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a Grande Conversa

tudo o que eu sempre quis foi fazer parte da Grande Conversa.

tudo o que eu sempre quis foi fazer parte da Grande Conversa.

* * *

quando eu era criança, não tinham muitos livros na minha casa. meu pai e minha mãe eram pessoas instruídas, mas não eram leitoras. haviam alguns livros de arte da minha mãe (formada em belas artes) e muitos agatha christie, sidney sheldon, morris west e afins do meu pai.

na sala, havia uma enciclopédia britânica, edição de 1978, comprada mais por decoração e por status do que por leitura. (nunca vi nenhum dos dois mexendo nela, nem falavam inglês o suficiente para lê-la.) 

talvez tenham comprado pra mim.

nesse caso, foi um excelente investimento. pois estou aqui, quarenta anos depois, escrevendo um texto sobre a importância desses livros em minha vida.

não exatamente da enciclopédia britânica em si (que devorei com a fúria de menino leitor em casa de poucos livros) mas da coleção que veio com ela:

great books of the western world

vendi quase todos os meus livros faz muito tempo, mas guardei vários volumes dessa coleção. alguns muito remendados (como o segundo volume de “declínio e queda do império romano”, que levei durante a evacuação do furacão katrina), todos muito marcados.

talvez o melhor modo de ressaltar a importância dessa coleção seja listar os autores que eu li através dela:

homero, ésquilo, sófocles, eurípedes, aristófanes, heródoto, tucídides, lucrécio, virgílio, plutarco, agostinho, tomás de aquino, maquiavel, hobbes, spinoza, shakespeare, cervantes, descartes, sterne, rosseau, gibbon, mill, goethe, melville, darwin, marx, tolstoi, dostoievski e freud.

nem todos eu gostei. nem todos eu entendi. mas muitos estão entre os meus autores preferidos. e todos são necessários.

(naturalmente, é aquela velha coleção de livros canônicos, todos escritos por homens brancos ocidentais. nenhuma mulher, nenhuma pessoa autora periférica. eram outros tempos, definitivamente.)

mas não é desses gênios que quero falar.

* * *

dentre tantos livros clássicos, talvez o que mais me influenciou tenha sido o primeiro volume introdutório, escrito por um dos organizadores, robert maynard hutchins.

ele explica que a tradição ocidental está corporificada em uma Grande Conversa, que começou na aurora da humanidade e que continua até o dia de hoje. o que une os autores da coleção é justamente essa Grande Conversa que estão travando, na qual um responde aos seus antecessores e, por sua vez, será respondido por seus sucessores, e assim em diante.

por isso, desde a minha infância, graças a hutchins, nunca consegui ver esses livros como objetos de estudo ou de veneração, como textos chatos, ou pesados, ou densos, ou intimidadores.

nada disso: era A Grande Conversa, uma baita fofocada entre pessoas geniais, ao longo dos séculos, se dando tapinhas nas costas, se alfinetando, se louvando, se atacando, tudo acontecendo bem ali, na minha sala.

o que poderia ser mais legal que isso?

* * *

para mim, na prática, participar da Grande Conversa era hoje eu ler euripides e, amanhã, aristófanes zoando de eurípides; hoje ler sobre a guerra de tróia, na ilíada, e amanhã, ler virgílio preenchendo a lacuna sobre a queda da cidade no segundo canto da eneida; hoje ler agostinho inventando a autobiografia e, amanhã, ler sterne completamente subvertendo-a, às gargalhadas, no livro mais pândego de todos os tempos.

declínio e queda do império romano, de gibbon, até hoje é meu segundo livro preferido — só perdendo para a bíblia, que é imbatível. descartes me ensinou a ser adulto — como eu conto na prisão verdade. até hoje, todos os meus textos argumentativos servem as lições que me ensinaram darwin e freud — que já seriam grandes escritores independente de suas grandes ideias. sinto um amor por eurípedes como se fosse um velho amigo — e, aliás, detesto aristófanes, seu desafeto. alguma obra literária pode ser mais perfeita que a ilíada? ela é mãe de todos os romances, contos, peças, blockbusters de hollywood, e ainda não conseguimos fazer melhor — nada tão duro, tão sangrento. agostinho, tomás de aquino e, em menor grau, até descartes me ensinaram o quanto a religião pode distorcer o pensamento até das pessoas mais brilhantes. leio tomás de aquino com admiração e desespero, pensando: meu deus, esse homem poderia ter colocado a humanidade da lua… se não estivesse tão preocupado discutindo literalmente o sexo dos anjos!

* * *

quando eu, criança ainda, 30 anos atrás, decidi que seria escritor, tudo o que eu queria, na verdade, era dar meu pitaco na Grande Conversa.

no começo, e durante muito tempo, e um pouco até hoje, esse desejo era fruto do mais enraizado narcisismo, daquela ideia egocêntrica de que temos um direito sagrado à auto-expressão, daquela ideia megalomaníaca de que minha auto-expressão estaria no mesmo nível da auto-expressão de um freud, de um cervantes, de um  tucídides.

aí, a idade veio chegando e o narcissismo começou a perder terreno para a gratidão.

antes, eu olhava para os grandes livros e pensava:

“um dia, minha auto-expressão estará ali.”

agora, eu olho para os grandes livros e penso:

“quanta gratidão por essas pessoas tão incríveis que trabalharam tão duro por todas as suas vidas, enfrentando dificuldades cotidianas que eu mal imagino, que nunca nem conceberam minha existência, mas que, mesmo assim, adicionaram tanto valor, tanta beleza, tanto conhecimento à minha vida!”

obrigado, obrigado!

* * *

poderia usar qualquer um desses autores como exemplo, mas uso lucrécio, autor do poema “da natureza“. lucrécio, que viveu antes mesmo do nascimento da pessoa que hoje usamos para marcar o tempo. lucrécio, que escreveu em uma época em que a minha língua ainda nem sonhava existir. lucrécio, esse homem que, quando eu estava perdido, procurando uma alternativa racional ao cristianismo, me deu todo um vocabulário e toda uma lógica para entender o universo.

minha dívida com lucrécio é impagável.

e não só com ele. sou grato a caio mêmio, a quem o poema é dedicado e que era provavelmente mecenas de lucrécio, por ter lhe dado as condições materiais para compor o texto que mudou a minha vida; a todas as pessoas anônimas que copiaram o texto, a mão, ao longo dos séculos; a poggio bracciolini, que reencontrou o manuscrito, depois de séculos perdido, em 1417; a todas as pessoas tradutoras, editoras, organizadores que prepararam o manuscrito para que eu pudesse lê-lo.

é literalmente incontável o número de pessoas que, ao longo de dois milênios, trabalhou duro, muitas vezes sem pagamento, para que, hoje, em 2015, o texto de lucrécio possa continuar mudando a minha vida.

(em “a virada — o nascimento do mundo moderno“, stephen greenblatt considera a redescoberta de “da natureza” por poggio como o marco inaugural da grande virada que marcaria o fim da idade média e o começo do renascimento.) 

* * *

em setembro e outubro de 2015, 30 novas pessoas se tornaram mecenas. as assinantes (que fazem contribuições mensais regulares) já são 190. e o número total de mecenas pela primeira vez superou 400.

e eu fiquei ali, atualizando a lista de mecenas, colocando novos nomes em meio àqueles velhos nomes, recordando as palavras do velho hutchins, e pensei:

minha grande conversa é com vocês.

* * *

muito, muito obrigado mesmo.

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