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História da minha rua

me deu vontade de escrever sobre a minha rua.

me deu vontade de escrever sobre a minha rua.

todo mundo tem a sua rua. essa é a minha.

minha rua tem o sobrenome de um médico obscuro, sem primeiro nome. ela nunca teve outro nome.

minha rua é a cara do rio, uma cidade que o veríssimo uma vez definiu como aquela impossível faixinha de areia entre o mar e a montanha: minha rua começa (ou termina) no oceano Atlântico e termina (ou começa) no morro do Cantagalo/Pavão — por acaso, nomes que remetem à aves.

minha rua, ali onde ela encontra o mar, no posto cinco, é onde inventaram o frescobol, o único esporte do mundo sem vencedores nem vencidos. ou pelo menos é isso que diz um mural do millôr ali perto.

 

minha rua na década de 1950.
minha rua na década de 1950.

 

minha rua é pequena: tem apenas três quarteirões. o quarteirão mais antigo, na quadra da praia, é de quando o bairro foi urbanizado, na década de 1890. o quarteirão mais recente, onde moro, foi urbanizado em 1957. todos os prédios do quarteirão são dessa época.

minha rua tem muitos prédios mas só duas casas. uma delas se chama casa de pedra e, depois de muito tempo abandonada, hoje abriga um salão de beleza chique. a outra se chama casa villiot, em homenagem ao arquiteto italiano que a projetou em 1929, e hoje abriga uma biblioteca municipal infantil. ambas são tombadas. a casa de pedra é muito bonita, mas a casa villiot é uma das casas mais incríveis, insólitas, originais que já vi em toda minha vida. seus ângulos impossíveis parecem algo saído de uma pintura de pickman, personagem (naturalmente louco) de h. p. lovecraft.

 

minha rua em 1929.
minha rua em 1929.

 

minha rua tem três hotéis e estão reformando um prediozinho para fazer um novo hostel. além disso, muitos moradores alugam seus apartmentos por temporada. no ano-novo e carnaval, praticamente não sobra morador no meu prédio: alugam para gringos e vão passar as festas em outro lugar. na minha rua, se ouvem todas as línguas.

minha rua tem duas bancas de jornal e uma biblioteca, já citada, onde posso ler todos esses jornais de graça. por que as pessoas ainda compram jornal?

minha rua tem único restaurante, caro, mas é um dos melhores restaurante de frutos do mar da cidade, uma dissidência do incrível bira, de barra de guaratiba — que, por sua vez, já era uma dissidência do tia palmira.

minha rua tem uma banda de carnaval bem agitada. eu nunca fui. não sou de carnaval.

minha rua tem uma casa de sucos, um boteco, um pé sujo e uma pastelaria chinesa; uma lavanderia, um hortifruti, um brechó, e uma joalheria; uma estação de tratamento de águas e um espaço cultural alternativo com teatro e aula de ioga.

minha rua tem uma ladeira que sobe para a favela. na esquina, sempre tem um carro da polícia militar com vários oficiais de armas agressivamente em punho. como se dissessem: estamos aqui, na fronteira entre a civilização e a barbárie, para proteger os cá debaixo dos aí de cima. e eu, cada vez que passo por ali, morro de vergonha de ser protegido por essa polícia.

na minha rua tem uma estação do metrô e um bicicletário para alugar bicicletas, mas não passa ônibus.

minha rua tem árvores centenárias. a prefeitura passou a semana passada inteira podando essas árvores e, por causa disso, não se pode estacionar carros na minha rua. minha rua ficou linda e ampla sem os carros: chamou mais atenção para as árvores.

eu gosto da minha rua.

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