacionem com e façam sentido da realidade: são as lentes através das quais percebemos o mundo. Por isso, ideologia não é algo necessariamente ruim, e muito menos algo oposto à “verdade”. Não existe essa tal “verdade a-ideológica”: qualquer verdade será sempre apreendida através da ideologia de quem a vê.

Uma das definições mais famosas de ideologia é do filósofo francês Louis Althusser, escrevendo em 1970: a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência, gerando assim uma representação distorcida da realidade.

A definição de Althusser, porém, dá a entender que a “representação distorcida da realidade” seria resultado de vermos o mundo através de uma ideologia falsa ou falha: se apenas tivéssemos escolhido a ideologia correta, então perceberíamos a realidade de forma não-distorcida.

Mas, considerando que nossos sentidos e nossa cognição são inerentemente falhos e limitados, todas as representações da realidade apreendidas através deles serão sempre, por definição, distorcidas.

Não temos a capacidade de perceber a realidade de forma não-distorcida.

(Pensem em quão ególatra seria alguém capaz de bater no próprio peito e se auto-afirmar ser “a pessoa que vê o mundo como ele realmente é”, “a pessoa que enxerga todas as coisas como elas verdadeiramente são.”)

Uma definição de ideologia mais neutra, que não presume que ideologia seja algo negativo ou falso, é a da historiadora norte-americana Barbara Fields, em 2012:

“A ideologia é melhor compreendida como um vocabulário descrito da vida cotidiana, necessário para que as pessoas possam conferir um sentido básico à realidade social, vivida e criada por elas a cada dia. É a linguagem da consciência que possibilita a relação específica entre pessoas. É a interpretação em pensamento das relações sociais através da qual elas constantemente produzem e reproduzem o seu ser coletivo em todas as suas mais diversas formas: família, clã, tribo, nação, classe, partido, empreendimento, igreja, exército, associação, etc. Deste modo, as ideologias não são ilusões, mas sim reais, tão reais quanto as relações sociais pelas quais elas se mantém.”

* * *

Meu colega de casa não passou nem duas semanas ocioso e logo foi contratado por outro restaurante, também um dos melhores da cidade e com as mesmas e sofríveis condições de trabalho.

Segundo a ideologia dele, tudo aconteceu tão rápido porque, em uma economia de mercado sem tantas regulamentações trabalhistas, é muito mais fácil e descomplicado contratar.

Segundo a minha ideologia, foi uma combinação de sorte e talento.

A gente não enxerga o que quer, enxerga o que pode. Inclusive eu. Inclusive você.

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O texto acima faz parte da Prisão Religião.

Os próximos encontros “As Prisões” serão em São Paulo (25 de setembro) e Curitiba (2 de outubro). As inscrições estão abertas.

 

5 respostas em “O que é ideologia”

Caro Alex,

Por conta da falta de tempo, farei um comentário corrido. Gostei muito da exposição da problemática sobre a ideologia, além de concordar com a definição da categoria enquanto uma “lente” através da qual enxergamos a realidade. Entretanto, discordo da conclusão, pois tive a impressão de que você cai em um relativismo epistemológico: não é possível que o pensamento humano alcance uma verdade objetiva, sobre algum objeto específico, mas apenas aquilo que o próprio pensamento reflete este objeto. Até onde sei, essa é a descrição da gnosiologia kantiana, típicamente idealista.

Por outro lado, acredito que certas ideologias mistificam mais a realidade do que outras. A realidade exterior ao pensamento é objetiva, independente da consciência que possuímos dela, logo deve ser investigada cientificamente. Entretanto, saber até que ponto a subjetividade humana, através de dados instrumentos ideológicos, conseguiu fazer uma reflexão o mais verossímil possível da realidade objetiva, de fato, não é um trabalho fácil.

Certas lentes projetam um reflexo embassado na retina, outras nos proporcionam uma imagem nítida dos objetos iluminados pelo sol. Logo, é possível que certas pessoas enxerguem melhor certos aspectos das relações sociais do que outras, seja por um insight, seja por que investigou seu objetivo de estudo, seja por que está em uma posição social na qual certas alienações não são profundas.

E o que vem primeiro : as relações sociais ou a ideologia ? A ideologia depende da relação social ou a relação social depende da ideologia ?

Obrigado pelo texto! Apesar de parecer sem nenhum viés ideológico para mim (rsrsrs), ainda assim gostei da exemplificação do como entendemos o que vemos. Um abraço!

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